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Estado de Minas Pensar

Inven��o e liberdade

Editora 34 lan�a "A rosa de ningu�m", essencial para compreens�o da obra de Paul Celan (1920-1970), um dos poetas mais ousados do s�culo 20


30/07/2021 04:00

Adalberto Muller *



Como ler Paul Celan hoje para al�m dos estere�tipos de “herm�tico” ou “poeta do holocausto”? O problema de ler Paul Celan j� come�a na sua origem: romeno (ou seja, falante de uma l�ngua neolatina), mas nascido em Tchernivitsi, uma cidade situada numa fronteira cultural entre a Rom�nia, o antigo imp�rio austro-h�ngaro, e o antigo imp�rio russo, Celan foi educado em alem�o, l�ngua que adotou como poeta. Mas, sendo de fam�lia judaica, conhecia o hebraico, e falava o �diche. Nasceu em 1920 e viveu a maior parte da sua vida em Paris. Naturalizou-se franc�s e traduziu poetas como Emily Dickinson e Fernando Pessoa. Apesar de conhecer bem muitos idiomas, foi o alem�o que ele escolheu como l�ngua liter�ria. “Minha l�ngua-m�e � a l�ngua dos assassinos da minha m�e”, ele teria dito, resumindo a ferida de ter pais assassinados pelo regime nazista alem�o.
“Todos os poetas s�o judeus”, diz o verso de Marina Tsvet�ieva que Celan cita no �ltimo poema de “A rosa de ningu�m”, livro emblem�tico de Paul Celan, que Maur�cio Cardozo agora publica pela editora 34 como se deveriam ser editados os livros de poesia: na �ntegra. O verso da poeta russa, no entanto, foi modificado por Celan. No “Poema do Fim”, Tsvet�ieva, que n�o era judia, havia escrito: “N�o h� piedade/ No mais crist�o dos mundos / Os poetas s�o judeus.” A longa elegia da poeta modernista russa fazia refer�ncia aos pogroms perpetrados pelo regime tzarista e pelos mencheviques, inimigos da revolu��o comunista. Mas tamb�m se referia � pris�o e ex�lio de muitos poetas de sua gera��o, como �ssip Maldelstam, a quem o livro de Paul Celan � dedicado, e que ocupa um lugar de “protagonismo” em “A rosa de ningu�m”. 

Inven��es vocabulares

Ousado, Maur�cio Cardozo traduz o nome do poeta russo-judeu por “Mandel’stame” (uma vez que seu nome cont�m a palavra am�ndoa (Mandel) e tronco, origem (Stamm, aqui, associado inteligentemente a estame). Em meio ao turbilh�o que foi a poesia russa dos anos 1910-1920, Mandelstam escreveu usando elementos do futurismo (desagrega��o da linguagem) e da dic��o coloquial, mas mantendo um p� firme na poesia cl�ssica (ele traduziu Petrarca e Dante). Quem l� as inven��es vocabulares de Celan, t�o bem traduzidas, como “mandeleira...oniroeira” ou em “quando florescem as, orescemasflo, /orecemas” pensar� que ele se filia �s inven��es de um James Joyce. Mas n�o. � � gera��o cubo-futurista de Maldelstam que Celan se filia, das linguagens inventadas por Khl�bnikov (o zaum) e Krutch�nikh � dic��o farpada de um Maiakovski, que expressa a dor real da guerra, da viol�ncia, do aviltamento da condi��o humana na era moderna. Mandelstam queria transformar o zaum numa l�ngua comum, p�s-bab�lica. Como os poetas que acompanharam a revolu��o de 1917 (Maiakovski, Akhm�tova, Ess�nin, Pasternak), Mandelstam imaginava uma poesia que comunicasse sem necessariamente reduzir a sua alta voltagem de inven��o e de liberdade.

Esse car�ter de inven��o e liberdade � essencial em Celan. S� que, para muitos cr�ticos e leitores, Celan � considerado um autor herm�tico. O hermetismo, no entanto, est� menos na sua poesia do que na expectativa de quem l�. Na verdade, a poesia de Celan nos comove sem que saibamos bem o porqu�. E mesmo que n�o a entendamos nos detalhes, sofremos o impacto de “estar dentro” dela, assim como se est� dentro de uma obra arquitet�nica. H� muito de espacial na obra de Celan, de arquitetura. No sentido de que se pode atravess�-la e sentir a sua “estrutura” durante a travessia. Claro que pode ser uma travessia dolorosa �s vezes, com arames farpados e vis�es do horror.

