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Estado de Minas CONTOS

Os contos fant�sticos e desconcertantes de Julio Cort�zar

Livro re�ne todas as hist�rias curtas do escritor argentino, um dos maiores nomes da literatura latino-americana no s�culo 20


01/10/2021 04:00 - atualizado 01/10/2021 08:31

Escritor argentino Julio Cortázar
Escritor argentino Julio Cort�zar (foto: Reprodu��o)


Cort�zar

O peserseguidor da subvers�o

"As palavras decidiram o curso das a��es, como costuma acontecer nesta vida", pode-se ler num dos contos reunidos do escritor argentino Julio Cort�zar (1914-1984). Claro, para um escritor, o poder das palavras � o que existe de mais inebriante e toda aten��o especial vai ser dispensada para elas, as palavras. Nesse conjunto que leva o nome de "Todos os contos", os dois volumes mostram com que de- dica��o consistente Cort�zar mergulhou nesse g�nero ao longo da carreira liter�ria. Esse comprometimento foi t�o intenso que em pelo menos duas ocasi�es o escritor se debru�ou com cuidado para teorizar a respeito do conto, e para felicidade dos leitores os textos se encontram ao fim do segundo volume. 

Em "Alguns aspectos do conto", ele desenvolve a teoria de que o conto, ao qual chama de caracol da linguagem, "t�o secreto e voltado para si mesmo", � resultado de uma compress�o de tempo e espa�o com tal controle que precisa de tr�s elementos para funcionar: significa��o, intensidade e tens�o. Ou seja, um tema bem-articulado; a elimina��o de todos os excessos; e uma aproxima��o lenta daquilo que se conta. Esses dois �ltimos elementos, intensidade e tens�o, s�o a parte t�cnica, explica Cort�zar. 

O outro texto, "Do conto breve e seus arredores", menciona a g�nese do conto como sendo a mesma do poema, "nasce de um repentino estranhamento, de um deslocar-se que altera o regime 'normal' da consci�ncia". A verdade � que boa parte dos contos de Cort�zar surge dessa necessidade de subverter o real, de acrescentar na ordem do relato um mundo em que as coisas se passam de outra maneira. O nome convencional que se d� a isso: fant�stico. � o que acontece em narrativas como "A casa tomada", em que dois irm�os convivem, solit�rios e solteiros, numa casa grande, da qual cuidam e se cuidam, um ao outro. Mas certos ru�dos, uma amea�a velada, come�a a confin�-los a ambientes cada vez mais restritos, at� um desfecho mais ou menos inevit�vel, mais ou menos surpreendente. Essa a outra teoria que sempre � ressaltada quando se falam dos contos de Cort�zar, defendida por ele mesmo: a de que o conto deve vencer por nocaute, ao contr�rio do romance, que ganha pelo cansa�o, ou seja, por pontos. Teoria que ali�s ele atribui a um colega argentino n�o nomeado, o que terminou por lhe pespegar a autoria final. 

No primeiro volume, que se estende pelos livros publicados no per�odo entre 1945 e 1966, o fant�stico aparecia de modo mais expl�cito. No conto "As m�os que crescem", acontece justamente isso com a personagem central, Plack. Depois de agredir um sujeito que lhe afronta, as m�os crescem a um tamanho tal que se tornam um inc�modo. Plack procura por fim um m�dico e decide pela amputa��o. Depois tem a sensa��o de que tudo teria sido apenas um sonho, at� que a realidade, a nova, estranha realidade, lhe reaparece de forma incontorn�vel. 

Com o avan�o, � claro que essa configura��o t�o escancarada do fant�stico deixou de ser o tema de for�a e Cort�zar descobriu novas embocaduras. � assim que em contos como "O perseguidor" ou "As babas do diabo" (que, � sempre bom lembrar, deram a base do argumento que Michelangelo Antonioni usaria no filme "Blow-up - Depois daquele beijo") o ambiente do fant�stico n�o � t�o evidente � primeira vista. Em "O perseguidor", ali�s, me parece que outra quest�o est� em andamento: justamente o mecanismo das frases e ritmos do jazz, que s�o afinal o tema e ao mesmo tempo a inspira��o para a t�cnica liter�ria, uma vez que o conto aborda o conv�vio de um bi�grafo com um sa- xofonista, inspirado em Charlie Parker.

Aqui, os elementos est�o dispostos para uma manifesta��o muito mais sutil do que pode ser considerado fant�stico. No caso, o entendimento do tempo. H� um longo di�logo em que � poss�vel estabelecer toda uma nova teoria a respeito da percep��o do tempo na m�sica, na vida cotidiana e, em �ltima inst�ncia, no pr�prio conto. � essa dilata��o potencial (que tamb�m pode se dar por meio de uma compress�o completa) que o tempo ganha novas acep��es. 

Num livro de entrevistas concedidas a Omar Prego, intitulado "O fasc�nio das palavras", Cort�zar diz que os epis�dios de aboli��o do tempo contidos em "O perseguidor" s�o todos autobiogr�ficos. Ele chama aos estados de distra��o "estados de passagem" que favorecem a percep��o de certos temas. "Quando estou muito distra�do", disse, "de repente escapo". Esquecido nos pr�prios pensamentos, imagina, no momento em que os vag�es do metr� come�am a frear, que andou muito tempo, quando na verdade se passaram cerca de um minuto, ou um minuto e meio entre uma esta��o e outra. Ele diz que gostaria de poder superpor tempos diferentes, o interno e o externo, do rel�gio. "Se eu pudesse multiplicar o meu tempo seria quase como ga- nhar uma esp�cie de imortalidade." 

