
O trabalho de compila��o de toda a obra come�ou em 1989, com a chegada do arquivo da
escritora
ao
Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais
. De l� pra c�, a Editora UFMG publicou, em 2001,
Henriqueta Lisboa: poesia traduzida
e, em 2003, os organizadores foram convidados por Abigail Lisboa de Oliveira Carvalho, sobrinha e respons�vel pelo esp�lio, a cuidar da edi��o da obra completa. Com a morte de Abigail, em 2006, o trabalho foi interrompido.
Reinaldo Marques a aproxima da tradi��o dos escritores cr�ticos, sempre em esfor�o permanente de atualiza��o te�rica. “A avalia��o do papel dela e da import�ncia da obra nunca foi devidamente feita. Com seu perfil recatado, fez relevante trabalho de media��o cultural, principalmente como tradutora e articulando uma rede de escritoras latinoamericanas. Quer dizer, Henriqueta ficou presa entre as montanhas e, ao mesmo tempo, aberta para o mundo.”
Versos curtos, prosa de grande sensibilidade te�rico-cr�tica. “Delicadeza � a palavra que resume tudo”, afirma Melo Miranda. Nas leituras que faz de Guimar�es Rosa, por exemplo, salta aos olhos a personalidade �mpar do pensamento desta “simbolista moderna”, se alguma eventual defini��o lhe couber. Na personagem Miguilim, ela nota a persist�ncia da inf�ncia “pela intensidade com que se projetam os estados de alma do autor, pela anima��o de suas imagens, sutileza de sugest�es, justeza de express�o”.
O sutil e o justo que lhe eram pr�prios, inclusive na tradu��o. Para Marques, o trabalho intelectual “extremamente prof�cuo”de uma “simples e dedicada professora mineira”desvenda uma “leitora e tradutora refinada de poesia”. Traduziu poemas da amiga Gabriela Mistral, do italiano Dante Alighieri e de muitos outros. Nas l�nguas espanhola e italiana, caminhou com sua t�mida desenvoltura, t�o fiel ao original quanto precisa na aposta por uma linguagem l�mpida.
Os principais di�logos liter�rios ocorrem entre o simbolismo de Alphonsus de Guimaraens e o modernismo de M�rio de Andrade. Foi muito pr�xima de Cec�lia Meireles. Os poetas hispano-americanos e os cl�ssicos lhe d�o o restante do tapete formador de uma poesia dif�cil de classificar, de encaixar. “A princ�pio, pode parecer comum”, diz Wander Melo Miranda. “Mas n�o. Ela tem uma sensibilidade muito grande, feita de insights que levam a uma poesia �nica, refinada, em que se destacam o tema da morte e a rela��o com a natureza.”
Os versos de
Sofrimento
, do livro
Flor da morte
(1949), mostram a dor provocada pela morte. Os sentidos permanecem no desaparecimento do f�sico, do que � palp�vel: o corpo, o instrumento, a alavanca, a obra. Resta a correspond�ncia do que se d� a sentir: o esp�rito, a m�sica, o impulso, o remate. A estrela desaparece para dar lugar � luz. Apesar de muito quando comparado ao pouco “que se perdeu”, nada do que fica serve para aplacar a falta. A pedra de sal, por princ�pio e fim, se desfaz no mar da exist�ncia.

A morte po�tica em ar, fogo, terra e �gua transforma-se num olhar bastante did�tico nos textos de reflex�o sobre obras e autores. O volume da
Prosa
�, de fato, o surpreendente que desfaz a tristeza anterior. A professora e cr�tica liter�ria Henriqueta, elegantes cabelos curtos � moda antiga, era organizada e atualizada. Suas aulas escritas de literatura brasileira e hispano-americana t�m esse delicioso prazer do exerc�cio cultural dado por genu�no amor � literatura.
E n�o � disso que estamos precisando? N�o a leitura raivosa do que um texto poderia ter sido, do que um texto deveria ter dito. N�o o olhar exclusivamente sociol�gico sobre a fic��o liter�ria. Encontrar ou reencontrar Henriqueta Lisboa � deixar-se vacinar contra os sabich�es pol�ticos que pretendem saber tudo desde sempre, os que cercam a literatura de preconceitos fingindo que n�o. Aqui o mist�rio � mais profundo e amb�guo, mais l�ngua e arrepio.
Diante desta obra completa e correta, o leitor se torna capaz de levar aquela est�tua na Savassi para um passeio noturno de m�os dadas com o que naturalmente somos e, em breve, deixamos de ser. Porque a arte � assim: “Confus�o extrema/ de �xtases, sarcasmos,/ e ranger de dentes”. E vem com a simplicidade dada na superf�cie, para que o leitor possa compreender o incerto. “Pago caro o orgulho/ de querer perfeita/ minha vida ef�mera.”
