
“'Tu acha mesmo que a gente n�o trabalha mais do que o dono desta rede de supermercado? Esse cara nem sequer trabalha, Marques. Mas, mesmo que ele trabalhasse, n�o ia poder trabalhar tanto, a ponto de merecer o mar de dinheiro que ele tem, enquanto a gente trabalha e trabalha s� pra ganhar a quantidade de dinheiro exata pra n�o morrer de fome e continuar trabalhando e trabalhando."
"O direito de abrir a boca e dizer que alguma coisa te pertence, ou seja, o tal do direito � propriedade privada, esse direito devia andar de m�o dada com o merecimento, e merecimento � sin�nimo de trabalho. Merecimento � rosto suado e m�o calejada. N�o existe outro tipo de merecimento. O fiel da balan�a mais justo � o trabalho. E a balan�a mais justa mostra pra quem quiser ver que o dono dessa rede de supermercado t� ganhando bem mais dinheiro do que merece, enquanto os funcion�rio, incluindo eu e tu, tamo ganhando bem menos dinheiro do que a gente merece'”
"O direito de abrir a boca e dizer que alguma coisa te pertence, ou seja, o tal do direito � propriedade privada, esse direito devia andar de m�o dada com o merecimento, e merecimento � sin�nimo de trabalho. Merecimento � rosto suado e m�o calejada. N�o existe outro tipo de merecimento. O fiel da balan�a mais justo � o trabalho. E a balan�a mais justa mostra pra quem quiser ver que o dono dessa rede de supermercado t� ganhando bem mais dinheiro do que merece, enquanto os funcion�rio, incluindo eu e tu, tamo ganhando bem menos dinheiro do que a gente merece'”
Obstinado e perspicaz, Pedro quer dinheiro e conforto, mas se sente explorado no trabalho e n�o v� possibilidade de subir na vida levando uma vida honesta, porque, segundo ele, o sistema capitalista n�o permite essa melhoria aos trabalhadores. Ele, ent�o, convence Marques a come�ar a vender maconha na comunidade onde vivem. Assim, logo melhoram de vida e ganham muito dinheiro, mas v�o sofrer as terr�veis consequ�ncias deste tipo de atividade. As p�ginas finais de “Os supridores”, inclusive, s�o eletrizantes, uma �tima surpresa liter�ria que surge do talento de Falero.
MARX
Longe de fazer apologia ao tr�fico, Falero constr�i uma narrativa �gil, folhetinesca, de cunho filos�fico e sociol�gico, divertida e repleta de ironia e cr�ticas sociais, para tratar da desigualdade que massacra as classes pobres no Brasil. A grande sacada da obra � introduzir o pensamento de Karl Marx de maneira n�o acad�mica e popular no cotidiano de Pedro, que � leitor do pensador alem�o. Embora possam parecer anacr�nicas, suas impress�es a respeito do marxismo s�o bem atuais. Anacr�nico, como mostram os personagens, � achar que o trabalhador precisa aceitar o seu destino e ser eternamente pobre assalariado.
Mas tudo isso n�o bastaria para arrebatar os leitores. O grande diferencial de “Os supridores”, que garante o realismo da aventura perigosa de Pedro e Marques, � a dupla linguagem da obra: a formal, que permeia a trama, e a coloquial ou oral, que inclui erros intencionais do portugu�s falado, empregada nos di�logos dos personagens.
A fic��o realista de “Os supridores” pode parecer um corpo estranho na elitista literatura brasileira e at� chocar o leitor desavisado com sua g�ria “pau no cu”, mas Falero vai ao ponto. “S�o brancas, a maioria homens, heterossexuais, de classe m�dia alta, as pessoas que produzem literatura no Brasil. Quando o povo brasileiro pega aquilo pra ler, n�o se enxerga ali em nada”, disse ele ao Estado de Minas.
