
Fernando Viotti*
Especial para o EM
Parece sup�rfluo escrever sobre o anivers�rio de 80 anos que Bob Dylan celebrou na �ltima segunda-feira. E certamente soa prolixo. Uma visita ao expectingrain.com, esp�cie de cliping cujo tema � o artista, mostra que o n�mero de textos motivados pela efem�ride j� se conta na casa das centenas. Biografias como a de Robert Shelton e Howard Sounes est�o sendo relan�adas em edi��es revistas e a data foi not�cia no mundo inteiro. Dylan nunca teve problemas com o sup�rfluo; n�o se furtou a compor can��es e lan�ar �lbuns, mesmo quando a visita das musas parecia espor�dica, em meados da d�cada de 1980. Um grande artista � feito de muitos materiais, entre eles a capacidade de resistir, seja � voracidade do p�blico que anseia por uma obra-prima por dia, seja aos apelos de sua pr�pria vaidade, capaz nos piores casos de levar � paralisia, rejeitando qualquer esfor�o criativo que n�o esteja � altura da realiza��o genial pregressa. Nessa armadilha, Dylan nunca caiu, residindo a� um dos segredos para chegar aonde est�, ap�s uma longeva carreira que j� cobre seis d�cadas (e contando).
Dylan tampouco teria qualquer problema com o prolixo. Caetano Veloso fala dessa prolixidade numa entrevista de lan�amento do “Tropic�lia 2”, no in�cio da d�cada de 90. Na ocasi�o, a palavra me causou estranheza e demorei algum tempo para compreender do que exatamente Caetano estava falando. Para n�o ter que voltar muito no tempo, olhemos para os 16min54 de “Murder most foul”, a maravilhosa can��o lan�ada um ano atr�s, em que, a partir do assassinato de John Kennedy, Dylan repassa meio s�culo da hist�ria norte-americana a partir das can��es que o moldaram (o pronome aqui tem deliberado duplo sentido; moldaram o meio s�culo e Dylan). A marca da prolixidade est� na repeti��o, na dura��o e na redund�ncia, recursos do discurso liter�rio que o poeta-cantor conhece muito bem e aplica na produ��o de efeitos est�ticos espec�ficos. J� era assim em 1966, quando “Like a rolling stone” subverteu todo um padr�o constitu�do com sua narrativa �pica de infind�veis 6min, quando a norma da ind�stria cultural eram can��es com, no m�ximo, a metade disso. Tempo importa.
Voltemos, portanto, cerca de 30 anos no calend�rio. Quando Caetano falou de Dylan naquela entrevista, o ame- ricano ocupava um lugar muito diferente daquele que ocupa hoje. “Tropic�lia 2” foi lan�ado em agosto de 1993, exatamente no mesmo m�s em que aparecia “The 30th anniversary concert celebration”, �lbum duplo gravado um ano antes no Madison Square Garden, num concerto que reuniu dezenas de artistas – al�m do pr�prio Dylan – para celebrar seus 30 anos de carreira. O show tem interpreta��es poderosas das can��es de Dylan e ao menos um momento memor�vel, quando Roger McGuinn, Tom Petty, Eric Clapton, Neil Young, George Harrison e Dylan se juntam no palco para apresentar “My back pages”, cujo refr�o diz “But I was so much older then, I’m younger than that now”.
Apesar do paradoxo de “My back pages”, que coloca entre par�nteses valores como juventude, velhice e o significado da passagem do tempo, o tom geral daquela noite era o de uma louva��o do passado; o brilho emanando da figura de Dylan seria como um farol iluminando pra tr�s; aos 52 anos, dono de uma das obras mais representativas da cultura popular do s�culo 20, restaria ao poeta cantor repousar sobre os louros do que havia conquistado a partir sobretudo das can��es essenciais que lan�ara na d�cada de 1960, mais de 25 anos antes. Deu-se o oposto.
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Relev�ncia recente
Nenhum dos artistas presentes naquela noite, alguns deles muito mais jovens e – ao contr�rio de Dylan – no auge do sucesso de suas respectivas carreiras, como Tom Petty, Eddie Vedder, Chrissie Hynde ou Tracy Chapman, produziria nas d�cadas seguintes um material in�dito universalmente aclamado pela cr�tica como faria Dylan. Al�m da qualidade e relev�ncia de suas can��es, Dylan obteria com “Time out of mind” (1997), “Love and theft” (2001), “Modern times” (2005) e o recente “Rowdy and rough ways” (2020), enorme sucesso comercial, vencendo pr�mios sucessivos e renovando o seu p�blico. N�o se trata apenas do que comp�s, no sentido tradicional da palavra. No final da d�cada de 1980, num lance sem paralelo para um artista do seu ca- libre, Dylan iniciou aquilo que os f�s batizariam de “Never ending tour”, uma s�rie de aproximadamente 100 shows por ano, todos os anos, interrompida apenas pela pandemia de covid-19 em 2020. O p�blico do Madison em 1992 n�o poderia nunca imaginar que duas (e tr�s!) d�cadas mais tarde os seus filhos estariam lotando os shows da “Never ending tour”, n�o apenas para aplaudir “Blowin’ in the wind” ou “Mr. tambourine man”, mas para vibrar aos primeiros acordes de “Not dark yet”, “Mississippi” ou “Things have changed”, todas ainda por surgir da alquimia que Dylan guardava em sil�ncio durante aqueles anos em que parecia destinado a um crescente ostracismo.
Quando “Murder most foul” apareceu no ano passado, ap�s um hiato de 8 anos sem can��es in�ditas, uma pergunta me ocorreu; como um artista, aos 79 anos, com quase 60 de carreira e mais de 600 can��es, � capaz de compor uma m�sica que n�o se parece com nada do que tenha feito anteriormente? A inquietude inata e essa capacidade aparentemente inesgot�vel para se reinventar permanecem relativamente desconhecidas de muitos, sobretudo no Brasil, onde mesmo parte do p�blico familiarizado com o Bob Dylan da d�cada de 1960 ignora quase toda a sua produ��o posterior a “Desire” (1975). Essa etapa da carreira, que come�a com os �lbuns de can��es tradicionais “Good as I been to you” (1992) e “World gone wrong” (1993) e chega aos dias de hoje, � a prova dos nove de sua genialidade, e motivo mais do que justo para a profus�o – ainda que sup�rflua e prolixa – de textos em sua homenagem.
N�o se celebram aqui as gl�rias do passado de um artista decadente para o qual as homenagens s�o apenas rem�dio amargo contra o esquecimento. O que se deve celebrar, at� mesmo com um muito obrigado, � a grandeza de uma obra e a vitalidade de um esp�rito criativo que aos 80 anos permanece inquisitivo, nos oferecendo perspectivas do mundo e do estar no mundo que desafiam os valores vigentes. Por sua insist�ncia em permanecer atento durante 60 anos, ao c�mico e ao tr�gico que marcam a condi��o humana, se recusando a desaparecer sob as press�es e distra��es da gl�ria pessoal, Bob Dylan, nascido em Duluth, Minnesota, em 24 de maio de 1941, merece absolutamente todo o aplauso que tem se dedicado a ele.
*Fernando Viotti � doutor em literatura comparada pela UFMG com a tese “Um mundo feito de ferro: a l�rica de Drummond e Bob Dylan”, premiada como tese do ano no Programa de Estudos Liter�rios da Fale-UFMG em 2019