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Estado de Minas BIOGRAFIA

No 1� volume de sua biografia, Obama enumera feitos e admite frustra��es

Ex-presidente norte-americano ainda reflete sobre o papel dos EUA no mundo


08/01/2021 04:00 - atualizado 08/01/2021 07:47

Desde Theodore Roosevelt (1858-1919), quase todos os presidentes dos Estados Unidos deixaram um livro de mem�rias com a sua vers�o e relatos dos anos em que, instalados na Casa Branca, comandaram esta que � hoje uma das pot�ncias de pol�tica externa mais agressiva do mundo. Em Uma terra prometida (Companhia das Letras; A promised land, no original), Barack Obama n�o quebrou essa tradi��o.

Mas � justo que se diga que, embora como seus antecessores tenha pin�ado os epis�dios e as viv�ncias em refor�o � sua imagem idealizada, estabeleceu um ponto de inflex�o pelo estilo intimista como articula nos anos � frente da Presid�ncia o seu cotidiano famliar, a gest�o do poder e a explicita��o de preocupa��es com o racismo estrutural, as desigualdades sociais e de g�nero e as mudan�as clim�ticas. 

Obama admite a frustra��o ao constatar frequentemente os reveses de seus esfor�os para mudar a realidade, deixando em aberto a pergunta, no rol das promessas de igualdade e liberdade dos pais fundadores da na��o: “Ser� que de fato tentamos equiparar a realidade dos Estados Unidos aos seus ideais?”. E em exerc�cio de reflex�o, prossegue: “Ou, pelo contr�rio, estamos decididos, pelo menos na pr�tica, sen�o nos estatutos, a reservar essas coisas a uns poucos privilegiados?”. 

A biografia de Obama traz outro divisor de �guas em rela��o �s obras de seus antecessores explicadas pelo contexto em que a publica. �nico afrodescendente a al�ar a presid�ncia daquele pa�s – foram dois mandatos consecutivos entre 2009 e 2017 –, � a primeira lideran�a internacional a registrar em detalhe, de um lugar privilegiado, a ascens�o do novo populismo de direita em uma na��o de longa tradi��o democr�tica, que assiste hoje, ao final da presid�ncia de Donald Trump, � polariza��o mais intensa e �dios mais marcantes, que mant�m vivo o permanente espectro das quest�es jamais resolvidas pela Guerra da Secess�o.

Em v�rias passagens da obra, Obama detalha a conquista da hegemonia no Partido Republicano desta nova ideologia, que escanteou os “moderados” – antes, em boa medida, parecidos com democratas– consolidando as ideias do Tea Party na nova sigla de Trump, com a exalta��o da “xenofobia, anti-intelectualismo, paranoicas teorias conspirat�rias e antipatia por pessoas negras e de pele escura”. 

Obama avalia as consequ�ncias para os Estados Unidos das contracorrentes que seguem a empurrar a democracia americana para a “beira do precip�cio”, assim definida: “uma crise enraizada no embate entre duas vis�es opostas do que s�o os Estados Unidos e do que deveriam ser; uma crise que deixou a classe pol�tica dividida, enraivecida e desconfiada, e permitiu uma viola��o de normas institucionais, de freios e contrapesos e do respeito a fatos elementares que tanto os respublicanos como os democratas consideravam inatac�veis no passado”, afirma o autor. A era Trump consolida desafios para a democracia em um novo tempo que, na vis�o de Obama, n�o ser�o superados por um �nico novo governo

� frente da presid�ncia, Obama lidou com um pa�s dividido – cujo aprofundamento das diferen�as foi estimulado na era Trump – que alcan�ou em um �nico momento, de forma inequ�voca, consenso compartilhado: por ocasi�o do fim da ca�ada a Osama Bin Laden, com o exterm�nio do l�der da Al Qaeda, que vivia escondido em casa de classe m�dia alta nos sub�rbios de Abbottabad, no Paquist�o. No livro, Obama detalha toda a opera��o, que acompanhou por imagens em tempo real e a cat�rtica comemora��o de j�bilo popular ap�s o desfecho da opera��o. “Aquela uni�o de esfor�os, aquele senso de prop�sito comum s� seriam poss�veis quando o objetivo fosse matar um terrorista?”, indaga ele, constatando, por exemplo, que n�o sentira na noite em que a lei de assist�ncia � sa�de foi aprovada – o Obamacare – o mesmo consenso compartilhado.

“Eu me pegava imaginando o que o nosso pa�s poderia ser caso f�ssemos capazes de aplicar na educa��o de nossas crian�as ou no fornecimento de abrigo para os sem-teto o mesmo n�vel de per�cia e determina��o aplicados na persegui��o a Bin Laden; caso pud�ssemos aplicar a mesma persist�ncia e recursos para reduzir a pobreza, diminuir os gases que contribuem para o efeito estufa ou garantir acesso a creches decentes para todas as fam�lias.” 

