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'Humanista regenerado', Edgar Morin apresenta li��es de um s�culo de vida

Em volume de mem�rias, fil�sofo franc�s defende a vida n�o apenas como sobreviv�ncia, mas como 'exist�ncia po�tica'


04/02/2022 04:00 - atualizado 03/02/2022 23:56

FOTO DO Sociólogo e filósofo francês Edgar Morin
Formado em direito, hist�ria e geografia, Morin � um dos grandes pensadores franceses do s�culo 20 (foto: FRED DUFOUR/afp)
Resistir � domina��o, � crueldade e � barb�rie; tomar consci�ncia da complexidade humana; levar uma vida po�tica, com f� no amor. Essas s�o li��es partilhadas pelo soci�logo e fil�sofo franc�s Edgar Morin ao narrar as suas mem�rias no livro “Le�ons d’un si�cle de vie” (Ed. Deno�l, 2021), que marcou o seu centen�rio, em 8 de julho de 2021. Traduzido para o portugu�s por Ivone Benedetti, “Li��es de um s�culo de vida” chega ao Brasil pela Editora Bertrand Brasil. 

Formado em direito, hist�ria e geografia, autor de in�meras obras de filosofia e sociologia, como “A cabe�a bem-feita”, “Ci�ncia como consci�ncia”, “Conhecimento, ignor�ncia, mist�rio”, “Introdu��o ao pensamento complexo”, entre v�rias outras publicadas pela Bertrand Brasil, Morin � um dos grandes pensadores franceses do s�culo 20. Com a mesma mod�stia intelectual que caracteriza a sua trajet�ria, j� no pre�mbulo de “Li��es de um s�culo de vida” procura desfazer equ�vocos que possam suscitar o t�tulo. “Que fique bem claro: n�o dou li��es a ningu�m. Tento extrair li��es de uma experi�ncia centen�ria e secular de vida, e desejo que elas sejam �teis a cada um, n�o s� a quem queria refletir sobre sua pr�pria vida, mas tamb�m a quem queira encontrar sua pr�pria via.” 

Nascido em Paris, em 1921, filho de judeus espanh�is, Edgar Morin narra uma rica e aventureira exist�ncia, de amores e solid�o, atravessada por crises econ�micas, como a de 1929, a ascens�o do nazismo, a Segunda Grande Guerra (1939-1945) e a ocupa��o da Fran�a pela Alemanha nazista (1940-1944), per�odo em que aderiu � Resist�ncia Francesa sob o pseud�nimo “Morin”, filiando-se ao Partido Comunista franc�s, do qual foi expulso em 1951 por suas posi��es antistalinistas.

Em 1965, ap�s uma temporada em Israel antes da Guerra dos Seis Dias, indignado com a domina��o de Israel sobre o povo �rabe da Palestina, Morin tornou p�blica a sua cr�tica contundente e hostilidade � coloniza��o da Palestina �rabe, em coer�ncia �s suas convic��es universalistas e anticolonialistas. 

'Ser humanista � tamb�m sentir intimamente que cada um de n�s � um momento ef�mero de uma aventura extraordin�ria, a aventura da vida"

Edgar Morin


Ap�s a Segunda Guerra Mundial, Morin ingressou no Centre national de la recherche scientifique (CNRS), uma das institui��es de pesquisa cient�fica mais importantes do mundo. � sob esse olhar que anota em suas mem�rias os avan�os cient�ficos do s�culo 20 que considera marcos do conhecimento: no campo da f�sica nuclear, a descoberta das caracter�sticas do �tomo (1932), e, duas d�cadas depois, a descoberta da estrutura helicoidal do DNA (1953).

Morin testemunhou o maio de 1968 em Paris, assistiu � emerg�ncia da cultura de massa e, mais recentemente, a primeira pandemia do mil�nio, que arremessou ao confinamento um mundo perplexo pela escalada das mortes.