HENRIQUETA LISBOA: OBRA COMPLETA . Tr�s volumes: Poesia , Prosa e Poesia traduzida (Editora Peir�polis), R$ 360. Ebook: R$ 33 (cada volume). editorapeiropolis.com.br
"Delicadeza � a palavra que resume tudo (...). Uma sensibilidade muito grande, com forte personalidade, feita de insights que levam a uma poesia �nica, refinada, em que se destacam o tema da morte e a rela��o com a natureza."
Wander Melo Miranda, um dos organizadores de Obra completa
"Com seu perfil recatado, ela fez um relevante trabalho de media��o cultural, principalmente como tradutora e articulando uma rede de escritoras latinoamericanas. Ficou presa entre as montanhas e, ao mesmo tempo, aberta para o mundo."
Reinaldo Marques, um dos organizadores de Obra completa
SOFRIMENTO
No oceano integra-se (bem pouco)
uma pedra de sal.
Ficou o esp�rito,
mais livre que o corpo.
A m�sica,
muito al�m do instrumento.
Da alavanca,
sua raz�o de ser: o impulso.
Ficou o selo, o remate
da obra.
A luz que sobrevive � estrela
e � sua coroa.
O maravilhoso. O imortal.
O que se perdeu foi pouco.
Mas era o que eu mais amava.
A FACE L�VIDA
N�o a face dos mortos.
Nem a face
dos que n�o coram
aos a�oites da vida.
Por�m a face
l�vida
dos que resistem
pelo espanto.
N�o a face da madrugada
na exaust�o
dos solu�os.
Mas a face do lago
sem reflexos
quando as �guas entranha.
N�o a face da est�tua
fria de lua e z�firo.
Mas a face do c�rio
que se consome
l�vida
no ardor.
Tradu��o de um soneto de Dante Alighieri
T�o discreta e gentil se me afigura
ao saudar, quando passa, a minha amada,
que a l�ngua n�o consegue dizer nada
e a fit�-la, o olhar n�o se aventura.
Ela se vai sentindo-se louvada
envolta de mod�stia nobre e pura.
Parece que do c�u essa criatura
para atestar milagre foi baixada.
Ao que a contempla infunde tal prazer,
pelos olhos transmite tal dul�or,
que s� quem prova pode compreender.
E assim, parece, o seu semblante inspira
um delicado esp�rito de amor
que vai dizendo ao cora��o: suspira.
Sobre a poesia de Cec�lia Meireles
“O que distingue, particularmente, a poesia de Cec�lia � a luminosa simplicidade com que ela se utiliza do mist�rio, em cuja atmosfera respira. Habituada ao mist�rio, fonte de riqueza art�stica, n�o assume atitudes estranhas quando a ele se refere. Mostra-se original porque � fundamentalmente original, sem preciosismo. Valoriza as palavras quotidianas, para que elas digam o indiz�vel. Com um n�mero restrito de palavras, realiza o milagre. Sem desdenhar da gra�a do verso, a que empresta um ritmo todo seu, � surpreendente de precis�o. A sobriedade de atitudes, a dignidade dos sil�ncios repentinos, o desapego da mat�ria inerente a essa poesia, lembram, por afinidade, o ascetismo oriental. Poema dos poemas desvendou uma intensa voca��o m�stica � semelhan�a dos sacerdotes budistas. A ternura impregnada de pudor que se nota neste livro tecido de s�mbolos foi-se concentrando cada vez mais. A experi�ncia da vida tornou maior, em Cec�lia, aquele inato inconformismo. � pr�pria rebeldia op�s, no entanto, uma serenidade l�cida. O horror � vulgaridade auxiliou-a nessa intr�pida resist�ncia a todas as solicita��es do tempo. A sua resposta � vida, em desafio aos dias que correm, de m�seros interesses, � a cidadela em que recolhe os seres sofredores, os pequeninos doentes, e aqueles mendigos estoicos de sua not�vel ‘estirpe’. � a sua mensagem l�rica.”
Doutor em Estudos Liter�rios pela UFMG e autor de A reinven��o do escritor (Editora UFMG), S�rgio de S� � professor na Universidade de Bras�lia (UnB).
Doutor em Estudos Liter�rios pela UFMG e autor de A reinven��o do escritor (Editora UFMG), S�rgio de S� � professor na Universidade de Bras�lia (UnB).