Consagrado como poeta, o juiz-forano Edimilson Pereira produziu simultaneamente tr�s narrativas ficcionais (foto: Prisca Agustoni)
O tempo entre a noite alta e o amanhecer pode ser muito maior do que indicam os ponteiros do rel�gio. Pode ser o momento para revisar o passado e refletir sobre d�vidas que h� muito intrigam os pensadores, como a exist�ncia de Deus. A cena vivenciada na cama dividida pelo curandeiro Inoc�ncio e a professora d� in�cio � narrativa de O ausente (Relic�rio), primeiro romance do poeta, pesquisador, ensa�sta e professor Edimilson de Almeida Pereira.
Um dos nomes destacados da poesia brasileira contempor�nea e pesquisador de refer�ncia no meio acad�mico, Edimilson est� em momento frut�fero na prosa ficcional. Depois do lan�amento de O ausente, o escritor de Juiz de Fora, nascido em 1963, j� tem outros dois romances engatilhados: Um corpo � deriva (Macondo) e Front (editora N�s). No entanto, embora poemas e ensaios tenham dado proje��o a ele na literatura, a dedica��o � prosa ficcional para adultos � anterior � poesia, � prosa infantil e � produ��o acad�mica. “Particularmente, n�o tomo como uma mudan�a brusca de um g�nero para outro, da literatura infantil, poesia, para a prosa para adultos”. Edimilson re- vela que a escrita em prosa vem desde a juventude, precisamente de quando tinha 20 anos – cinco anos antes do primeiro livro de poesia.
As tr�s narrativas ficcionais foram produzidas simultaneamente e t�m em comum a temporalidade como eixo. O tempo aparece como drama humano. Nos tr�s romances, Edimilson se imp�e a tarefa de narrar, em um curto espa�o temporal, n�mero variado de experi�ncias de personagens. As narrativas internas s�o interdependentes, embora possam ser lidas separadamente, compondo o eixo principal. “Tudo que fazemos, so- nhamos e realizamos est� dentro de uma limita��o temporal. �s vezes, n�o nos preocupamos muito com isso como sujeitos sociais e somos envolvidos pela temporalidade e o m�ximo que fazemos � emitir alguns coment�rios de tom desiludido e amargo: ‘N�o tenho tempo para nada’, ‘Meu tempo n�o � suficiente’, ‘Por mais que eu fa�a, n�o d� tempo...’”
Em O ausente, o personagem-narrador � Inoc�ncio, que, da noite at� o in�cio da manh�, promove um acerto de contas com o seu passado. “Ele tem uma decis�o a tomar quando a manh� emergir. No intervalo de poucas horas, da noite alta at� a manh�, ele repassa a vida dele como um todo, parte da inf�ncia, as rela��es com a fam�lia, as rela��es com amigos, com o trabalho, com o conhecimento sagrado.”
Outros dois romances
Edimilson antecipa detalhes dos outros dois romances. Em Um corpo � deriva, dois jovens se encontram em apartamento para tomar, juntos, uma decis�o “extremamente dolorosa e dif�cil”, diz o escritor. “No espa�o de poucas horas, do meio ao final da tarde, v�o discutir a experi�ncia de vida, o passado, que envolve a hist�ria de um pa�s, que n�o � nomeado como Brasil, pa�s violento e dram�tico. Nesse curto espa�o de tempo, eles recordam a vida afetiva que tiveram, recordam alguns amigos e fatos da hist�ria e come�am a discutir a import�ncia da linguagem, para que serve a linguagem huma- na, onde ela nos leva e o que ela constr�i”, detalha.
Em Front, ambientado em uma comunidade da periferia, sem que seja descrita a localiza��o precisa, as pessoas se predisp�em a esperar numa fila para pagar boletos. “H� um personagem nessa fila que, para chegar ao caixa, leva duas, tr�s horas. Enquanto o tempo decorre, ele reflete sobre o mundo em que vive, comenta sobre as pessoas que habitam o bairro onde nasceu, recupera tempo da inf�ncia, analisa o que est� ocorrendo no mundo para al�m da comunidade dele. Quando chega quase perto do caixa, h� um acontecimento extraordin�rio que d� sentido a todas as especula��es que ele fez.”
Os romances demonstram que, em um curto espa�o de tempo, pode-se fazer a revis�o de vida de uma pessoa, como da hist�ria de um pa�s. “A grande a��o desses tr�s romances se desdobra no pensamento. O ato de pensar e refletir � preponderante em todos os personagens, que s�o profundamente humanizados com contradi��es e tens�es.”
A experi�ncia como professor de literatura portuguesa e literaturas africanas de l�ngua portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), como o escritor mesmo define, constr�i os andaimes das narrativas. “Nas pesquisas de campo, na �rea de etnografia e antropologia, muitas vezes para reconstruir narrativas gravadas oralmente com as pessoas, eu acabo empregando algumas t�cnicas que s�o da narrativa ficcional para completar a estrutura da narrativa, para dar uma coer�ncia, mas � claro que esses relatos sa�ram no livro de etnografia e antropologia com um car�ter documental, mas o exerc�cio narrativo j� tinha comigo desde esse per�odo. Faltava colocar em pr�tica em obras espec�ficas.” A seguir, uma entrevista com o autor.
