
A linguagem de Donald Trump � violenta. Muitas express�es s�o rudes e jorram com naturalidade, sem rodeios, “como voc� conversaria num bar depois de ter tomado alguns drinques”. � a an�lise de B�reng�re Viennot, professora e tradutora francesa de textos jornal�sticos, autora de A l�ngua de Trump (editora �yin�), obra que analisa a linguagem utilizada pelo atual presidente dos Estados Unidos e candidato � reelei��o.
“O vocabul�rio que Trump escolhe utilizar � de uma brutalidade fora do comum”, reitera a autora. Para ficar num �nico exemplo: Trump afirmou, durante um briefing no Sal�o Oval da Casa Branca, que estava farto de ver imigrantes vindos de “shithole countries” (pa�ses de merda). “Ele se referia aos pa�ses da �frica, Haiti e El Salvador. Why are we having all these people from shithole countries come here? (“Por que deixamos que todas essas pessoas vindas de pa�ses de merda entrem aqui?”).
Ap�s lidar por anos com a tradu��o de Barack Obama, que ela considera dono de uma “ret�rica cartesiana e elegante”, B�reng�re relata, em entrevista ao Estado de Minas por e-mail, como foi dif�cil “aprender” a traduzir Trump. “Quanto mais clareza tem uma pessoa ao se expressar, mais f�cil � traduzi-la. Ent�o voc� pode imaginar que traduzir Donald Trump � um desafio e tanto. Muito frequentemente, quando Trump fala sem um teleprompter, ele pr�prio n�o sabe bem aonde v�o chegar os seus pensamentos”, diz a professora de tradu��o na Universidade Paris VII, que escreve regularmente para o site franc�s Slate.
“Por outro lado, a onda di�ria de tweets presidenciais enraivecidos, vingativos, arrogantes ou absurdos, da qual � quase imposs�vel escapar, a menos que voc� se refugie em uma caverna e fique completamente desconectado, tamb�m constitui uma viol�ncia que exacerba esse sentimento de ser varrido por um turbilh�o de disparates, que carrega em si o risco de prejudicar o racioc�nio daqueles que est�o sujeitos a eles”, anota. A seguir, a entrevista com a tradutora:
“Por outro lado, a onda di�ria de tweets presidenciais enraivecidos, vingativos, arrogantes ou absurdos, da qual � quase imposs�vel escapar, a menos que voc� se refugie em uma caverna e fique completamente desconectado, tamb�m constitui uma viol�ncia que exacerba esse sentimento de ser varrido por um turbilh�o de disparates, que carrega em si o risco de prejudicar o racioc�nio daqueles que est�o sujeitos a eles”, anota. A seguir, a entrevista com a tradutora:
Que tipo de desafio est� envolvido na tradu��o da linguagem de Donald Trump do ingl�s para o franc�s?
O processo de tradu��o n�o � s� uma quest�o de palavras: um texto � muito mais do que a soma de seus elementos sem�nticos. Quando voc� traduz o discurso de uma pessoa, � necess�rio “entrar na cabe�a dela” para entender exatamente as ideias que est�o por detr�s de suas palavras. Ent�o, voc� precisa conhecer o contexto em que se d� o discurso. Se voc� n�o tiver o m�nimo de informa��es sobre o orador, voc� n�o pode saber se est� sendo sarc�stico, por exemplo. O contexto � a chave para a tradu��o. Quanto mais clareza tem uma pessoa ao se expressar, mais f�cil � traduzi-la. Ent�o, voc� pode imaginar que traduzir Donald Trump, por exemplo, entrar na cabe�a dele, � um desafio e tanto.
Poderia dar um exemplo do desafio?
Muito frequentemente, quando Trump fala sem um teleprompter, ele pr�prio n�o sabe bem aonde v�o chegar os seus pensamentos. Mas traduzir Barack Obama � muito f�cil e agrad�vel, especialmente se voc� � franc�s, uma vez que a ret�rica dele � clara, ordenada, quase cartesiana. Ele vai de A a B numa linha reta e n�o se perde no caminho. Os discursos dele s�o transparentes at� demais: fluentes e sintaticamente impec�veis.
