Como cupins, os governos populistas de extrema-direita corroem as democracias. Mas t�m em comum outra caracter�stica: dificilmente entregam o que prometem, at� porque nem sequer t�m respostas para manter a qualidade de vida das popula��es neste complexo momento de transforma��es estruturais por que passa o planeta. Em decorr�ncia disso, embora fa�am estragos nas democracias, s�o governos de f�lego curto, avalia o cientista pol�tico S�rgio Abranches, refer�ncia nos estudos p�s-redemocratiza��o sobre o modelo brasileiro do presidencialismo, que acaba de lan�ar o mais recente livro de n�o fic��o, O tempo dos governantes incidentais (Companhia das Letras).
Mineiro de Curvelo e radicado no Rio de Janeiro, Abranches escreveu, nos �ltimos anos, ensaios que ajudam a compreender os impasses pol�ticos nacionais e internacionais: A era do imprevisto: A grande transi��o do s�culo XXI (Pr�mio Liter�rio Nacional PEN Clube do Brasil na categoria Ensaio) e Presidencialismo de coaliz�o: Ra�zes e evolu��o do modelo pol�tico brasileiro (finalista do Pr�mio Jabuti, categoria Ensaio/Humanidades).

‘‘Um dos problemas do desencanto da democracia no mundo, e no Brasil, em particular, tem a ver com a oligarquiza��o dos partidos, de todos, inclusive os de esquerda’’
S�rgio Abranches
No novo livro, ele analisa a situa��o de pa�ses como Pol�nia, Hungria e Turquia, que fizeram a transi��o de democracias para autocracias por meio de governos populistas. O cientista pol�tico ainda considera prematuro avaliar se o processo de desgaste do exerc�cio do poder por Donald Trump, nos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, no Brasil, redundar� em derrota eleitoral na disputa � reelei��o. Contudo, Abranches ressalva: “H� sempre boa chance de que esses governantes n�o cheguem ao segundo mandato, que � o mais perigoso, quando j� est�o consolidados e trabalham para minar por dentro as institui��es democr�ticas”.
A sociedade em transe – ou a metamorfose global – � um dos cap�tulos de seu livro em que o senhor menciona mudan�as radicais, de alcance global e sist�micas em curso no mundo. Qual � o impacto dessas mudan�as sobre os sistemas pol�ticos?
O esgotamento de um padr�o de desenvolvimento e de paradigmas de organiza��o da sociedade, da economia e da pol�tica que dominaram o s�culo 20 e as transforma��es tecnol�gicas derivadas da globaliza��o e digitaliza��o da sociedade fizeram com que houvesse aprofundamento e transforma��es estruturais no mundo todo, que de fato apontam para uma transi��o de toda uma configura��o social. A hegemonia do capital financeiro global e a domin�ncia das empresas de tecnologia, com uso da intelig�ncia artificial, desvalorizam toda a infraestrutura econ�mica tradicional, tornando os agentes econ�micos vulner�veis �s oscila��es do capital globalizado. Isso imp�e restri��es fiscais, uma s�rie de limita��es que fazem com que os governos n�o sejam capazes de acompanhar com pol�ticas p�blicas esse processo de mudan�a. Da� essa insatisfa��o generalizada no mundo, o desencanto com a democracia, a frustra��o com os governos que se sucedem. Isso vai produzindo grau de incerteza, de inseguran�a e de ressentimento que tornam as sociedades vulner�veis aos apelos de demagogos. A sociedade em rede, por exemplo, abre novos canais para o desaguar dos desequil�brios pol�ticos causados pelas transforma��es sociais e econ�micas: alimenta as pol�ticas de confronta��o, como as de Donald Trump e Jair Bolsonaro, serve de canal para a linguagem de �dio que emerge dos conflitos e os radicaliza. Esse contexto mut�vel e incerto � prop�cio � emerg�ncia dos populismos. Mas a sociedade em rede oferece, tamb�m, ferramentas para intera��es criativas, novas formas de co- opera��o interpessoal, grupal, transnacional e transcontinental. As redes disseminam fake news e facilitam a checagem das mentiras. Tornaram-se instrumentos poderosos de circula��o de conhecimento, ideias, valores, culturas.
Qual �, em sua avalia��o, o f�lego dos populismos de extrema-direita em ascens�o em todo o mundo?