Cita��es ao Brasil

O Brasil � citado duas vezes no livro. �ltimo presidente americano a visitar o pa�s entre 19 e 20 de mar�o de 2011, nessa passagem Obama relata o cen�rio em que dispara, em uma sala do Pal�cio do Planalto e por meio de um telefone celular de um assessor, a autoriza��o para a primeira ofensiva militar contra o regime de Muamar Khadafi, na L�bia. Dali, no cora��o do Planalto – o que � decis�o bastante simb�lica considerando-se que o Brasil, por sua pol�tica externa historicamente pac�fica e de negocia��es – o que se registra foi bruscamente alterado no governo Bolsonaro – se abstivera no voto do Conselho de Seguran�a sobre a interven��o na L�bia –, Obama sela para o chefe do Estado-Maior, o almirante Mike Mullen, o destino daquele pa�s: “Est� autorizado”. Assim detonou seis meses de ataques dos Estados Unidos, o que culminaria com a queda e morte de Khadafi. 

“Aquela era a minha primeira visita � Am�rica do Sul como presidente e meu primeiro encontro com a presidente rec�m-eleita Dilma Rousseff. Economista e ex-chefe de gabinete de seu carism�tico antecessor, Lula da Silva, Rousseff estava interessada, entre outras coisas, em incrementar as rela��es comerciais com os Esatdos Unidos. Ela e seus ministros receberam calorosamente nossa delega��o quando chegamos ao pal�cio presidencial (...) Durante v�rias horas conversamos sobre os meios de promover maior coopera��o bilateral em mat�ria de energia, com�rcio e mudan�as clim�ticas. Mas, com as crescentes especula��es em todo o mundo sobre quando e como teriam in�cio os ataques contra a L�bia, ficou dif�cil ignorar a tens�o”, relata Obama. 

Em outra passagem sobre o Brasil, Obama faz refer�ncia ao Brics – bloco que mais tarde se formaliza integrado por Brasil, R�ssia, �ndia, China e �frica do Sul –, cujos representantes participaram de encontro de c�pula do G20 (grupo de pa�ses desenvolvidos e em desenvolvimento), em Londres (2009), e coment�rios sobre o ex-presidente Luiz In�cio Lula da Silva. Sobre o Brics, uma das apostas da gest�o Lula, Obama comenta: “O esp�rito por tr�s dessa associa��o estava claro. Eram todos pa�ses grandes e conscientes de sua import�ncia, que, de uma forma ou de outra, tinham emergido de longos per�odos de torpor. J� n�o se contentavam em ser relegados � margem da hist�ria, ou em ver seus status reduzido ao de pot�ncias regionais. Irritavam-se com o papel desproporcional do Ocidente na gest�o da economia global. E, na crise, viam uma oportunidade de come�ar a virar a mesa”, descreve Obama, considerando simpatizar com o ponto de vista do bloco, que representava pouco mais de 40% da popula��o do planeta.

“Se os Estados Unidos quisessem peservar o sistema global que durante tanto tempo nos servira, fazia sentido dar mais voz a essas pot�ncias emergentes no modus operandi – ressaltando, ao mesmo tempo, que precisavam assumir maior responsabilidade pelos custos de sua manuten��o”, afirmou, criticando, adiante, o fato de que esses pa�ses “n�o se sentiam na obriga��o de custear o sistema como um todo”, pois entendiam ser esse “um luxo que s� o pr�spero e feliz Ocidente tinha condi��es de bancar”. 

Obama, que sempre demonstrou apre�o p�blico por Lula, e � ocasi�o afirmou, em almo�o de l�deres do G20, que ele era “o cara”, o “pol�tico mais popular do mundo”, reservou palavras amb�guas ao ex-presidente brasileiro em suas mem�rias. Depois de considerar que, em visita ao Sal�o Oval (Casa Branca), em mar�o, Lula causara boa impress�o, o ex-presidente americano o descreve: “Ex-l�der sindical grisalho e cativante, com uma passagem pela pris�o por protestar contra o governo militar, e eleito em 2002, tinha iniciado uma s�rie de reformas pragm�ticas que fizeram as taxas de crescimento do Brasil dispararem, ampliando sua classe m�dia e assegurando moradia e educa��o para milh�es de cidad�os mais pobres. Constava tamb�m que tinha os escr�pulos de um chef�o do Tammany Hall, e circulavam boatos de clientelismo governamental, neg�cios por baixo do pano e propinas na casa dos bilh�es”.

A refer�ncia de Obama a Tammany Hall trata da m�quina pol�tica democrata que por 200 anos, at� meados do s�culo passado, dominou Nova York mesclando benevol�ncia aos imigrantes e corrup��o. O autor usou a mesma analogia para descrever Vladimir Putin. 