Jos� Falero � o pseud�nimo de Jos� Carlos da Silva J�nior, criado na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Autodidata e agora jovem talento liter�rio, ele apresenta ao Brasil o Sul sem clich� “europeu”. Nos contos de “Vila Sapo”, seu primeiro livro, Falero j� tratou do pa�s real em facetas. Agora, d� outro tapa na cara da elite com sua nova obra. Sem moralismos, fala da dura realidade na periferia, de preconceito, marginalidade, ignor�ncia e pobreza. “Uma coisa que queria que aparecesse no livro � associar a viol�ncia urbana �s injusti�as sociais. Muita gente nega isso, diz que � uma fal�cia. E n�o �”, afirma o escritor.
Falero, com sua narrativa forte e arrebatadora, engrossa a lista dos autores contempor�neos que escracham um pa�s racista, machista, sufocado por desigualdades diversas, como j� o fazem tamb�m “Torto arado”, de Itamar Vieria J�nior; “Marrom e amarelo”, de Paulo Scott; e “O avesso da pele”, de Jeferson Ten�rio. N�o h� como ficar indiferente ao Brasil real? T� ligado?

”OS SUPRIDORES”
• Jos� Falero
• Editora Todavia
• 302 p�ginas
• R$ 46,99 (impresso)
• R$ 25,11 (e-book)
TRECHO DO LIVRO
“Acho que o cara que mais influenciou o meu pensamento foi um fil�sofo alem�o. O nome dele era Marx. Inclusive, todo esse lance que a gente conversa, os nego chama isso de marxismo, por causa dele, t� ligado? Ele foi o primeiro a ver o mundo do ponto de vista que te mostro quando a gente conversa: o ponto de vista que nos interessa, o ponto de vista que favorece o trabalhador, e n�o o explorador do trabalho.
– O nome do cara era Marques, que nem o meu?
– N�o. Era Marx, com xis.
– Hum... T�, mas se esse bagulho que a gente conversa n�o � novidade, por que ningu�m nunca botou em pr�tica?
– J� tentaram. Mas n�o funcionou.
– N�o funcionou?
– N�o funcionou.
– Mas como assim. N�o funcionou por qu�?
Pedro riu.
– N�o funcionou porque ainda � uma ideia elevada demais pro esp�rito da maioria das pessoas no mundo. N�o funcionou porque � uma ideia que surgiu antes da hora. N�o funcionou porque ningu�m quer que funcione, mano. Os rico n�o quer que o mundo seja justo, mas os pobre tamb�m n�o quer. Pode acreditar: nem as pessoa que mais sofre neste mundo de injusti�a, nem elas gosta da ideia dum mundo justo quando tu explica pra elas como ia ser um mundo justo. Sabe por qu�? � porque num mundo justo, justo de verdade, ningu�m ia conseguir ficar rico. Ia ser imposs�vel enriquecer. (...) Num mundo justo, o padr�o de vida das pessoa ia depender do quanto elas trabalha. Existe um limite at� onde a gente consegue fazer as coisa sozinho. Esse limite � a nossa capacidade m�xima de trabalho, e varia um pouco de pessoa para pessoa. Mas nunca, Marques, nunca a capacidade m�xima de uma pessoa vai ser suficiente para que essa pessoa consiga acumular riqueza. N�o tem como. Tendeu? S� com o seu trabalho, tu n�o vai ficar rico nunca. A �nica forma de tu acumular riqueza � aproveitando algum mecanismo social, legal ou ilegal, pra te adornar de dinheiro mais do que a sua capacidade m�xima de trabalho diz que tu merece.”

ENTREVISTA
JOS� FALERO
“A linguagem como ferramenta de domina��o”
Voc� teve alguma influ�ncia liter�ria?