Ent�o, por um lado, � f�cil compreend�-lo e traduzir Obama, mas, por outro lado, pode ser que essa transpar�ncia fa�a parte daquilo que levou v�rios americanos a votar em Trump: possivelmente, eles tinham o sentimento de que, sendo um intelectual culto e falando como qualquer outro pol�tico, Obama n�o poderia ser uma pessoa t�o sincera.
Ent�o, por um lado, � f�cil compreend�-lo e traduzir Obama, mas, por outro lado, pode ser que essa transpar�ncia fa�a parte daquilo que levou v�rios americanos a votar em Trump: possivelmente, eles tinham o sentimento de que, sendo um intelectual culto e falando como qualquer outro pol�tico, Obama n�o poderia ser uma pessoa t�o sincera.
A senhora descreve em seu livro como se sente desconfort�vel e frequentemente agredida pela linguagem de Trump. Em sua avalia��o, os modos de Trump e o seu vocabul�rio est�o sendo naturalizados?
A campanha de Trump trabalhou muito com a ideia de que ele era pr�ximo �s pessoas, ao povo, em oposi��o � “elite de Washington”. � sua maneira, o vocabul�rio rude faz parte dessa estrat�gia. Os americanos que votaram nele em 2016 e votar�o de novo agora, em novembro de 2020, reconhecem nesse tipo de discurso uma certa ingenuidade que passa a impress�o de honestidade.
Trump fala sem rodeios, como voc� conversaria num bar depois de ter tomado alguns drinques: muitas pessoas est�o familiarizadas com express�es desse tipo e � a primeira vez que elas podem se identificar tanto com uma pessoa em Washington. A quest�o em discuss�o n�o � se o estilo dele vai se tornar a linguagem comum no pa�s, mas descobrir se pelo menos aquela parte da Am�rica que o ama por causa de suas maneiras vai ser considerada por pol�ticos daqui pra frente.
Trump fala sem rodeios, como voc� conversaria num bar depois de ter tomado alguns drinques: muitas pessoas est�o familiarizadas com express�es desse tipo e � a primeira vez que elas podem se identificar tanto com uma pessoa em Washington. A quest�o em discuss�o n�o � se o estilo dele vai se tornar a linguagem comum no pa�s, mas descobrir se pelo menos aquela parte da Am�rica que o ama por causa de suas maneiras vai ser considerada por pol�ticos daqui pra frente.
Em sua avalia��o, qual � o perfil desta Am�rica que escolheu a linguagem de Trump?
Muitos americanos sentiam que n�o eram representados pelas elites da costa leste e oeste. A maioria da Am�rica n�o frequentou a Ivy League, a maioria da Am�rica n�o tem alta gradua��o escolar nas grandes universidades, que lhes d� acesso aos mais bem pagos postos de trabalho. Trump foi bem-sucedido em falar para a parte da Am�rica fazendo esses eleitores acreditarem que ele era como qualquer outro cidad�o comum, membro de uma fam�lia comum e que era a materializa��o do sonho americano de um bem-sucedido self-made man (o que, ali�s, Trump de fato n�o � porque nasceu rico e nunca trabalhou duro).
Por outro lado, existe alguma verdade nisso: se Trump tivesse nascido pobre, teria sido um deles, porque intelectualmente ele n�o se encaixa em Washington. E ainda tem a quest�o religiosa: Trump alega defender o cristianismo, alega ser em favor da vida (grupos antiborto), o que agrada a muitos americanos religiosos. Ele coloca Deus acima de tudo mais, o que � esperto. Quando voc� � uma pessoa muito religiosa, � dif�cil duvidar desse tipo de discurso. Al�m disso, sim, ele � terrivelmente sexista, mas voc� sabe, nem todas as mulheres s�o feministas.
Algumas s�o muito ligadas ao estilo tradicional de vida e aos pap�is de g�nero e a� est� um outro erro cometido pelos liberais: como mulher, voc� tamb�m tem o direito de n�o ser feminista. O que voc� acha que essas mulheres sentem quando escutam na m�dia convencional que o estilo de vida delas � errado porque elas escolheram ser exemplos tradicionais de donas de casa?