No caso de "As babas do diabo", o pr�prio ato de fotografar, ou seja, de enquadrar um trecho do real, d� margem para que a entrada do fant�stico (nesse caso, o modo como as narrativas evidentes podem esconder muitas sutilezas impercept�veis ao olho desatento) se possa fazer. Um sujeito faz fotos de um casal num parque, uma mulher mais velha e um jovenzinho, antes de a situa��o degringolar em outra coisa, e, mais tarde, ao retornar ao laborat�rio e processar o filme, percebe que o que viu n�o foi bem uma sedu��o evidente cujo contraste de idades seria o elemento chocante, mas algo bem, bem mais perturbador.

A narrativa como par�bola

Uma possibilidade permanente de leitura � tamb�m pensar nas narrativas de Cort�zar como par�bolas (alguns te�ricos preferem falar em met�foras). Assim, "A autoestrada do sul", por exemplo, que menciona um engarrafamento que dura dias e transforma, ao mesmo tempo, as pessoas, an�nimas em seus carros quando em movimento, em comunidade novamente quando os carros n�o podem mais avan�ar, porque precisam manifestar solidariedade uns pelos outros, a despeito de as personagens n�o terem outro nome que n�o os dos modelos de seus ve�culos, o que remete mais uma vez a um tipo de anonimato. Ou seja, h� camadas e camadas sobrepostas de significados a serem submetidos a algum tipo de li��o de anatomia poss�vel, mas por se tratar de sentidos abertos, resta a sensa��o de que a interpreta��o feita tem sempre algo de incompleta. 

Outro aspecto importante que n�o pode deixar de ser mencionado � a preocupa��o permanente de Cort�zar de experimentar com os limites do g�nero e com a ideia que lhe foi muito cara de ressaltar o aspecto l�dico de algumas tramas. Assim, toda uma se��o do livro "Hist�rias de cron�pios e de famas" � devotada a instru��es para se fazerem determinadas tarefas: chorar, cantar, sentir medo, entender pinturas etc. Recurso ali�s que volta a comparecer em dife- rentes partes de "Um tal Lucas", livro de 1979, inclu�do no segundo volume, que se estende de 1969 at� 1983. 

Vale dizer que o ano do lan�amento de "Hist�rias de cron�pios...", 1962, antecede em apenas um ano o lan�amento do mais conhecido romance de Cort�zar, "O jogo da amarelinha", todo ele um experimento l�dico com os li- mites do pr�prio g�nero romanesco e que o escritor chamou, numa carta para um amigo, de antirromance. O colega uruguaio Juan Carlos Onetti comentou que a aten��o despertada por esse livro "foi vista como escandalosa pelas m�mias infinitas".

Tens�o de opostos

Num texto que tamb�m est� inclu�do ao fim do segundo volume de "Todos os contos", o cr�tico liter�rio Jaime Alazraki lembra uma entrevista de Cort�zar na qual ele chama a aten��o para o fato de que a literatura fant�stica convencional se ressente de n�o ter presen�a de humor. Alazraki aproveita a ocasi�o para retomar o conceito de neofant�stico para aplic�-lo � literatura de Cort�zar, ou seja, um mecanismo para apresentar alternativa ao falso realismo. Trata-se de uma tens�o entre duas for�as opostas: "Uma que nasce do plano temporal, outra que o nega; uma que esgota o espa�o na geometria, outra que o transcende".

Da� o uso de met�foras para as quais o referente foi abolido, o que gera uma possibilidade de estranhamento e abre o campo das interpreta��es para toda uma rede de potenciais significados. O pr�prio Cort�zar desconversava quando era inquirido a respeito dos sentidos impl�citos nas met�foras dos contos: "Eu sei tanto quanto o leitor". N�o � toa, ele afirmava que escrevia os contos independentemente da pr�pria vontade, "por cima ou por baixo da minha consci�ncia, como se eu n�o fosse mais que um meio pelo qual passava e se manifestava uma for�a alheia". Ou, para dizer de outro modo, mais liter�rio, como ele faz no fim de "As babas do diabo": "O que fica por dizer � sempre uma nuvem". 

A aposta de Davi Arrigucci no estudo "O escorpi�o encalacrado" � a de que Cort�zar se encontra diante de uma bifurca��o: a busca aponta para novos horizontes ou para o sil�ncio. Mas o tempo todo, a obra de Cort�zar se retira da linha narrativa para apresentar autoconsci�ncia, manifesta com ironia �s vezes excessiva e nem sempre com os me- lhores resultados. Isso aponta para uma busca de obra total, a superconsci�ncia organizadora que manifesta a ambi��o de unificar todos os livros num s� conjunto. O resultado � a cria��o de uma po�tica da busca, da persegui��o. H� algo a ser alcan�ado ao fim da hist�ria, apenas n�o se sabe bem (ainda) o que �. Torna-se necess�rio, portanto, continuar o movimento perp�tuo, a indaga��o sem fim. 

Paulo Paniago � professor de jornalismo da Universidade de Bras�lia e autor de "Outra viagem: Machado de Assis e a revolu��o da literatura brasileira" (Amavisse).
 
"Todos os contos"
* Julio Cort�zar
* Tradu��o de Heloisa Jahn e Josely Vianna Baptista
* Companhia das Letras
* R$ 269,90
* E-book: R$ 69,90


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