Comecei a ler muito tarde. Com 20 anos, por a�. Minha fam�lia n�o lia, meus amigos n�o liam. O livro n�o era uma realidade. Eu associava a leitura de livros com obriga��o. Pra mim, n�o fazia sentido uma pessoa ler por vontade pr�pria. Minha m�e sempre lia, mas eram livros esp�ritas. Eu achava que a pessoa s� lia quando fosse obrigada pelo col�gio, pela faculdade, ou quando estivesse numa busca espiritual, digamos assim. Era o caso da minha m�e, ela s� lia livros esp�ritas. E a� minha irm� foi para a universidade, come�ou a ler muito. E quando ela vinha nos visitar, dizia que eu tinha quer ler livros. “N�o, mas eu n�o gosto de ler”, eu dizia. Eu gostava de revista em quadrinhos, de videogame, de filmes. E argumentava isso, o filme tem imagem, tem som. A hist�ria em quadrinhos traz ilustra��es, com o videogame posso controlar os personagens. Todas essas tr�s plataformas tamb�m contam uma hist�ria e t�m mais interatividade, por que vou gostar de um livro?
O que abriu as suas portas para os livros, ent�o?
Minha irm� um dia falou: “N�o vou mais tentar te convencer a ler”. Mas ela disse uma coisa que me pegou: “Voc� tem que entender que sua opini�o sobre livros n�o importa porque nunca leu um livro inteiro. Depois de ler um livro inteiro, fala comigo”. A�, eu queria provar que ela estava enganada. Arranjei um livro emprestado, o primeiro livro que eu li chamava “Besta fera”, sobre lobisomem. Comecei a ler. Claro, eu podia mentir, podia dizer pra ela que li o livro inteiro e n�o gostei. Mas eu queria levar o livro do in�cio ao fim e dizer pra ela que n�o gostei. Mas acabei adorando. E depois daquele primeiro livro n�o parei mais de ler. Foi assim que as portas foram abertas para mim. N�o foi um autor espec�fico.
Os seus livros, “Vila Sapo” e “Os supridores”, arrebatam o leitor pela linguagem coloquial e contextualizada na pe- riferia. Com essa tem�tica de g�rias, palavr�es, voc� pensou que poderia ter resist�ncias?
Quando decidi que queria escrever, fui estudar as ferramentas da produ��o de texto. Eu achava: como vou escrever se n�o sei usar as ferramentas? � como um carpinteiro que n�o sabe usar um martelo. Cheguei a pensar que seria desagrad�vel, porque detestava portugu�s, era o que mais detestava no col�gio. S� que quando fui estudar por conta pr�pria, acabei me apaixonando pela gram�tica. E durante muito tempo escrevi de uma maneira tradicional, que � uma quest�o de classe. Escrevia reproduzindo uma linguagem que n�o � a linguagem da minha classe, a norma dita culta. Conversei com v�rias pessoas que escreviam e algumas defendiam que pelo menos nos di�logos a linguagem tinha que ser mais informal. Algumas foram mais radicais e diziam que at� mesmo na narrativa a linguagem deveria ser mais informal. Eu defendia a norma dita culta. E essas pessoas nunca tinham argumento pra me convencer do contr�rio. Isso mudou porque um dia eu conversei com um cara que me dava aula numa universidade. E a gente conversou uma madrugada inteira sobre lingu�stica. E ele tinha argumentos muito bons.
Quais argumentos?
Ele me mostrou como a linguagem � uma quest�o de classe. Uma coisa que t� muito em pauta hoje na academia � que n�o existe o certo e o errado. Existem as formas diferentes de falar. Existe a forma como eu falo na minha quebrada, � uma forma de falar deslegitimada pela estrutura social preconceituosa. Enfiam goela abaixo das pessoas uma forma de falar que n�o � forma delas falarem no seu cotidiano. Foi a primeira vez que entendi a linguagem como ferramenta de domina��o, que associei lingu�stica com sociologia. Comecei a perceber que o modo que eu escrevia era uma viol�ncia com o modo como eu mesmo falo. Comecei a pensar: quero experimenar isso, escrever da forma como me expresso, como meus parentes se expressam, como meus vizinhos se expressam. “Vila Sapo” foi o resultado dessa experimenta��o. “Os supridores” j� estava pronto com aquela minha escrita antiga. Estava pronto, mas eu n�o consegui publicar. E esse mesmo trabalho que fiz no “Vila Sapo”, voltei e fiz em “Os supridores”. E em “Os supridores” fiz outra experi�ncia ainda, mantive essa l�ngua culta, formal, na narrativa em terceira pessoa. E usei a linguagem informal nos di�logos.
