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Estado de Minas LITERATURA

Segredos e mentiras na It�lia

No primeiro romance depois do imenso �xito da tetralogia napolitana, Elena Ferrante abra�a o folhetim ao revisitar temas, ambientes e at� vozes presentes em sua obra. J� Domenico Starnone encerra trilogia sentimental com mais uma narrativa em primeira pessoa que exp�e os andaimes de relacionamentos em crise


04/09/2020 04:00 - atualizado 04/09/2020 08:28

Febre � eleva��o da temperatura, rea��o a alguma anormalidade. Faz o corpo suar, �s vezes quase derreter. At� delirar. Como ignorar a febre Ferrante, express�o surgida para nomear o movimento dos leitores e leitoras da autora italiana? A imagem de um amor passional n�o deve ser desprezada, ainda mais nos dias de hoje, em que nos ressentimos da falta de ades�o � leitura. Imposs�vel ignorar o alcance da obra da escritora: s�o mais de 12 milh�es de exemplares vendidos em 50 pa�ses, e no Brasil muitos est�o perfilados nesse poderoso time. Comprovei em r�pida pesquisa: estou cercada de f�s de Ferrante. Sim, s�o mulheres: a discuss�o sobre a aus�ncia dos homens nessa legi�o me permito n�o discutir aqui, mas fica o registro.

N�o raro, a cr�tica especializada torce o nariz para narrativas de sucesso, mas muita gente d� uma banana para isso. Quer bons livros, e h� muito dever�amos ter superado o fosso que separa sucesso comercial de qualidade liter�ria. Quarenta anos se passaram desde um marco a esse respeito, a publica��o de O nome da rosa, de Umberto Eco, o semi�logo e medievalista que virou best-seller, sem culpa e sem condescend�ncia. Tanto Eco quanto autores como Italo Calvino defendiam abertamente o prazer da leitura, para ficarmos apenas na tradi��o liter�ria italiana. Insinuando-se de forma muito pessoal nessa linhagem, a criadora da chamada tetralogia napolitana oferece ao p�blico generosas doses de deleite, e isso n�o � pouco: os t�tulos A amiga genial, Hist�ria do novo sobrenome, Hist�ria de quem foge e de quem fica e Hist�ria da menina perdida, publicados entre 2011 e 2014, arrebataram multid�es.

Elena Ferrante � um pseud�nimo mantido h� quase 30 anos. Ao insistir no apagamento da autoria, segue acendendo a fagulha da curiosidade e conferindo todo o poder �s leitoras e aos leitores: eles importam mais do que a figura midi�tica da escritora (Anita Raja, Domenico Starnone, seja quem for). E ela est� de volta, cinco anos depois do final da tetralogia. A vida mentirosa dos adultos manipula conhecidos c�digos liter�rios, abra�ando sem medo o folhetim e o melodrama. O romance de mais de 400 p�ginas revisita temas, ambientes e at� vozes presentes em sua obra, talvez sem a mesma temperatura alcan�ada antes – houve quem dissesse que faz um pastiche de si mesma, mas h� quem louve a possibilidade de respirar a mesma atmosfera de encanto dos outros livros. Levantou-se igualmente a hip�tese de que este volume seja o in�cio de uma nova s�rie. Certo � que a autora traz a retomada de um fio que n�o se deixa partir.


Lenta eros�o
de mundo

Ela come�a bem: “Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse � minha m�e que eu era muito feia”. As p�ginas que lemos s�o a tentativa, j� na maturidade, de dar uma resposta a essa estocada paterna. Giovanna tem 12 anos e uma vida confort�vel ao lado do pai e da m�e na N�poles dos anos 1990. Ambos professores de ensino m�dio, ele de hist�ria e filosofia, ela de latim. No entanto, a frase entreouvida provoca uma lenta eros�o desse mundo aparentemente est�vel, pondo em marcha uma visita a territ�rios �ntimos e geografias inusitadas. Contrariando o desejo dos pais, a jovem passa a frequentar a casa da tia paterna, uma personagem carregada de tintas fortes e ao mesmo tempo amb�gua em sua constru��o.

A origem humilde do pai, bastante apagada em um cotidiano vivido no bairro nobre de Vomero, incita curiosidade, e o sangue vai contar outras hist�rias que Giovanna quer conhecer. A presen�a constante de uma pulseira pertencente � bisav� surge como s�mbolo de uma complicada heran�a familiar: passando de pulso em pulso, se configura um elo entre as mentiras e revela aos poucos o qu�o provis�ria � a verdade, ou pelo menos o qu�o parcial � a vers�o de cada um. 

