especial para o Leia Agora
Em 2008, o m�sico Marcelo D2 lan�ou, em parceria com Seu Jorge, a can��o Pode acreditar (Meu Lai� Lai�), que faz parte do �lbum A arte do barulho. A mistura de rap com samba tem os seguintes versos: “Imagina s� o fim da repress�o / Voc� falar de maconha e de liberdade de express�o / De um lado o bandido / De outro a pol�cia / Agora j� era, t� na m�o da mil�cia / N�s avisamos dos porcos fardados / Mas nego � burro / Burro, continua votando errado”. Envolvido pela melodia, um ouvinte desatento pode at� n�o se dar conta, mas a den�ncia est� l�. A viol�ncia urbana, que j� castigava principalmente moradores do Rio de Janeiro, n�o era resultado apenas do conhecido confronto entre integrantes das for�as do Estado e traficantes de drogas. Havia um terceiro componente: as mil�cias.
No mesmo ano em que a m�sica foi lan�ada, era realizada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) uma CPI, liderada pelo ent�o deputado estadual Marcelo Freixo (Psol), para investigar grupos compostos por milicianos. A comiss�o pediu o indiciamento de 225 pessoas, entre pol�ticos, policiais, agentes penitenci�rios, bombeiros e civis. � instigado por esse cen�rio, onde den�ncias de viol�ncia e corrup��o sist�mica mostram a fragilidade das institui��es brasileiras, que o escritor, jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso busca contextualizar no livro A rep�blica das mil�cias – dos esquadr�es da morte � era Bolsonaro (editora Todavia) os motivos que levaram o Brasil a integrar o ranking de pa�ses com maior n�mero de homic�dios em todo o mundo.

TRECHO DO LIVRO
“Os milicianos, como demonstrado v�rias vezes, priorizam seus pr�prios interesses e lucro, pouco se importando com a legisla��o. S�o dinheiristas e ego�stas. N�o ligam nem cumprem o papel de zelar pelo interesse coletivo, tarefa que cabe ao Estado. Lutam (e matam, na verdade) pelo interesse de seu sucesso pessoal e o de aliados. E ainda assim seus valores foram e s�o compartilhados por lideran�as pol�ticas em ascens�o, que levam para dentro do Estado uma disputa s� interessada em beneficiar o personalismo e ambi��es pessoais, destilando �dio contra aqueles que tentam apontar limites”.
Entender a l�gica das mil�cias n�o � uma tarefa simples, afinal, os paramilitares atuam � margem da lei e dizem agir em nome dos ‘interesses dos cidad�os de bem contra a amea�a dos criminosos’. Mas, para isso, se envolvem em guerras por territ�rio, uma esp�cie de Game of thrones da vida real, onde as surras, a viol�ncia e os homic�dios s�o considerados ferramentas de trabalho. Para os integrantes das mil�cias, a��es violentas fazem sentido porque s�o parte da solu��o do problema. Al�m disso, eles usam a pr�pria m�quina p�blica para extorquir bens de pessoas carentes e lucrar muito. Essa distor��o da realidade � apresentada no livro em depoimentos chocantes de personagens que viveram o dia a dia do crime e experimentaram, na pr�tica, o que � ser um miliciano.
Os crimes provocados pelos agentes da seguran�a p�blica j� acontecem h� muitas d�cadas no Brasil. De acordo com a pesquisa feita por Bruno Paes Manso, que tamb�m faz parte do N�cleo de Estudos da Viol�ncia da Universidade de S�o Paulo (USP), depois dos anos 1960, quando ladr�es e criminosos passaram a ser vistos como grande amea�a aos moradores das metr�poles, ideias de uma justi�a retaliativa vinham seduzindo muita gente nas cidades brasileiras. Para anular as a��es dos bandidos, bastaria ser ainda mais forte e violento do que o criminoso. Deste modo, policiais e vigilantes come�aram a se organizar, formando batalh�es especiais que exibiam caveiras como s�mbolo de sua coragem e letalidade. Tais grupos passaram a travar disputas entre si, na tentativa de cumprir em suas �reas de atua��o o papel que o Estado brasileiro n�o parecia capaz de realizar.
Com depoimentos an�nimos de pessoas que atuaram nas mil�cias do Rio de Janeiro, o autor tra�a uma linha do tempo na qual � poss�vel observar o processo de amadurecimento e desenvolvimento dos ideais paramilitares no pa�s. Desde os primeiros grupos da viol�ncia fardada brasileira, quando milicianos e policiais se reuniam em casas noturnas para arquitetar a��es conjuntas, passando pelas parcerias com os tradicionais bicheiros e propriet�rios de m�quinas de ca�a-n�quel, at� as cobran�as por abastecimento de g�s, instala��es clandestinas de eletricidade, �gua e internet, servi�os de seguran�a, assist�ncia social, e arrecada��o com linhas do transporte clandestino.