Voc� enfrentou resist�ncia de editoras por causa do tema e da linguagem do livro?
Muita resist�ncia para publicar. “Os supridores” tentei publicar por v�rios meses, entrei em contato com v�rias editoras. Nunca me responderam. Escrevi uma segunda vers�o, reescrevi o livro e tentei publicar de novo. E nenhuma editora. E teve ainda a terceira vers�o, a dos di�logos (linguagem coloquial) e essa sim foi publicada. Mas acho que n�o tem a ver com a tem�tica das drogas, de palavras. � mais uma quest�o assim: se a gente for analisar a sociedade brasileira hoje, tem uma s�rie de pautas que as pessoas est�o debatendo, que n�o se debatia 20 anos atr�s. E o que trouxe essas pautas? Foi a partir do momento em que se empregaram pol�ticas p�blicas, por exemplo, as cotas para pessoas negras, de baixa renda, de periferia entrarem para a universidade. E s�o essas pessoas que, dentro do mundo acad�mico, geraram debates de que j� se falava desde os anos 60, mas da maneira como � hoje � mais recente, o racismo estrutural, o machismo estrutural, a import�ncia de a gente entender que a periferia n�o pode ser estigmatizada da forma como � diariamente nos jornais. N�o � um lugar s� de viol�ncia, � onde as pessoas produzem cultura.
O rap e o funk sofrem preconceito de parte do p�blico, por serem considerados arte “menor” por causa do portugu�s errado, dos palavr�es. O rap influenciou sua literatura?
Muito. O rap e o samba influenciaram muito a minha li- teratura. Essas coisas s�o vistas como menores pela mesma raz�o at� certo tempo, at� o in�cio do s�culo 20. Tu era preso se fosse preto e pego com um cavaquinho, um pandeiro na m�o. Tem gente que pesquisa isso e chegou � conclus�o de que a palavra malandro, a origem era essa, a rapaziada que se escondia para tocar, para fazer samba. Este � o pa�s em que a gente vive. A gente n�o t� curado, digamos assim, desse elemento estruturante da nossa sociedade que � o racismo. Sobre a linguagem, a gente sabe como se constru�ram as periferias nos grandes centros urbanos do Brasil. Quando aconteceu a aboli��o da escravid�o, aboli��o que nunca se efetivou, as pessoas foram abandonadas � pr�pria sorte pelo Estado. Fodam-se. Virem-se. Deem o seu jeito. O Estado brasileiro, ent�o, traz europeus para remunerar, porque n�o se propunha a remunerar pessoas pretas pelo trabalho. Ent�o, incentiva que venham italianos, alem�es, paga a viagem dessas pessoas, d� terras, d� incentivo econ�mico. O Estado brasileiro inclusive indenizou os propriet�rios de escravizados. Essas pessoas (ex-escravos) � que v�o construir as periferias do Brasil, conviver � margem da sociedade. E essas pessoas nessas periferias desenvolvem uma maneira de falar bastante peculiar. Se tem uma coisa que t� se democratizando no Brasil � a pobreza e a mis�ria. Hoje em dia, uma pessoa pode ser branca e nascer pobre na periferia de uma grande cidade. Mas o jeito de essa pessoa falar vai ser fortemente influenciado pelo jeito que as pessoas pretas falavam desde os prim�rdios das constru��es dessas periferias. Um pequeno exemplo: o lance de concordar com o plural. Ao inv�s de eu dizer “n�s chegamos naquele lugar, n�s chegou l�”. Esse modo de falar. O que acontece? V�rias etnias foram trazidas � for�a pra c�, foram sequestradas. O idioma deles tinha uma caracter�stica bastante inteligente. Que � a seguinte: se uma part�cula t� no plural, as outras n�o precisam estar porque � redundante. � simples. Ent�o, se eu digo n�s, n�o preciso dizer estamos, n�o preciso refor�ar isso no verbo. Quando digo n�s, j� sei que s�o v�rios. Eles tinham esse modo de falar l�. Quando chegam aqui e s�o obrigados a falar portugu�s, eles at� aprendem, mas incorporam essas detalhes do jeito que eles falavam l�.