Dividida em sete partes, a narrativa relata em primeira pessoa a hist�ria de uma adolescente olhando o mundo adulto e se espantando com o que v� debaixo das mesas, dentro das fotografias, por entre as sombras familiares. A conviv�ncia com a tia, proscrita do conv�vio pelo pai, vem acompanhada de um alerta: “Olhe bem seus pais, n�o se deixe enganar”. A afirmativa � uma esp�cie de ponto de virada na vida de Giovanna, in�cio de um amadurecimento que se d� aos trancos e barrancos. Em muitos lugares ela ver� enganos, fic��es, fabula��es – os adultos mentem mesmo. Mentem entre si, para lidar com conven��es sociais, mentem para si mesmos, em exerc�cios de autoengano, e mentem para os outros, forma de se reinventar em sociedade. 

Como nos romances da tetralogia, a ambienta��o no Sul da It�lia traz refer�ncias a uma linguagem muito pr�pria. O napolitano com suas especificidades e tonalidades discursivas � o idioma para xingar, falar obscenidades, anunciar um mundo carnal e violento, universo de descontrole e despudor. Mas tamb�m de um l�xico familiar, da partilha da intimidade e do afeto – uma l�ngua materna, com todo o peso que isso pode acarretar. In�meras passagens de A vida mentirosa dos adultos refor�am a presen�a do dialeto, mas n�o existem trechos em que isso irrompa diretamente, provocando algum estranhamento. Sobre esse tema, Maur�cio Santana Dias, premiado tradutor da tetralogia, citou em entrevista a exist�ncia de uma esp�cie de l�ngua submersa, destacando uma dimens�o lingu�stica presente na obra de Ferrante que revelaria uma permanente tens�o entre o italiano e o napolitano.

Conflito e 
Contradi��es
sociais

Esse conflito no �mbito da linguagem exprime in�meras contradi��es sociais. O romance p�e em cena duas cidades diferentes, a periferia urbana e a N�poles do cart�o-postal, visitada pelos mais pobres “como se fosse um pa�s estrangeiro”. � cruel a partilha da cidade, cujos territ�rios s�o demarcados e excludentes. Mas Giovanna sente-se atra�da pelo lado familiar menos controlado pela censura das normas e protocolos sociais, e nesse momento se percebe o quanto certas fronteiras s�o porosas.

Em meio � forte crise existencial, a adolescente se afasta do modelo materno e busca no novo espa�o outras refer�ncias. E se faz presente um dos grandes temas da obra de Ferrante: a amizade e a solidariedade entre mulheres. Trata-se de um universo feminino em que as personagens, diante de um mundo patriarcal, criam filhos juntas, estabelecem la�os er�ticos, constroem novas formas de conv�vio, se apoiam. A viagem em dire��o ao mundo de uma mulher adulta requer a l�cida constata��o de deixar uma vida para tr�s, levando na bagagem alguns destro�os, mas tamb�m desejos.

“Os objetos n�o t�m culpa”, afirma Giovanna sobre os desentendimentos causados pela pulseira herdada. Eles podem n�o ter culpa, mas os adultos carregam muitas, e a hist�ria dos objetos � a narrativa que se constr�i sobre eles. A vida privada est� mesmo cheia de opacidade e lacunas – importam menos os segredos e as mentiras do que o modo como se lida com eles. Com qual temperatura se reage, como um organismo em febre lutando contra um corpo estranho. Dessa resposta nasce a literatura que orquestra as dores embaralhadas anunciadas pela protagonista no in�cio de sua jornada.

 



Stefania Chiarelli � professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do ensaio O cavaleiro inexistente de Italo Calvino, uma alegoria contempor�nea
 
 
 
 
» A vida mentirosa dos adultos
» De Elena Ferrante
» Tradu��o de Marcello Lino
» Intr�nseca
l 432 p�ginas
» R$ 59, 90
» E-book R$ 39,90
 
 
 
trecho

“Com o tempo, percebi que, quando se reconhecia em mim, Vittoria era dominada pelo afeto, mas, se identificava algum tra�o do meu pai, desconfiava que eu faria com ela ou com as pessoas que ela amava o que o irm�o lhe fizera no passado. De resto, o mesmo acontecia comigo. Eu a achava extraordin�ria quando me imaginava uma adulta combativa, e repugnante quando reconhecia nela os tra�os do meu pai. Aquela manh�, pensei de repente em algo que me pareceu insuport�vel e ao mesmo tempo divertido: nem eu nem Vittoria nem meu pai pod�amos eliminar nossas ra�zes comuns e, portanto, acab�vamos amando e odiando, dependendo do caso, sempre n�s mesmos.” 



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