Inevitavelmente, ao fazer esse levantamento hist�rico das mil�cias, o autor chega a nomes considerados refer�ncia em algumas das organiza��es paramilitares. S�o citados, por exemplo, crimes cometidos pelo ent�o sargento Fabr�cio Queiroz, que a partir de 2007 se tornaria ‘faz-tudo’ do gabinete do ent�o deputado Fl�vio Bolsonaro, e que tamb�m seria investigado pelo esc�ndalo das “rachadinhas”. Al�m dele, s�o lembradas transgress�es do tenente Adriano Magalh�es da N�brega, que viria a ser considerado um dos criminosos mais violentos do Rio, e que foi morto em opera��o policial em fevereiro deste ano.
A liga��o entre milicianos, integrantes da seguran�a p�blica e pol�ticos, portanto, seria a chave para a impunidade em tantos casos de viol�ncia urbana. Os assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 2018, s�o os mais emblem�ticos da ousadia da mil�cia. Em plena interven��o federal no Rio, os criminosos n�o titubearam em matar uma defensora dos direitos humanos que criticava fortemente as a��es policiais em comunidades da cidade, que causavam, majoritariamente, a morte de jovens pretos e pobres. A morosidade das investiga��es sobre o caso mostra que os respons�veis pelos crimes estavam certos em acreditar que poderiam escapar da Justi�a.
Como a pr�pria CPI de 2008 apontou, alguns pol�ticos eram suspeitos de envolvimento com milicianos. Jair Bolsonaro n�o foi citado naquela comiss�o parlamentar, mas, por ser o atual chefe da na��o, sua vida ganha mais destaque e, consequentemente, suas a��es s�o mais vigiadas. O pesquisador descreve em seu livro la�os entre supostos integrantes de grupos milicianos com a fam�lia do atual presidente da Rep�blica e explica como as ideias defendidas por ele alimentam a j� citada vis�o distorcida da realidade, onde combater a viol�ncia com mais viol�ncia pode gerar algum tipo de paz ou, at� mesmo, solucionar o problema da seguran�a p�blica nacional.
“Em suas trajet�rias pol�ticas, Jair Bolsonaro e seus filhos eleitos se dedicaram a defender grupos que compartilhavam com eles ressentimentos e revoltas. A defesa criminosa dos paramilitares e da a��o imoral das pol�cias, presente em toda a carreira parlamentar do cl� Bolsonaro, foi menosprezada por grande parte dos eleitores, como se n�o passassem de falas tresloucadas, sem consequ�ncia. Mesmo diante de v�rias manifesta��es de apologia ao crime, seus colegas parlamentares evitavam puni-los, permitindo improp�rios cada vez mais radicais”, defende o autor.
Ainda segundo Bruno Paes Manso, por sugest�o do pai, “Fl�vio Bolsonaro [ainda como deputado estadual] entregou in�meras medalhas a policiais, mesmo aqueles flagrados em a��es suspeitas. Os agrados acabaram deixando um rastro de afinidades da fam�lia Bolsonaro com milicianos. A insist�ncia em condecorar os maiores vil�es da corpora��o deixou cristalizada a ideologia de guerra que Jair Bolsonaro sempre sustentou”. Em 2018, al�m do atual presidente do Brasil, outros candidatos que defendiam a��es violentas do Estado para o combate � pr�pria viol�ncia foram eleitos. Wilson Witzel, governador do Rio afastado do cargo por suspeitas de corrup��o, e Rodrigo Amorim, deputado estadual respons�vel por quebrar uma placa feita em homenagem a Marielle Franco, s�o alguns exemplos.
A rep�blica das mil�cias deixa claro que as solu��es para o fim das mil�cias, do crime organizado e da corrup��o est�o longe de serem encontradas, mas o pa�s precisar� de muito di�logo e pol�ticas p�blicas para trilhar um caminho diferente. Enquanto ficamos presos em um debate que aclama a viol�ncia como solu��o, alerta o autor, estaremos mais pr�ximos de uma ruptura e de uma guerra fratricida.

» A Rep�blica das Mil�cias – dos Esquadr�es da Morte � Era Bolsonaro
» Bruno Paes Manso
» Editora Todavia
» 302 p�ginas
» R$ 39,90 (livro)
» R$ 17,91 (kindle)