Existe discrimina��o na linguagem tamb�m?
A gente tem uma linguagem fortemente influenciada por essas pessoas, e assim como o rap, assim como o samba, essa linguagem � discriminada n�o por outro motivo que n�o a quest�o racial. � criminalizada porque � coisa de preto. Esse � o problema, porque � coisa de preto. O Brasil � um pa�s onde quanto mais coisas tu tiver que associem � cultura das pessoas pretas, mais vai ser discriminado. A linguagem da m�sica que escuto. Quanto mais elementos tiver que te liguem � cultura africana, pior vai ser enxergado pela nossa sociedade.
A literatura ainda ocupa pouco esse espa�o da periferia?
Passa exatamente por essa cultura. A popula��o brasileira l� pouco. Recentemente, fizeram levantamento. Num pa�s de 200 milh�es de habitantes, 93 milh�es n�o leram um �nico livro nos �ltimos tr�s anos. O que explica isso? Quando tu pega um livro, ele � produzido por uma classe muito espec�fica de pessoas. Isso tamb�m j� foi mapeado. S�o brancas, a maioria homens, heterossexuais, de classe m�dia alta, as pessoas que produzem literatura no Brasil. Quando o povo brasileiro pega aquilo pra ler, n�o se enxerga ali em nada. Nem na linguagem, nem na forma como � escrito, nem nos eventos que acontecem com os personagens. O personagem pensa assim: cara, t� meio triste. Vou viajar para Paris e ver o que acontece. E l� se desenvolve a trama. Isso � a realidade de quem no Brasil? A realidade do brasileiro � a seguinte: ele quer um trampo e n�o tem passagem para ir l� fazer a entrevista, tem que pedir pro vizinho. Essa � a realidade do povo brasileiro, �nibus lotado para ir trabalhar, outro filho nascendo e n�o tem dinheiro [Marques, personagem de “Os supridores”] para comprar o leite, fraldas. Ent�o, essa realidade n�o � vista nem na forma nem no conte�do da literatura brasileira de uma maneira geral. A literatura demonstra esse preconceito de ra�a e de classe mais do que a m�sica, por exemplo. Mas � mais do que isso.
Na m�sica tamb�m � assim?
A gente vive num pa�s onde nasceu Cartola, e o rei da m�sica � o Roberto Carlos. � um absurdo. � inconceb�vel. Todo mundo sabe no Brasil o que foi a Jovem Guarda, pelo menos j� ouviu falar. Mas quando tu pergunta o que � o Cacique de Ramos ningu�m sabe o que �. Cacique de Ramos � de onde saiu Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Jorge Arag�o. Eles inventavam instrumentos l�. E l�gico que isso � invisibilizado. Tem muitos exemplos. O pr�prio samba e a forma como ele foi historicamente tratado no Brasil. As pessoas chegavam a ser presas. E a� surge a bossa-nova. O que � a bossa-nova? Mant�m o ritmo do samba, tira tudo que pode associar aos pretos, tira toda a percuss�o que remetia aos terreiros de umbanda, tira o pandeiro, o rebolo, o tant�, o cavaquinho. E deixa um viol�o, bota uma flautinha e mant�m o ritmo de samba mais branco. � isso que o Brasil vai exportar, mais at� do que o samba. � um absurdo, n�o � uma coisa restrita � literatura
No Sudeste, a gente tem uma imagem do Sul de pa�s europeu, de gente de olho azul. E seu livro mostra exatamente outra realidade, a da periferia, da pobreza.