A aventura da vida

Ele se define como “humanista regenerado” – “filho” de Montaigne (Michel de Montaigne, 1533-1592), aquele que formulou tal princ�pio em duas frases: “Reconhe�o em todo homem meu compatriota” e “Cada um chama de barb�rie aquilo que n�o � de seu uso”. Para Morin, ser humanista est� muito al�m de pensar que as incertezas e perigos das crises da democracia, do pensamento pol�tico, da concentra��o de renda, do neoliberalismo exacerbado, da biosfera e a crise multidimensional carreada pela pandemia une os seres humanos numa comunh�o de destinos.

“Ser humanista doravante n�o � apenas saber que somos todos humanos semelhantes e diferentes, n�o � apenas querer escapar das cat�strofes e aspirar a um mundo melhor. Ser humanista � tamb�m sentir intimamente que cada um de n�s � um momento ef�mero de uma aventura extraordin�ria, a aventura da vida que deu origem � aventura humana, que, ao longo de cria��es, tormentos e desastres chegou a uma crise gigantesca, na qual est� em jogo o destino da esp�cie”, afirma o autor.

Assim, o humanismo regenerado �, para Morin, n�o apenas o sentimento da comunidade e da solidariedade humana, mas, igualmente, o sentimento de integrar a desconhecida aventura da vida, desejando que esta siga em dire��o a uma metamorfose, a um novo devir. 

As convic��es humanistas de Morin se consolidam com o passar do tempo, quando, paradoxalmente, o autor abandona a no��o de “perenidade do presente e de previsibilidade do futuro”. Reconhece que a incerteza � a t�nica da vida individual, da trajet�ria humana e da vida das na��es.

“Agora, quero ressaltar que uma das grandes li��es de minha vida foi a de parar de acreditar na perenidade do presente, na continuidade do devir, na previsibilidade do futuro. S�o incessantes, apesar de descont�nuas, as irup��es s�bitas do imprevisto que v�m sacudir ou transformar, �s vezes de maneira afortunada, �s vezes desafortunada, nossa vida individual, nova vida de cidad�o, a vida de nossa na��o, a vida da humanidade.”

Ao mesmo tempo, Morin menciona Karl Marx (1818-1883) para lembrar que a incerteza e o inesperado que constituem a hist�ria humana n�o s�o acasos: “� a velha toupeira que sabe muito bem trabalhar embaixo da terra para aparecer bruscamente”. 

Autor do “pensamento complexo”, Morin inicia a obra a partir da reflex�o sobre a pr�pria identidade. Indaga: “Quem sou eu?”. Apresenta o substantivo: “Sou um ser humano”. A partir deste, introduz v�rios adjetivos que conformam uma identidade complexa, una e plural: franc�s, de origem judaica sefardita, parcialmente italiano e espanhol, amplamente mediterr�neo, europeu cultural, cidad�o do mundo, filho da Terra-P�tria.

Para al�m de “uma parte min�scula de uma sociedade e um momento ef�mero do tempo que passa”, Morin converge o olhar para a conflu�ncia entre tempo e hist�ria, narrando a sua pr�pria vida, nas palavras de Marcia Tiburi (que assina a orelha do livro), “a mem�ria do passado, submetido � fugacidade do presente, que resgatamos do naufr�gio do esquerimento atrav�s de nossas atitudes narrativas”.

� assim que Morin se volta para o passado para falar sobre o presente e sobre o futuro, evocando desafios, os riscos de totalitarismos e que tipo de proveito podemos extrair de nossa forma��o para abra�ar o que est� por vir.

Morin reitera a recusa de uma identidade monol�tica ou redutora. Para ele, a consci�ncia da unidade/multiplicidade (unitas multiplex) da identidade � necessidade “de higiene mental para melhorar as rela��es humanas”.

A complexidade humana � expressa pelo autor numa s�rie de bipolaridades assim anotadas: o ser humano racional e s�bio (Homo sapiens) � tamb�m louco e delirante (Homo demens); ao mesmo tempo em que cria ferramentas, t�cnicas e constr�i (Homo faber), � tamb�m crente, religioso, mitol�gico (Homo fidelis ou H. religionis, H. mythologicus); e, por fim, ao mesmo tempo em que se dedica ao lucro pessoal (Homo aeconomicus), tamb�m � insuficiene e precisa dar lugar para o l�dico (Homo ludens) e a generosidade, praticando atividades desinteressadamente (Homo liber).