Por outro lado, existe alguma verdade nisso: se Trump tivesse nascido pobre, teria sido um deles, porque intelectualmente ele n�o se encaixa em Washington. E ainda tem a quest�o religiosa: Trump alega defender o cristianismo, alega ser em favor da vida (grupos antiborto), o que agrada a muitos americanos religiosos. Ele coloca Deus acima de tudo mais, o que � esperto. Quando voc� � uma pessoa muito religiosa, � dif�cil duvidar desse tipo de discurso. Al�m disso, sim, ele � terrivelmente sexista, mas voc� sabe, nem todas as mulheres s�o feministas.
Algumas s�o muito ligadas ao estilo tradicional de vida e aos pap�is de g�nero e a� est� um outro erro cometido pelos liberais: como mulher, voc� tamb�m tem o direito de n�o ser feminista. O que voc� acha que essas mulheres sentem quando escutam na m�dia convencional que o estilo de vida delas � errado porque elas escolheram ser exemplos tradicionais de donas de casa?
No livro A morte da verdade, a falsidade na Era Trump, a cr�tica Michiko Kakutani afirma que as mentiras de Trump s�o “o mais espalhafatoso entre os v�rios sinais de alerta acerca de seus ataques �s institui��es democr�ticas e normas vigentes”. Como Trump utiliza a linguagem para impulsionar mentiras?
Trump oficializou aquilo que a conselheira dele � �poca, Kellyanne Conway, chamou em janeiro de 2017 de “fatos alternativos”. Trump vive em uma realidade que se encaixa ao seu prop�sito e ele fala em conson�ncia com esse. Obviamente, ele mente, e mente muito, e todos sabem disso. Mas com essas mentiras ele agrada a uma parte da popula��o que deseja ouvir exatamente o que ele diz: que a Am�rica � um grande pa�s, que os americanos s�o mais capazes do que outras pessoas, que a economia est� florescendo...
Quem quer ouvir m� not�cia? O negacionismo � um vi�s humano ao qual todos incorremos em diferentes n�veis. � isso o que explica parte do apoio dele. E nessa realidade, Trump e seus correligion�rios republicanos est�o muito convictos de que t�m poder para fazer o que quiserem. Trump n�o representa a democracia, ele representa a si mesmo e simula representar o seu eleitorado. Agora, quando a realidade muda segundo o seu p�blico, n�o h� muito em que se segurar. A democracia americana n�o era perfeita antes dele, mas agora o pa�s est� testando os seus limites e descobrindo que eles est�o muito, muito tensionados.
Quem quer ouvir m� not�cia? O negacionismo � um vi�s humano ao qual todos incorremos em diferentes n�veis. � isso o que explica parte do apoio dele. E nessa realidade, Trump e seus correligion�rios republicanos est�o muito convictos de que t�m poder para fazer o que quiserem. Trump n�o representa a democracia, ele representa a si mesmo e simula representar o seu eleitorado. Agora, quando a realidade muda segundo o seu p�blico, n�o h� muito em que se segurar. A democracia americana n�o era perfeita antes dele, mas agora o pa�s est� testando os seus limites e descobrindo que eles est�o muito, muito tensionados.
A ret�rica da extrema-direita na Fran�a parece mais civilizada do que nos Estados Unidos e no Brasil? A senhora encontra mais diferen�as ou mais similaridades entre o discurso de Trump e de Jean-Marie Le Pen?
Jean-Marie Le Pen agora est� aposentado. Ele era um bom orador e era diferente de Trump no sentido de saber o que ele estava falando. Por exemplo, quando ele dizia que os fornos cremat�rios nos campos de exterm�nio da Segunda Guerra Mundial eram um “detalhe hist�rico”, estou convencida de que ele sabia exatamente o esc�ndalo que iria provocar com tal declara��o. Ele n�o vive em uma realidade diferente; ele � um ide�logo. Mas Trump n�o tem uma ideologia realmente: ele descobriu que dividir � a melhor maneira de governar com o poder m�ximo e tirou vantagem disso. Isso � tudo. O problema � que acabou acreditando em suas pr�prias mentiras.

A l�ngua de Trump
.B�reng�re Viennot
.Tradu��o de Ana Martini
.�yin� Editora
.140 p�ginas
.R$ 54,90