
Nascida em 1974, em Belo Horizonte, e moradora de S�o Bartolomeu (pequeno distrito de Ouro Preto), Simone nos faz crer que a poesia que nos cerca protege e assusta na mesma medida em que nos aben�oa. Ela consegue sintetizar, em seus versos, mil sons e mil signos que se dispersam em todos os sentidos como sons de sinos que, em espirais , se dissipam, aos poucos. “Os sinos guardam/e aguardam o mundo.”
A autora amplia ao infinito o conceito e a fun��o po�tica das janelas, por exemplo. “Se a vista � para o adro/a janela � orat�rio.” A
religiosidade
ganha, nessa poesia invulgar, outros e maiores sentidos quando cresce a aura do mais puro mist�rio. Ter nascido em Minas s� faz bem � voz da poeta. � que “na beira do sagrado/o mal n�o conv�m”, ela sugere.
Eis a fun��o da poesia, diante do breu, dos abismos e dos percal�os inevit�veis. A poesia de Simone nos faz crer que a literatura � algo maior. A poesia � plural para o al�m do medo e do prec�rio. Ali�s, ela, a poesia, nos afasta do duvidoso, do incerto, dos
descont�nuos
que nos definem um tanto, mas que nos atormentam em �ltima an�lise.
Simone domina o seu lapidar de versos com
sobriedade
, mas sem perder nunca o humor, a alegria e a leveza. Os poemas do livro n�o seguem em linha reta. A cada verso, a cada poema surgem novas nuances, musicais, barrocas, que Simone nos oferta como quem domina o seu of�cio, a sua arte de fazer alquimias.
Simone utiliza met�foras, porque assim exige a poesia, uma poesia polif�nica. O seu marchar, o seu leve caminhar diz muito sobre incertezas, sobre a beleza em si, da pr�pria marcha, e se confunde ao ilimitado destino do fazer po�tico, da caminhada a que o poeta se imp�e, sem eira nem beira, sem destino, mas at� o destino, contudo. Simone acusa e ao mesmo tempo defende o vento, a alma dos gatos, os ursos-polares, os “cantos de incont�veis
manh�s
”.
O abismo e a travessia
Na poesia de Simone, versos soltos j� s�o, em si, poemas completos: “O abismo foi s� um modo de atravessar.” A poeta nos oferece mil imagens concentradas, juntas, mil sugest�es e possibilidades. O abismo ganha, assim, m�ltiplas fun��es. Cabem questionamentos, e ela pergunta, com o
cora��o
cheio de inf�ncias: “Como chegaram ao mar as estrelas?”. Um olho no peixe, outro no gato, Simone, esperta, capta os sons, os brilhos de rel�mpagos nos seus poemas. Arco e flecha, Simone d� um tiro certeiro no cerne do inexpugn�vel, “quando o sentir � alvo/o c�u exp�e as estrelas”. Seus poemas soltam fa�scas.
Nesse carrossel, Simone se entrega e leva junto o leitor, propondo um jogo de vertigens onde prevalece sempre a alegria. A literatura �, sem d�vida, um dos nossos melhores e mais perigosos brinquedos. A poesia de Simone � feita de enigmas que, quando e se
decifrados
, transformam o nosso modo de enxergar o mundo. Mas, mesmo assim, Simone ressalta que o mesmo mundo continua, para o bem da poesia, intang�vel.
O terr�rio do t�tulo do livro pode ser um miniecossistema fechado autossustent�vel, em que as plantas fazem a fotoss�ntese. Terr�rio tamb�m pode ser uma instala��o provida de terra, saibro, rochas, plantas etc., para cria��o ou exposi��o de feras, r�pteis, roedores, etc. Pois bem, o terr�rio de Simone abarca tudo isso e o mundo. Salto de baleia no meio do mar, do meio do nada, enxames de pirilampos, os poemas de Simone surgem com a for�a e a gra�a das vidas que j� nascem fortes e
luminosas
.
Trata-se de um apropriar-se da percep��o do que existe de an�rquico na aparente simplicidade das coisas, do sil�ncio dos adros, do som anacr�nico dos sinos. Um apropriar-se, um render-se ao mist�rio que atravessa, que mora em tudo. Assim � a poesia de Simone, estranha e paradoxal. Os poetas tamb�m s�o c�mplices do
indiz�vel
.
