
O livro, traduzido por C�ssio de Arantes Leite, acaba de ser relan�ado pela Alfaguara em bela edi��o (a anterior, com o t�tulo “Meridiano sangrento — O anoitecer vermelho no oeste”, saiu pela Nova Fronteira em 1991).
“Meridiano” �, em parte, inspirado em eventos reais. Em meados do s�culo 19, seu protagonista an�nimo, referido apenas como “kid” na maior parte do livro, junta-se � gangue de ca�adores de escalpos liderada por John Joel Glanton. No bando, destaca-se o juiz Holden, um dos personagens mais aterradores (re)criados pela literatura ocidental: “Um sujeito enorme vestindo um imperme�vel de oleado entrara na tenda e removera o chap�u. Era calvo como uma rocha e n�o tinha tra�o de barba e nenhuma sobrancelha acima dos olhos, tampouco c�lios. Ultrapassava os dois metros e dez de altura e continuou fumando seu charuto at� mesmo ali naquela tenda n�made de Deus”. Em sua primeira apari��o, Holden adentra a capela improvisada apenas para difamar o pregador, dizer que ele � o diabo e instigar o populacho contra o infeliz. � uma de suas muitas travessuras, por assim dizer. Fogo, caos e morte caminham com ele na “noite que � eterna e sem nome”.
Quando de seu lan�amento, em 1985, “Meridiano” foi encarado por alguns como uma esp�cie de renovador do western. G�nero norte-americano por excel�ncia, seja na literatura, seja no cinema (n�o obstante as investidas de cunho p�s-modernista e par�dico de g�nios europeus como Sergio Leone), a verdade � que o western j� havia passado por diversas renova��es desde meados do s�culo 20 pelas m�os de cineastas como Nicholas Ray, Sam Peckinpah e George Roy Hill, e de escritores como Oakley Hall, cujo “Warlock” (1958) foi finalista do Pulitzer, e Charles Portis, autor do excelente “Bravura ind�mita” (1968, tamb�m lan�ado no Brasil pela Alfaguara).
E aqui cabe um par�ntese sobre o trabalho de McCarthy com o cinema e a televis�o: “Onde os velhos n�o t�m vez”, roteiro depois novelizado pelo pr�prio escritor, rendeu a obra-prima de Joel e Ethan Coen; “A estrada” foi adaptado por John Hillcoat; “O conselheiro do crime”, um roteiro original, talvez seja um dos filmes mais subestimados da d�cada passada, de Ridley Scott; e, na TV, a s�rie “Visions” trouxe um epis�dio assinado por McCarthy em 1977 (“The gardener’s son”) e a HBO produziu uma adapta��o da pe�a “The sunset limited” por Tommy Lee Jones. Ali�s, essa pe�a teve uma boa montagem brasileira ali por 2012, dirigida por F�bio Assun��o.
E aqui cabe um par�ntese sobre o trabalho de McCarthy com o cinema e a televis�o: “Onde os velhos n�o t�m vez”, roteiro depois novelizado pelo pr�prio escritor, rendeu a obra-prima de Joel e Ethan Coen; “A estrada” foi adaptado por John Hillcoat; “O conselheiro do crime”, um roteiro original, talvez seja um dos filmes mais subestimados da d�cada passada, de Ridley Scott; e, na TV, a s�rie “Visions” trouxe um epis�dio assinado por McCarthy em 1977 (“The gardener’s son”) e a HBO produziu uma adapta��o da pe�a “The sunset limited” por Tommy Lee Jones. Ali�s, essa pe�a teve uma boa montagem brasileira ali por 2012, dirigida por F�bio Assun��o.
Voltando aos livros e westerns, n�o custa lembrar que o mesmo ano de 1985 trouxe o premiado “Lonesome Dove”, de Larry McMurtry, que pode ser encontrado pelos sebos com o t�tulo “Pra l� do fim do mundo” (editora Best Seller, tradu��o de Jacyr Pasternak). Ou seja, quando McCarthy lan�ou “Meridiano”, o g�nero j� estava calejado de interven��es heterodoxas e reimagina��es de todos os tipos, mas � claro que nada disso diminui o impacto e a originalidade da investida.
A extrema viol�ncia de suas p�ginas, amplificada pela sintaxe particular�ssima do autor, � inserida em um contexto no qual dan�am, entrela�ados, os ecos de um helenismo h� muito corrompido, as vozes de outros gigantes da literatura e a luz ba�a de um gnosticismo enviesado. S�o como os galhos da �rvore esturricada que aparece a certa altura — “Era uma �rvore solit�ria queimando no deserto”; “Quando o sol surgiu, ele jazia adormecido sob o esqueleto fumegante de galhos enegrecidos”.