O novo populismo da direita nasce de elei��es que quebram o padr�o eleitoral anterior – s�o elei��es at�picas –, com campanhas que trabalham com forte manipula��o de ressentimentos e conquistam a maioria dos votos com promessas segmentadas, quase buscando o trending topics de cada grupo eleitoral. Entregam muito pouco, quando pretendem entregar algo do que prometem. Dessa forma, nascer de um momento pol�tico at�pico e n�o entregar, ou nem pretender cumprir as promessas feitas, s�o duas caracter�sticas que fazem com que sejam governantes incidentais: entram de forma inesperada e saem precocemente, porque n�o s�o capazes de resolver problemas associados �s perdas deste momento de transforma��o que estamos passando e, por isso, n�o t�m muita capacidade de sustenta��o ao longo do tempo. O f�lego desses governantes � curto. H� sempre boa chance de que esses governantes n�o cheguem ao segundo mandato, que � o mais perigoso, quando j� est�o consolidados e trabalham para minar por dentro as institui��es democr�ticas. S�o os cupins da democracia. Esse � o novo autoritarismo. Em pa�ses europeus mais democr�ticos e nos Estados Unidos, tudo indica que est� em refluxo o apoio aos populistas. Est�o perdendo f�lego mesmo na Pol�nia, na Turquia e na Hungria, pa�ses que j� n�o s�o mais democr�ticos, porque os populistas assumiram o controle das institui��es democr�ticas e fizeram a transi��o para autocracias. Mas ainda est� cedo para dizer se o processo de desgaste tanto do Trump quanto do Bolsonaro vai redundar em perda eleitoral. Elei��o � igual a jogo bem disputado de futebol. S� termina quando o juiz apita o final.
O presidente Jair Bolsonaro, em quase dois anos de governo, protagonizou embates e destrui��o de aliados de primeira hora, num processo autof�gico que lembra a ascens�o do fascismo. O que explica, em sua avalia��o, esse comportamento?
No governo Trump tamb�m aconteceu isso e ele brigou com muitos auxiliares que est�o agora em campos opostos. Isso � t�pico do autocrata. Essas mentes autorit�rias que o Trump tem e o Bolsonaro t�m – uma mistura de narcisismo com um complexo grande de inferioridade – exigem fidelidade absoluta e ficam muito contrariadas quando desobedecidas, quando algu�m pensa independentemente. Ambos investem contra os que ousam ficar contra as ideias deles. T�m uma personalidade impulsiva, n�o s�o capazes de admitir o pr�prio erro. Uma persist�ncia no erro que mostra tra�os psic�ticos, tem uma patologia ali envolvida. E isso faz com que sejam muito sens�veis a qualquer diverg�ncia interna e respondem de forma autorit�ria, violenta e muitas vezes terminal. Demite, afasta, frita, isola.
Em 2018, antes das elei��es, o senhor apontava a crise de nosso presidencialismo de coaliz�o. Como esse modelo resiste � extrema fragmenta��o partid�ria?
Quando escrevi Presidencialismo de coaliz�o: Ra�zes e trajet�ria do modelo pol�tico brasileiro, fiz um balan�o dos 30 anos desse modelo no Brasil, um pouco antes das elei��es de 2018. Eu apontei para o modelo em crise: h� v�rias disfuncionalidades que n�o foram atacadas. Por um lado, h� um processo de realinhamento partid�rio que torna muito dif�cil fazer coaliz�es majorit�rias; por outro lado aumenta o risco � governabilidade do sistema. Onde estavam os sintomas dessa disfun��o? Os sintomas estavam no impeachment de Dilma Rousseff, no in�cio do processo de polariza��o e da maior fragmenta��o do sistema partid�rio, que j� tinha come�ado na elei��o de 2014. E se agravou nas elei��es de 2018, com perda de bancada por parte de todos os partidos, principalmente os mais tradicionais – PT, PSDB, Democratas, MDB. Foram cortadas pela metade e cresceram outros partidos sa�dos das costelas dos tradicionais, como o PSD, de Gilberto Kassab, que era ligado ao PSDB de Jos� Serra. Formaram-se v�rias bancadas entre 30 e 50 deputados, o que torna muito dif�cil fazer uma coaliz�o vencedora. Estava claro que havia algo errado no pr�prio modelo. N�o a coaliz�o em si, mas o fato de que tinha muitas falhas que induziam a esse processo. Uma delas foi corrigida com a reforma pol�tica, mas ainda n�o sabemos qual vai ser o resultado dela. Vai aparecer nas elei��es de 2022 e teremos o teste verdadeiro do efeito do fim das coliga��es proporcionais, o que pode reduzir em muito o n�mero de partidos que podem entrar na C�mara.
Ent�o, o futuro do presidencialismo de coaliz�o, em sua avalia��o, depender� do resultado que a proibi��o das coliga��es proporcionais vai ter sobre o resultado das elei��es para a C�mara dos Deputados?