Morei em Campo Grande, e uma menina bastante racista que conheci l� me disse uma frase assim: “Uma vez, eu fui l� pra tua terra e foi a maior decep��o, porque disseram que era s� gente bonita, e quando cheguei l� tinha um tanto de preto”. � exportada de Porto Alegre uma ideia fantasiosa, mentirosa. Mesmo quem mora l� tem essa falsa imagem. Quando lancei meu primeiro livro, “Vila Sapo”, foi bem aceito, vendeu bem. Mas muita gente de classe m�dia alta leu o livro e ficou t�o surpresa como as pessoas de fora de Porto Alegre. Vieram falar comigo, eu achava que isso era s� no Rio, em S�o Paulo. As pessoas n�o conhecem a cidade onde vivem.
Existem outros autores que mostram essa realidade?
Tem o Jeferson Ten�rio [autor de “O avesso da pele”], que veio do Rio, mas viveu um tempo numa comunidade de Porto Alegre. Ele traz um pouco dessa quest�o. Tem Paulo Scott, com “Marrom e amarelo”, que mostra essa Porto Alegre fora do Centro. N�o � comum a literatura ga�cha retratar esses espa�os. N�o quero me esquecer de falar do pessoal do Slam. Muitas vezes, o pessoal do mundo liter�rio torce o nariz, n�o considera aquilo literatura. Esse pessoal, quando torce o nariz para o Slam, tem um pouco de recalque, porque o Slam consegue fazer tudo que o pessoal da literatura sempre quis, que � mover a massa. Nesses eventos h� uma massa de gente.
Uma surpresa de “Os supridores” � a aula sobre Karl Marx que Pedro, o protagonista, d� para o amigo Marques, sobre a explora��o do trabalho. Como foi essa ideia de introduzir Marx no livro?
Gosto de pensar a escrita como filosofia aplicada. Quando sento para escrever, o que acaba indo para o papel s�o as ideias sobre as quais filosofo com frequ�ncia. Quando escrevi “Os supridores”, essas ideias do marxismo estavam borbulhando na minha cabe�a. Eu tinha come�ado a ter contato com ideias marxistas e ao mesmo tempo estava trabalhando num supermercado. Ent�o, imagina um cara que t� compreendendo coisas como a mais-valia e � explorado num supermercado. Isso foi refletido no livro. Muita gente tem falado em traduzir o marxismo para uma linguagem mais simples. A minha ideia foi exatamente essa, foi de maneira espont�nea. O marxismo de uma perspectiva acad�mica e mais formal eu n�o entendo assim. Me esforcei para compreender o marxismo exatamente como Pedro compreende. Uma coisa que queria que aparecesse no livro � associar a viol�ncia urbana �s injusti�as sociais. Era uma coisa que queria que ficasse clara no livro. Muita gente nega isso, diz que � uma fal�cia. E n�o �. Como diz na letra dos Racionais: “Muitas vezes n�o tem jeito, a solu��o � roubar”.
A injusti�a social e a falta de oportunidade de trabalho empurram os jovens para a criminalidade, como ocorreu com Pedro e Marques em “Os supridores?”
N�o resta d�vida disso. Pra come�o de conversa, a criminalidade n�o t� s� nas periferias O que mais tem � empres�rio que sonega imposto, gente de grande empresa, que n�o precisa e comete crime. � muito dif�cil justificar uma pessoa que tem uma megraempresa e sonega impostos. A �nica coisa que explica isso � a gan�ncia. Agora, quando tu tem uma casa de um c�modo, quando chove, chove dentro de casa, molha tua cama, uma cama s�. Quando a tua casa se equilibra na beira do barranco, quando seus filhos nascem e se criam ali sem perspectiva nenhuma, de nada, sem lazer, sem direito a estudo digno, a caminhar 10, 20 quil�metros para ir � escola. Quando a tua realidade � essa, a rela��o com a criminalidade vai ser outra. Gosto muito do Racionais, porque tudo o que penso eles j� entenderam antes do que eu e sempre t�m uma resposta: “Me digam que � feliz quem n�o se desespera vendo seu filho que nasceu no ber�o da mis�ria”. � justamente disso que se trata.
(PN)