Na aridez desse espa�o, em tal ambiente narrativo, o mal desce como “uma praga de granizo sa�da de um c�u imaculado” e a cat�base me parece externa ao livro, na medida em que � operada pelo leitor no ato de palmilhar suas p�ginas: os personagens vagueiam, e n�s descemos at� eles, “cada um percorrendo o caminho pelo qual o outro viera, perseguindo, como cabe a todo viajante, invers�es sem fim das jornadas de outros homens”.
Representa��o da viol�ncia
No cons�rcio com tais “�nimas”, a brutalidade nos arranha e por vezes quase arranca os olhos com sua gratuidade absoluta. Os desinteligentes que procuram por elementos que “justifiquem” as passagens violentas dar�o com os burros n’�gua, para variar. Em McCarthy, encontramos aquelas “t�o extravagantemente crudel�ssimas esp�cies de matan�as” a que Vico se refere na “Ci�ncia nova”, referindo-se � “Il�ada”, de Homero.
A representa��o da viol�ncia � algo t�o virtuos�stico que, de fato, a lembran�a do poema hom�rico est� longe de ser gratuita. A ira de Aquiles inaugura a literatura ocidental em meio � guerra e com um rio de sangue (pergunte ao Escamandro). � certa altura de “Meridiano”, o juiz Holden faz sua c�lebre digress�o sobre a guerra como “a forma mais leg�tima de divina��o”, “o jogo supremo” e “um for�ar da unidade da exist�ncia”. “A guerra � Deus”, ele arremata. Nadamos no mesmo rio de �guas rubras, embora a margem da qual sa�mos j� quase n�o esteja vis�vel.
A representa��o da viol�ncia � algo t�o virtuos�stico que, de fato, a lembran�a do poema hom�rico est� longe de ser gratuita. A ira de Aquiles inaugura a literatura ocidental em meio � guerra e com um rio de sangue (pergunte ao Escamandro). � certa altura de “Meridiano”, o juiz Holden faz sua c�lebre digress�o sobre a guerra como “a forma mais leg�tima de divina��o”, “o jogo supremo” e “um for�ar da unidade da exist�ncia”. “A guerra � Deus”, ele arremata. Nadamos no mesmo rio de �guas rubras, embora a margem da qual sa�mos j� quase n�o esteja vis�vel.
Ao cons�rcio supracitado, soma-se a conversa com a tradi��o (ou com o que resta dela). H� in�meras cita��es e paralelos no texto de McCarthy, e muitos deles apontam para aquelas “invers�es sem fim” e travessias. � nesse esp�rito que o velho menonita que admoesta os personagens ainda no come�o do romance (“Cruzem aquele rio com seu ex�rcito de flibusteiros e n�o v�o cruzar de volta”) remete ao “profeta” que Herman Melville recriou em “Moby Dick” (“De qualquer modo, j� est� combinado e determinado; imagino que alguns marinheiros tenham que ir com ele; de uns e de outros, que Deus tenha piedade!”).
Aludi �s raias do indiz�vel no primeiro par�grafo. De fato, o sentido da descida mccarthyana � na dire��o da fuma�a e dos fantasmas: em seu desfecho, a viol�ncia final � t�o aterradora que n�o pode ser descrita, � um al�m ou aqu�m do verbo, um aceno decisivo, apocal�ptico. Ali est�o os “�ltimos de verdade”, e um deles, apesar de todas as viagens e aventuras, ainda n�o parece preparado para o abra�o do nada, para a dan�a derradeira. Mas, por outro lado, quem est�, n�o � mesmo?
*Andr� de Leones � autor do romance “Eufrates” (Jos� Olympio), entre outros
Trecho
“Ele se levantou e virou na dire��o da cidade e suas luzes. Po�as de mar� brilhantes como cadinhos de fundi��o entre as rochas escuras onde caranguejos fosforescentes escalavam de volta. Ao passar pelo capim da praia, ele olhou para tr�s. O cavalo n�o se movera. A luz de um navio piscou entre as vagas. O potro recostava no cavalo com a cabe�a baixa e o cavalo tinha os olhos fixos ao longe, onde o entendimento humano n�o alcan�a, onde as estrelas se afogam e as baleias carregam suas vastas almas pelo oceano negro absoluto.”

Livros de Cormac McCarthy traduzidos no Brasil
“Todos os belos cavalos” (1992)
“A travessia” (1994)
“Cidades da plan�cie” (1998)
“Onde os velhos n�o t�m vez” (2005)
“A estrada” (2006)
Meridiano de sangue
Cormac McCarthy
Tradu��o de C�ssio Arantes Leite
352 p�ginas
R$ 69,90