Terr�rio
• Simone Andrade Neves
• Dem�nio Negro
• 124 p�ginas
• R$ 45
demonionegro.com.br
ENTREVISTA
Simone Neves
“Drummond � minha refer�ncia maior”
Como voc� avaliaria a sua trajet�ria? O que mudou do seu primeiro livro para este “Terr�rio”?
Os pouco mais de 20 anos sem publicar um livro foram dedicados � leitura, ao aprendizado, exercitando a escrita e reiterando a indaga��o deste caminho, at� 2015, com o lan�amento do “Corpos em marcha”. A palavra evolu��o me incomoda, mas �
inconceb�vel
que a minha escrita n�o tenha evolu�do ou se deslocado com outra identidade ao longo dos anos, dos experimentos e muitos rascunhos jogados no lixo. Sinto que ganhei firmeza na m�o, a linguagem foi se estabelecendo e ditando os caminhos, a hora de publicar, hora de esperar o verso vir, n�o insistir em caminhos que ainda n�o se estabeleceram dentro da minha linguagem, linguagem que tamb�m se descola com o curso da vida.
Como surgem os seus poemas? Voc� � uma escritora disciplinada?
�s vezes, tenho que impor a criatividade, noutras tudo acontece do inesperado. Gosto de conversar com pessoas de mundos diversos do meu. Ontem, fiquei um bom tempo
aprendendo
sobre pesca em dias de chuva; noutro dia, aprendi sobre manejo de florestas, por exemplo. Os poemas por vezes surgem de demoradas pesquisas ou podem vir num �timo, motivados por algo in�dito ou deste invent�rio de informa��es diversificadas que vou coletando.
Disciplina tenho para formar esse invent�rio para escrever. Todos os dias dedico duas, tr�s horas para leitura, cinema, m�sica; especialmente leitura, e escrever. E n�o termino um dia sem ler um poema. Gosto tamb�m de conviver com crian�as.
Disciplina tenho para formar esse invent�rio para escrever. Todos os dias dedico duas, tr�s horas para leitura, cinema, m�sica; especialmente leitura, e escrever. E n�o termino um dia sem ler um poema. Gosto tamb�m de conviver com crian�as.
Como voc� avaliaria o nosso momento atual no terreno da pol�tica e da cultura?
A pol�tica, com tristeza. Passar por esta pandemia sem qualquer compromisso do governo em adotar medidas eficazes e de preven��o � um absurdo inimagin�vel, com pleonasmo e tudo. O presidente, por todos os seus atos e a��es, que n�o precisam ser repetidos aqui, adoeceu o pa�s. E a cultura sofre, sem amparo, na contram�o. Rompendo uma bandeira de vida insurgente e bela, artistas de diversos campos aliviaram e trouxeram aquele calor aos dias de limbo, especialmente no in�cio da pandemia, valendo-se das mais variadas formas, fazendo acontecer sem apoio e num desd�m deste
governo
. Os artistas, esses sim, est�o fazendo pol�tica neste pa�s.
Quais s�o suas refer�ncias liter�rias?
Drummond, sobretudo, minha
refer�ncia
maior; e tenho que tomar cuidado para n�o ouvir a voz potente deste poeta comandando meus versos, entrando neles. Gosto tamb�m de Manuel Bandeira, Cec�lia Meireles e Henriqueta Lisboa.
“Alma de gato”
Mora um gato
no fundo do olho do p�ssaro.
O observador de ninhos alheios
assenta nos galhos mais altos:
os acusadores dos ventos.
Perito rompedor de cascas
acessa a membrana espectral.
Suga das gemas
cantos de incont�veis manh�s
e reafirma o teu nome.
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“Nome ao boi”
A marcha � limitada; �.
N�o se marcha para sempre
sempre se marcha
mas n�o se marcha
para sempre.
A marcha � limitada
limitada pelo ato
ato de marchar
N�o o destino
o para onde da marcha
mas a marcha � limitada
at� o destino.
Ap�s
novo marchar
N�o o destino
Mas o ato
Marchar
at� o destino.
E de l� marchar.
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“Cantiga de alpendre”
O vento suspende as toalhas
de tessitura afinada pelo amparo de m�os.
Cem rosas deram tom
ao vestido de uma mulher
que caminha
com os l�bios untos
Haver� guerra?
Ou tocado de outro vento?
Tudo h� de haver
haver no sentido de existir:
o brilho agudo dos teus olhos de am�ndoa
oferta o universo num instante.