A proposta de Maur�cio Cardozo em “A rosa de ningu�m” � a de deixar o leitor atravessar. As poss�veis notas aos poemas foram apagadas, como que de prop�sito. N�o que elas fossem desnecess�rias. No poema “Em um”, por exemplo, h� v�rias refer�ncias pol�ticas a levantes revolucion�rios (Paris, 1789, Viena, 1938), � luta antifascista na Espanha, e tamb�m � S�o Petersburgo que Mandelstam recordou em Tristia, livro que, por sua vez evoca o poeta latino Ov�dio. As refer�ncias, bem como as diversas l�nguas, atravessam o poema de Celan, ou est�o dispostas como pedras.  Ocorre que o tradutor n�o est� interessado em conduzir o leitor no caminho das pedras. Ao contr�rio, ele prefere jog�-lo do alto do penhasco, ou no po�o sem fundo. Ele pede do leitor “a mais coragem”, como disse Diadorim a Riobaldo, para travessia.  O tradutor tampouco d� ao leitor a palavra-passe (shiboleth) para entrar no jogo de refer�ncias do poema, pois ele sabe que essas refer�ncias tampouco esgotar�o o sentido do escrito. O sentido � o que o leitor vai sentir. E isso � tudo. “Paz �s choupanas”, leitores do mundo, uni-vos!

Afinal, tamb�m h� o herm�tico ali onde n�o h� refer�ncias e cita��es eruditas. Leia-se o poema “N�o � mais”. Aqui vale retomar um famoso ensaio de H. G. Gadamer, ao menos pelo seu t�tulo, que h� de se salvar sempre da hermen�utica: “Quem sou eu, quem � voc�?” Pode-se pensar que a poesia de Celan est� centrada nesse jogo infinito de eu-voc�, que remete a uma �tica do di�logo, de pensadores caros a Celan, como Martin Buber e Emmanuel L�vinas. Gosto de pensar esse jogo eu-voc� a partir do conceito lingu�stico de d�itico. Os d�iticos, ensinam os linguistas, s�o palavras sem significado pr�prio ou determinado anteriormente � condi��o de enuncia��o (ou seja, ao momento em que se diz algo). Se digo “aqui”, este meu aqui � o Rio de Janeiro. Mas se voc� diz “aqui”, o seu aqui � Belo Horizonte ou outra cidade.

Visto por esse prisma, o poema de Celan n�o deixa de ser um zaum, um puro jogo de linguagem, que se adapta a cada circunst�ncia de leitura: “Este, como voc�, n�o tem um nome. Talvez / voc�s sejam o mesmo. Talvez / um dia voc� me chame / assim.” Querer atribuir a esse “eu” e a esse “voc�” os atributos de “judeu” ou “v�tima” ou “testemunha do holocausto”, ou ent�o, numa outra clave, “amante”, “amado”, “marido”, “mulher”, “filho”, “pai”, seja l� o que for, � minar as escoras que sustentam o poema.

Assim, o poema permitiria ainda dizer: Talvez um dia voc� me chame assim: palestino e judeu. Ou talvez um dia voc� admita: todos os poetas s�o palestinos.

“A rosa de ningu�m”
.Paul Celan
.Tradu��o de Maur�cio Mendon�a Cardozo
.Editora 34
.192 p�ginas
.R$ 52

Dois poemas traduzidos 


EM UM

Treze de fevereiro. Na boca do
cora��o acorda um shinoleth. Contigo,
Peuple
de Paris. No pasar�n.

 Ovelhinhas � esquerda: ele, Abadias,
o anci�o de Huesca, vinha com seus c�es
pelo campo, no ex�lio
uma nuvem de nobreza
humana se alteava branca, ele nos deu
a palavra na m�o, a de que precis�vamos,
ouvia-se espanhol de pastorinhos, nela.

 na luz glacial do cruzador de "Aurora":
a m�o do irm�o, acenando com a
venda tirada dos olhos
palavrimensos – Petr�polis, a cidade
de degredo dos inesquecidos, era
tamb�m a ti toscanamente saudosa.

Paz �s choupanas!


N�O � MAIS

este
o pesar que por vezes
afundou contigo
na hora. �
um outro.

� o peso que det�m o vazio
que iria junto contigo.
Este, como voc�, n�o tem nome. Talvez
voc�s sejam o mesmo. Talvez
um dia voc� tamb�m me chame
assim.


*Adalberto M�ller � professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), escritor e tradutor da “Poesia completa” de Emily Dickinson


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