O valor das mem�rias

Ao concluir o segundo mandato presidencial, Barack Obama e a ex-primeira-dama Michelle assinaram um contrato de US$ 65 milh�es com a Penguin Random House para a publica��o de suas mem�rias. Em 2018, Michelle lan�ou Minha hist�ria, que registra mais de 8 milh�es de exemplares vendidos no Canad� e nos EUA. J� o livro de mem�rias de Obama, apresentado em lan�amento simult�neo em todos os pa�ses em 17 de novembro, dois meses antes da posse do democrata Joe Biden – levanta a expectativa de que se torne o mais vendido na hist�ria de um ex-presidente: nas primeiras 24 horas, foram comprados 800 mil exemplares nos Estados Unidos e no Canad�. 

Obama explica no pref�cio da obra que cogitou, inicialmente, escrever em um ano um �nico volume de 500 p�ginas. Mas o primeiro volume de Uma terra prometida cresceu, alcan�ou 751 p�ginas: perspassa a inf�ncia, o in�cio da carreira pol�tica, a primeira elei��o ao senado estadual, seguida da elei��o ao senado nacional. Conta a sua vit�ria hist�rica em 2008, estressa a situa��o de emerg�ncia em que recebeu o pa�s, com a “economia devorada pela Grande Recess�o”, assim como as dificuldades no governo, que teve muitas de suas iniciativas bloqueadas pelo Congresso, dominado por republicanos, a partir de 2010.

O primeiro volume, que cobre os dois primeiros anos de seu primeiro mandato, se encerra com a ca�ada a Osama Bin Laden, em maio de 2011. Nele, Obama contextualiza as suas decis�es como presidente, detalha a sua linha de pensamento, os obst�culos e restri��es que enfrentou em cada momento, deixando claro a racionalidade de suas a��es, porque governou como governou

Muitos dos epis�dios mais pol�micos do governo Obama n�o est�o nesse volume e possivelmente ser�o abordados no segundo. Entre estes est�o a espionagem da Ag�ncia de Seguran�a Nacional Americana (ANS) – que segundo den�ncia de Edward Snowden montou um esquema de espionagem americano contra l�deres de estado, entre os quais Dilma Rousseff, que teve o telefone grampeado. O epis�dio abriu uma crise diplom�tica entre os pa�ses e Dilma, que � �poca tinha um jantar marcado com Obama na Casa Branca, desmarcou a visita aos EUA, tendo recebido pessoalmente um pedido de desculpas em Bras�lia de Joe Biden, ent�o vice-presidente. H� outros temas esperados para o segundo volume, como o fortalecimento do invasivo estado de vigil�ncia permanente sobre cidad�os; o uso de drones para atacar no Afeganist�o; e a pol�tica de imigra��o. 

As promessas da democracia americana, – que sob Trump, assinala Obama, afastaram o pa�s ainda mais de seus ideais fundadores – percorrem longa tradi��o de esquecimento na experi�ncia americana. “Est� cristalizado nos documentos da funda��o do pa�s, que proclamavam que todos os homens eram iguais e ao mesmo tempo consideravam um escravo como tr�s quintos de um homem”, afirma. O autor prossegue invocando a luta de desiguais por igualdade com liberdade, que travaram no passado sufragistas e continuam a travar no presente sindicalistas, carregadores de malas, l�deres estudantis, imigrantes, ativistas do movimento LBBTQ, entre tantos outros exclu�dos da igualdade perante a lei e da igualdade de oportunidades. 

Reconhecendo a tenta��o evocada por muitos de colocar fim ao mito da preval�ncia de tais ideias dos fundantes da Am�rica – que, sob a an�lise hist�rica do passado e do presente, apontam antes para a sua subordina��o � conquista, a um “sistema de castas raciais” e ao “capitalismo ganancioso” –, Obama avisa que n�o est� pronto para desistir dessa possibilidade. “O veredito ainda est� em aberto.”  

Por isso, o ex-presidente dedica a obra �s futuras gera��es, nas quais deposita a sua esperan�a para a mudan�a.

Trecho
Lula, na vis�o de Obama

“Ex-l�der sindical grisalho e cativante, com uma passagem pela pris�o por protestar contra o governo militar, e eleito em 2002, tinha iniciado uma s�rie de reformas pragm�ticas que fizeram as taxas de crescimento do Brasil dispararem, ampliando sua classe m�dia e assegurando moradia e educa��o para milh�es de cidad�os mais pobres. Constava tamb�m que tinha os escr�pulos de um chef�o do Tammany Hall, e circulavam boatos de clientelismo governamental, neg�cios por baixo do pano e propinas na casa dos bilh�es.”  

Uma terra prometida
De Barack Obama
Tradu��o: Berilo Vargas, C�ssio de Arantes Leite, Denise Bottmann e Jorio Dauster
Companhia das Letras
764 p�ginas
R$ 79,90


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