“Em suma, o substrato de racionalidade que se encontra em sapiens, faber e aeconomicus constitui apenas um polo do que � humano (indiv�duo, sociedade, hist�ria), enquanto se mostram com import�ncia no m�nimo igual a paix�o, a f�, o mito, a ilus�o, o del�rio, o l�dico”, considera Morin. “A grande li��o que extra� disso � que toda paix�o precisa comportar a vigil�ncia da raz�o, e toda raz�o precisa comportar o combust�vel da paix�o”, sustenta. 

Enquanto as lutas de identidade se desenrolam, Morin firma a necessidade de conscientiza��o da complexidade humana: ou seja, trata-se de ver em si e no outro os termos da trindade indiv�duo/sociedade/esp�cie, que define o humano. Permitir que todos se realizem no �mbito dessa trindade constitui um dos prop�sitos �ticos do “pensamento complexo” que caminha ao lado da resist�ncia � barb�rie, afirma Morin.

“Cada um traz em si o imperativo complementar do Eu e do N�s, do individualismo e do comunitarismo, do ego�smo e do altru�smo. A consci�ncia desse duplo imperativo enraizou-se profundamente em meu esp�rito ao longo dos anos. Ela sempre me impeliu a alimentar e fortalecer a capacidade de amor, maravilhamento e, ao mesmo tempo, resist�ncia obstinada � crueldade do mundo”, afirma, acrescentando que a consci�ncia da complexidade humana conduz � benevol�ncia. “A benevol�ncia possibilita considerar o outro n�o s� em seus defeitos e car�ncias, mas tamb�m em suas qualidades, tanto em suas inten��es quanto em suas a��es”, sublinha.

Saber viver, � portanto, mais uma li��o compartilhada por Morin. E h� um duplo sentido na palavra vida: por um lado, trata-se de existir, respirar, alimentar-se, proteger-se; por outro, trata-se de conduzir a vida com suas oportundiades e seus riscos, possibilidades de prazer e sofrimento. “A sobreviv�ncia � necess�ria � vida, mas uma vida reduzida � sobreviv�ncia j� n�o � vida”, considera Morin.

O autor anota que as in�meras mazelas humanas, sob mis�ria e humilha��o, s�o estado de subviver, pior ainda que sobreviver. “Uma das tarefas essenciais de uma pol�tica humanista � criar condi��es que deem n�o s� a possibilidade de sobreviver, mas tamb�m de viver”, assinala. Lembrando que todos os per�odos de felicidade comportam uma dimens�o po�tica, Morin declara: “Se a primeira grande aspira��o humana � realizar-se individualmente inserido numa comunidade, a segunda � levar vida po�tica”. A urg�ncia �, ent�o, para esse s�bio centen�rio, encontrar o caminho da poesia, do �xtase, do conv�vio, do calor humano e da benevol�ncia amorosa. 

TRECHO 

“�s vezes me sinto esmagado pelo amor � vida. Que beleza, que harmonia, que unidade profunda, que complementariedade e solidariedade entre os seres vivos! Que for�a criadora para inventar mir�ades de esp�cies animais e vegetais singulares! �s vezes me sinto esmagado pela crueldade da vida, pela necessidade de matar para viver, por sua energia destruidora, seus conflitos, sempre com o triunfo da morte. Depois consigo reunir, manter, ligar indissoluvelmente as duas verdades contr�rias. A vida � d�diva e fardo, a vida � maravilhosa e terr�vel.” 
capa do livro 'Lições de um século de vida'

“Li��es de um s�culo de vida”
De Edgar Morin
Tradu��o de Ivone Benedetti
Bertrand Brasil
112 p�ginas
R$ 39,90


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