Em O ausente, o personagem Inoc�ncio, ao mesmo tempo que fala sobre ele, apresenta tamb�m a mulher, Dejanira...
� um jogo interessante que procurei fazer. Inoc�ncio tem um volume muito grande de discurso. Ele fala o tempo inteiro ou falam sobre ele. Ele tem um volume de discurso dele ou falando sobre ele muito grande, at� pelo papel central que exerce na comunidade como rezador e curandeiro. Ent�o, ele � o alvo do discurso. Dejanira fala pontualmente. A for�a do discurso dela est� menos na quantidade, e especificamente na qualidade do discurso que ela estabelece. Fala pouco em termos de quantidade e fala muito em termos de qualidade.
Essa diferen�a de discursos est� relacionada com os lugares que ocupam a professora Dejanira, o saber acad�mico, e Inoc�ncio, o saber tradicional?
Tanto Inoc�ncio como Dejanira s�o figuras populares. Mas o perfil da Dejanira n�o � da professora acad�mica. S�o pessoas do meio rural. O que estou colocando em discuss�o, tamb�m, e fruto de minhas pesquisas nessemeio, � mostrar este universo rural de uma forma mais aprofundada, de modo que a complexidade desse ambiente possa ser discutida e revelada pelos pr�prios perso- nagens. Para fugir de vez da vers�o estereotipada, caricatural e naturalista que temos das pessoas do meio rural. Trabalhei muitos anos nessa comunidade e sei que ali h� um modelo muito complexo e refinado, mas visto de fora de forma estereotipada.
Seria uma forma de valoriza��o do saber tradicional?
� isso, mas � um pouco mais. Quando a gente fala valoriza��o, voc� est� pressupondo que parte de um patamar hierarquizado. H� um conhecimento reconhecido – urbano, acad�mico e cient�fico – que olha para os outros, admitindo que h� uma dife- ren�a qualitativa, ent�o ele valoriza esses outros conhecimentos. Mas n�o � exatamente isso que o romance discute. O universo cultural do Inoc�ncio e da Dejanira � relativamente aut�nomo, como qualquer sistema de saber, com regras e estruturas l�gicas pr�prias. S�o essas estruturas que os personagens v�o revelar sem precisar do saber autorizado para reconhec�-los.
Podemos definir Inoc�ncio como um fil�sofo?
Inoc�ncio � um sujeito de pensamento, que especula a pr�pria vida, o passado. Ele parte da l�gica de mundo em que ele vive, por isso n�o � maior nem menor que Arist�teles ou outros nomes da filosofia cl�ssica, j� conso- lidada.
Muitas vezes, a gente a filosofia � vista como o regime do saber acad�mico e, na verdade, pode representar a possibilidade de olhar para o mundo e fazer perguntas, certo?
O primeiro passo do saber filos�fico � a d�vida. � o sujeito diante do mundo e ele tem que saber o que � o objeto mundo do que � ele, sujeito. O ato filos�fico em si transcende o saber acad�mico. Toda filosofia cl�ssica elaborou essa quest�o em sistemas, em estruturas l�gicas que vieram a dar para n�s esse campo filos�fico reconhecido, que permeia o saber acad�mico. Mas o ato filos�fico em si transcende esse espa�o acad�mico. � o que Inoc�ncio vai discutir. Ele � um sujeito da d�vida, da indaga��o do que � o mundo.
Inoc�ncio questiona, em diferentes momentos, a exist�ncia de Deus...
Descartes tem toda uma estrutura racional para demonstrar a exist�ncia de Deus. Com outro vocabul�rio, Inoc�ncio entra no mesmo campo de indaga��o e deixa essa quest�o para ser discutida com o leitor. Tem a ver com o longo per�odo de campo que tive em comunidades rurais. Eu n�o queria usar o material etnogr�fico que foi para os livros de an�lises e ensaios. Queria aproveitar esse cen�rio para gerar narrativa ficcional com a vis�o de mundo dos muitos personagens que encontrei l�.
Inoc�ncio e outro personagem masculino, Jo�o V�tor, reconhecem certa superioridade de Dejanira e Quit�ria, suas companheiras...
As falas das personagens femininas s�o extremamente articuladas no comportamento e no modo de pensar o mundo. N�o s�o figuras subalternas. Pelo contr�rio, s�o aut�nomas e questionam os valores dos espa�os que ocupam de diversas maneiras. Uma maneira mais importante que encontram � o dom�nio da fala. Elas t�m discurso. Gostaria de frisar: o valor do discurso n�o est� na quantidade, mas na qualidade. � o caso da Dejanira. O pouco falar dela tem vo- lume de informa��o e conte�do muito grandes. Tanto que vai conduzir o pr�prio comportamento dele.