Sim. O mais prov�vel � que muitos partidos n�o conseguir�o fazer bancadas suficientemente grandes. Aqueles que conseguiram alcan�ar o quociente eleitoral, podem n�o conseguir passar pela cl�usula de barreira. � uma nova exig�ncia que vai mudar muito as rela��es pol�tico-eleitorais no Brasil. E n�o sabemos que outros choques podem vir para interferir no processo eleitoral. Mas uma coisa � certa: para retomarmos um sistema de governan�a democr�tico e que funcione, que tenha estabilidade, que d� governabilidade ao pa�s, precisaremos fazer reforma no modelo. N�o d� para escapar da coaliz�o, porque ela decorre da heterogeneidade partid�ria do pa�s, que e � inexoravelmente multipartid�rio. Mas precisamos pensar em novos mecanismos de freios e contrapesos para incrementar a governabilidade e para defender os pr�prios mecanismos de freios e contrapesos tradicionais. H� duas provid�ncias. Uma delas foi defendida por Conrado H�bner Mendes, na Folha de S. Paulo: estabelecer, para a nomea��o ao STF, um processo de quarentena para membros do Minist�rio P�blico e ju�zes de outros tribunais. Dessa forma, corta-se essa ideia de prestar servi�os para o presidente que nomeia. Al�m disso, � preciso algum mecanismo para retirar o presidente que n�o est� sendo capaz de governar de uma forma menos traum�tica e mais democr�tica do que o impeachment. No livro, chamei a aten��o para o fato de que quem tira o mandato � o Congresso, mas quem o d� � o povo. Acho que o presidencialismo de coaliz�o est� numa encruzilhada. Se ele vai conseguir se robustecer para garantir a governan�a e a democracia � uma quest�o que est� em aberto.
Apesar dos 33 partidos pol�ticos formalmente registrados, a sociedade n�o se sente representada, mal conhece a salada de legendas, muitas das quais balc�es de neg�cios. Como resolver a quest�o da representa��o?
Um dos problemas do desencanto da democracia no mundo, e no Brasil, em particular, tem a ver com a oligarquiza��o dos partidos, de todos, inclusive os de esquerda. N�o h� novas lideran�as, o processo de renova��o de lideran�as est� bloqueado nos partidos pela oligarquiza��o. E na sociedade, os mecanismos de forma��o de lideran�as pol�ticas, que fazem o tr�nsito de uma lideran�a na sociedade para a lideran�a partid�ria e pol�tica, tamb�m foram bloqueados, foram entupidos desde a �poca do regime militar e nunca mais se desbloquearam. Veja que a pol�tica estudantil na Rep�blica de 1946 a 1964 era muito ativa. Os partidos disputavam a representa��o estudantil nas universidades e no ensino m�dio e a� se formavam lideran�as que conseguiam transitar para a pol�tica partid�ria. Todos os pol�ticos mineiros importantes do per�odo da Segunda Rep�blica – Tancredo, Milton Campos – participaram da pol�tica estudantil. E quando no regime militar o movimento estudantil precisou radicalizar por causa da repress�o, foi para a clandestinidade, deixou de ser democr�tico: n�o podia ser transparente, tinha de ser secreto. Depois da redemocratiza��o, n�o tivemos o ressurgimento da pol�tica estudantil como plural e de disputa democr�tica. Houve os movimentos sociais, que se burocratizaram demais, que n�o geraram lideran�as com mais amplitude. Ent�o, h� uma crise de lideran�as no mundo inteiro e uma crise de lideran�a sobretudo na esquerda entre os setores mais progressistas, que n�o conseguem pensar em alternativa que fa�a da esquerda uma possibilidade concreta e eficiente nas restri��es dadas pelo capitalismo globalizado e pela crise do capitalismo.
Que tipo de dificuldades a pandemia pode trazer para Jair Bolsonaro?
A pandemia � daqueles eventos que atingem de fora o processo pol�tico e alteram os dados do processo pol�tico. Ela teve efeito no mundo inteiro, alguns efeitos muito importantes que alteram muito a din�mica do jogo sociopol�tico nos pa�ses e que afeta essa trajet�ria dos autocratas. De um lado, houve aumento de visibilidade; do outro, um processo de reconhecimento do outro em sociedades mais individualistas, de aumento da solidariedade e do impacto da solid�o. Nas comunidades mais carentes, no Bronx, no Queens, nas favelas do Rio e de S�o Paulo, houve movimentos internos de solidariedade que aumentaram o grau de organiza��o e autossufici�ncia dessas comunidades, no sentido de que s�o mais capazes de se unir para enfrentar a discrimina��o, a falta de Estado. Isso ter� consequ�ncias pol�ticas importantes, porque descobriram novas formas de organiza��o. A pandemia tamb�m resgatou o legado social-democr�tico nos pa�ses com fortes sistemas p�blicos de sa�de: v�-se a correla��o entre governos populistas de direita – Estados Unidos, Brasil e, em parte, a It�lia –, que se sa�ram mal; pa�ses que mantiveram o legado social-democr�tico ou que est�o sob governos sociais-democr�ticos – Alemanha, Portugal, Nova Zel�ndia, Canad� – se sa�ram bem. Mas essa n�o � uma previs�o linear, mas muda as regras e d� espa�o para que surjam alternativas democr�ticas.

» O tempo dos governantes incidentais
» De S�rgio Abranches
» Companhia das Letras
» 304 p�ginas
» R$ 69,90. E-book: R$ 39,90