
A d�bil mental, que chega agora �s livrarias brasileiras pela mesma editora, � chamada, pela autora, de segunda parte da trilogia, mas, narrativamente, pode ser considerada uma contraparte. Embora tenham hist�rias fechadas, que n�o se conectam de forma direta, ambas trazem argumentos siameses e se desenrolam numa ambienta��o de similar natureza (geogr�fica e psicologicamente), gerando uma esp�cie de contextura identit�ria. A vari�vel est� na conduta. Se Morra, amor j� apresentava uma prosa sinest�sica, vigorosa, crua, em A d�bil mental, Ariana Harwicz avan�a para uma escrita mais reacion�ria.
N�o � f�cil descrever o estilo da autora argentina sem recorrer a uma analogia. � como tatear por um terreno envolto em n�voa e cheio de perigos, onde o que est� em primeiro plano s�o vultos. Os enredos s�o repletos de possibilidades interpretativas. Como se a hist�ria de fato estivesse bispada sob o fluxo fren�tico de consci�ncia, sob esse desarticulado caudal de palavras, imagens brutas, sensa��es primitivas e uma ess�ncia do que poderia ser uma cr�tica social deambulando por todo o texto.
O que ressoa na camada principal � a voz descarrilhada de uma filha que vive uma rela��o de afeto e repulsa, de cumplicidade e desprezo com a m�e, atadas por um estigma que compreende o corpo simb�lico e o corpo f�sico, lan�ando-as numa espiral de loucura, viol�ncia e sexo. Marginalizadas num vilarejo de aspecto selvagem, a sa�da poss�vel para se livrarem da maldi��o da mis�ria � o amante da filha, um personagem essencialmente f�lico a partir do qual se constr�i um mosaico gr�fico de parafilias.
Tal vis�o mosaicista � um fator fundamental para toda a trama, pois, a despeito de uma estrutura armada em breves cap�tulos e de uma tens�o cont�nua de destrui��o m�tua entre as personagens, Harwicz adota um procedimento d�bio de escrita que sugere uma ideia de justaposi��o. Em algumas passagens, vozes de m�e e filha se fundem, completam-se, pondo em d�vida quem est� no controle da narra��o, de quem � o comportamento relatado; se n�o �, de fato, uma pessoa absorvida na outra.

A literatura de Ariana Harwicz n�o � para todo tipo de leitor, mas, ao adentrar o universo ca�tico engendrado pela autora, � imposs�vel sair ileso
Abuso, prostitui��o, incesto
Assim, passado e presente coabitam um circuito de feroz desarruma��o, embaralhando mem�rias de forma imprecisa e dissociativa, sobretudo no que diz respeito aos homens que passaram pela vida das duas. Nunca � claro, por exemplo, com quem a criatura pai se relaciona sexualmente, trazendo � tona epis�dios borrados que (figurativamente ou n�o) envolvem abuso infantil, prostitui��o e incesto. Este �ltimo, ali�s, tamb�m entre m�e e filha. "A vida � uma cachorra no cio", diz a personagem. E, mais adiante, complementa: "�s vezes, um corpo n�o � mais que um coito".
O inusitado (ou talvez bizarro) � que, dessa entropia mental de car�ter perturbador, a autora consegue extrair uma alta carga po�tica. Combinando o soturno do bosque, animais selvagens e um espectro pag�o, de ritos, cantilenas e s�mbolos, o texto adquire uma est�tica que, por vezes, lembra os contos da carochinha. Mas n�o aqueles limpos, edulcorados, e sim as narrativas arcaicas de bruxas canibais, mulheres que se conluiam na floresta para sequestrar crian�as e devorar homens.
Sim, n�o seria um lance de marketing classificar a novela de Harwicz de literatura wicca. Um caldeir�o ficcional que segue o legado de autoras como Silvina Ocampo, Clarice Lispector e Hilda Hilst, que deram vida a textos com m�xima voltagem de erotismo, manifesta��es de neurose e um brutalismo que se consorcia � condi��o de f�mea, embora guardem uma beleza imprescind�vel, uma contempla��o l�rica. Atualmente, no Brasil, a paulista M�rcia Barbieri � a que melhor repercute essa maneira de escrita.
Para 2021, est� programado o lan�amento da �ltima parte da trilogia, a tamb�m novela Precoz (“Precoce”, em tradu��o livre), que aborda o relacionamento obsessivo e obsceno entre m�e e filho. Como, presumo, ficou claro a esta altura da cr�tica, a literatura de Harwicz n�o � para todo tipo de leitor, mas, ao adentrar o universo ca�tico engendrado pela autora, � imposs�vel sair ileso. Tomando como representa��o uma fala da protagonista – "(...) nos beijamos. E beijar-nos foi como avan�ar com a faca em riste" –, s�o hist�rias que deixam entrever uma experi�ncia de certo encanto, mas, no fim, sempre aguarda algo maldito, algu�m febril a empunh�-lo no peito.
Trecho do livro
Depois, se n�o estiver delirando, disse que n�o vai mais poder vir com tanta frequ�ncia, queria dizer alguma coisa e n�o podia. Ainda que o tenha dito claramente ao passar debaixo da ponte e o eco repetiu. Que a sua situa��o, que o contexto, que ser respons�vel, que vamos nos ver, que n�o tem como a gente n�o se ver, que n�o estou dentro do c�rebro dele para entender, que eu entre um segundo dentro do c�rebro dele, mas que n�o vai poder dirigir at� aqui tanto assim, que p�e tudo em risco, que vai me escrever para o pr�ximo encontro. Eu o escutei com a rever�ncia e o assombro de uma d�bil mental que se embaralha e se perde em mil detalhes � sua volta, uma praga de micr�bios sobre a esplanada.
Confundo o balan�ar dos animais com o das plantas, as lagartixas insoladas enfiando-se nas bocas de lobo. E tudo ao final foi difuso, impreciso, brumoso. O que ele tinha me explicado? Conti- nu�vamos ligados. Minha boca feito um alongado focinho. De onde vinham esses voc�bulos? Por que havia preferido esses a outros? Que idioma escolher para batizar as coisas? Como algu�m � capaz de falar? O que tinha dito. Eu tinha esquecido. Era o l�quido espesso da saliva se acumulando, desfazendo-se, no seu palato. Essa transmuta��o de boca em divindade. Como uma doen�a gen�tica incur�vel, terminou seu discurso e nos beijamos. E beijar-nos foi como avan�ar com a faca em riste.
Confundo o balan�ar dos animais com o das plantas, as lagartixas insoladas enfiando-se nas bocas de lobo. E tudo ao final foi difuso, impreciso, brumoso. O que ele tinha me explicado? Conti- nu�vamos ligados. Minha boca feito um alongado focinho. De onde vinham esses voc�bulos? Por que havia preferido esses a outros? Que idioma escolher para batizar as coisas? Como algu�m � capaz de falar? O que tinha dito. Eu tinha esquecido. Era o l�quido espesso da saliva se acumulando, desfazendo-se, no seu palato. Essa transmuta��o de boca em divindade. Como uma doen�a gen�tica incur�vel, terminou seu discurso e nos beijamos. E beijar-nos foi como avan�ar com a faca em riste.

A D�BIL MENTAL
Ariana Harwicz
Editora Instante
Todavia
96 p�ginas
R$ 44,90
