A linguagem da fic��o, que � um real por si mesmo, joga o leitor num universo irreal criado pela obra. A literatura � �criture (como a denominava Barthes), sendo, por isso, uma esp�cie de autre que cria mundos paralelamente ao mundo “real”. O leitor � chamado a viver o que o autor lhe prop�e, dentro de regras espec�ficas da cria��o liter�ria, numa realidade concreta – mesmo quando representando o imposs�vel, o irreal, o fantasioso –, a da fic��o que materializa seu pr�prio universo.
O poder de criar � o poder de fundar novos mundos. A literatura n�o � a imita��o do mundo, n�o � seu reflexo, mas a realiza��o de si mesma. E � acreditando nela, como se estiv�ssemos em presen�a da verdade, que acreditamos no poder de nos tonar navegantes de um mundo paradoxal, onde a mentira, a impossibilidade da verdade, a insufici�ncia do ser, torna-se realiza��o de uma irrealiza��o (como dizia Blanchot).
O poder de criar � o poder de fundar novos mundos. A literatura n�o � a imita��o do mundo, n�o � seu reflexo, mas a realiza��o de si mesma. E � acreditando nela, como se estiv�ssemos em presen�a da verdade, que acreditamos no poder de nos tonar navegantes de um mundo paradoxal, onde a mentira, a impossibilidade da verdade, a insufici�ncia do ser, torna-se realiza��o de uma irrealiza��o (como dizia Blanchot).
Essas reflex�es iniciais servem para introduzirmos o livro Novos f�rmacos & outras hist�rias, de Juliano Klevanskis (Scriptum). Diferentemente do escriba que, “h� milhares de anos, copia os rolos da Tor�, meticulosa e ortodoxamente” (Pr�logo), os contos apresentados no livro, embora muitos deles mergulhados na cultura judaica, levam o leitor a universos fantasiosos, nos quais a realidade � sabotada insistentemente, seja no universo das situa��es prosaicas ou nas situa��es da ordem mais fincada em tradi��es religiosas e familiares. N�o s�, pois aqui tamb�m se ficcionaliza as tradi��es intelectuais judaicas, com seus livros sagrados, suas hist�rias ancestrais e suas pr�ticas religiosas.
Em alguns momentos, como se pode ver no conto Senhora, Cohen, percebe-se o arremedo da pr�pria escrita b�blica ao se tratar de um tema contempor�neo, como a quest�o do empoderamento feminino, da quest�o do uso das tecnologias, da fun��o do poder paterno e, ao mesmo tempo, das regras religiosas que organizam aquela fam�lia e seus valores, como pode ser exemplificado nas seguintes coloca��es do conto: “Ignorar as d�vidas do filho � pecado”, “A �ltima palavra aqui � minha!” e “Equidade de g�nero, percebem? E querem introduzi-la no juda�smo! � mais um modernismo!...”
Assim, dribla-se todo o jogo do poder patriarcal numa constru��o ficcional – segundo o autor, � maneira de Arthur Azevedo – que nos faz pensar nos textos b�blicos em que os ensinamentos se d�o atrav�s de conversas prosaicas exemplares.
J� que a realidade da literatura pode transformar a simples exist�ncia dos personagens num fantasioso universo de acontecimentos, a cada conto de Klevanskis que lemos somam-se as situa��es absurdas que aparecem constantemente, mesclando dados do real a elementos do fant�stico. Um exemplo � o conto Gato Borges, que elenca no seu referencial dois escritores da chamada literatura fant�stica: Jorge Lu�s Borges e Murilo Rubi�o.
O nome do gato e o personagem desaparecido, Murilo Rubi�o, procurado pela pol�cia, se encontram numa trama maluca na qual o gato, que passa a morar na casa da senhora �me e do senhor P�, come�a a comandar as a��es do lar, desenvolvendo um poder absoluto sobre seus moradores. Da conviv�ncia simples de uma senhora sonhadora, nost�lgica da vida das grandes cidades, com seus restaurantes, teatros e cinemas, e do marido, preocupado com as tarefas cotidianas de plantar, colher, aguar a horta e cuidas das galinhas, vivendo no aconchego de uma vida simples com seus tr�s gatos, eis que surge o imprevisto, um novo gato que instaura o absurdo e desregula toda a realidade.
A transfigura��o dos nomes dos personagens j� nos introduz no mundo da fic��o fantasiosa, denominados como letras do alfabeto (M e P), indicam que pertencem ao reino da escrita, ao universo da cria��o liter�ria.
� nesse redemoinho de refer�ncias liter�rias, religiosas e da pr�pria escrita que se v�o constituindo os contos de Novos f�rmacos & outras hist�rias, mas tudo isso mergulhado em situa��es inesperadas, que contradizem o real a todo tempo, fazendo o leitor deslizar por alguns instantes no desespero de n�o saber qual o limite desses universos. Os contos De repente, um tiro e Suic�dio paralelo nos introduzem nesse dilema dos limites das a��es reais e irreais, por exemplo.
Sendo essa reuni�o de contos um livro, n�o poderia de deixar de refletir sobre leitores e vendedores de livros, os livreiros, num conto bastante engra�ado, no qual situa��es tamb�m absurdas se mesclam � prosa cotidiana da exist�ncia de uma livraria. Refiro-me ao conto A arte de pedir um livro em uma livraria. Numa enciclop�dia do gosto dos compradores por livros espec�ficos desenha-se o car�ter e ansiedades de cada um deles. Da relut�ncia sobre pre�os, entregas, procuras vai se formando o universo de uma livraria e seus personagens, que s�o desnudados em suas exig�ncias de leitores.
Novos f�rmacos & outras hist�rias � um livro singular. Com forte referencial intelectual na cultura judaica, busca ainda sim empreender uma inven��o liter�ria que ultrapassa os ditames das verdades estabelecidas, procurando nas entrelinhas do absurdo aquela verdade que a literatura carrega, a do confronto com a linguagem comum, o abandono das certezas que se querem imut�veis. Como dizia Maurice Blanchot, em L’Entretieninfinit: “Escrever, desse ponto de vista, � a maior viol�ncia, pois transgride a lei, toda lei e sua pr�pria lei.”
H� dois ex�lios para o escritor: ele est� fora do mundo e fora de si. Por isso escreve, n�o permanecendo onde est�, n�o pertencendo a nenhum lugar. Exilado est�, mas dentro do �nico lugar que lhe interessa: o lugar da liberdade de cria��o.

Novos f�rmacos & outras hist�rias
>> Juliano Klevanskis
>> Scriptum
>> 247 p�ginas
>> R$ 54
>> Encomendas pelo site: livrariascriptum.com.br ou pelo whatsapp da livraria: (31) 99951-1789