'Notas para um naufr�gio' relata drama de imigrantes no Mar Mediterr�neo
Davide Enia mistura escrita documental com mem�ria autobiogr�fica para contar como a trag�dia ocorrida em 2013 transformou a ilha siciliana de Lampedusa
Com tradu��o inspirada de Wander Melo Miranda, 'Notas para um naufr�gio' funciona como se ali convivessem dois livros: um voltado para a coletividade, a odisseia dos naufragados observada e descrita de forma precisa, e outra centrada no indiv�duo, na travessia de David� em dire��o � rela��o com o pai e com a doen�a e morte do amado tio (foto: /Lelis)
Em mar�o de 2020, quando eclodiu de vez a pandemia do coronav�rus, a cidade italiana de Bergamo tornou-se, junto a Wuhan, na China, um s�mbolo da trag�dia que come�ava a acontecer. De l� partiram caminh�es carregando caix�es dos vitimados pela doen�a, imagem de um cortejo funesto que ecoaria por todo o planeta. Tamb�m na It�lia (n�o em terra firme, mas na �gua) h� mais de vinte anos outro lugar se celebrizou, por ser epicentro de um drama que parece n�o ter fim: a ilha de Lampedusa.
Por sua localiza��o entre a costa africana e a Europa, tornou-se palco da dram�tica rota de fuga de refugiados em dire��o a melhores condi��es de vida. As �guas azuis do lugar s�o tema e met�fora de "Notas para um naufr�gio", belo ensaio do dramaturgo Davide Enia, que parte dessa "palavra-continente" - Lampedusa cont�m, segundo o autor, da solidariedade � morte, do resgate ao naufr�gio, da migra��o � fronteira. Mesmo para aqueles familiarizados com o assunto, presente em filmes, document�rios, pe�as de teatro, livros e ensaios cr�ticos, a leitura desta obra traz renovado olhar sobre a situa��o. Um livro belo e urgente, na inspirada tradu��o de Wander Melo Miranda para a editora Ayin�.
Quando o assunto entra na roda, � grande o risco de redundar na ret�rica da boa vontade, ou mesmo na estetiza��o de uma dor que n�o se deixa apreender por palavras banais. Estudioso da quest�o, o antrop�logo Michel Agier lembra que h� que se ter cuidado com a ideia de ser porta-voz de uma causa. � necess�rio certo pudor ao comunicar tamanho sofrimento - afogamentos, inf�ncias interrompidas, estupros, mutila��es, queimaduras, mortes, n�o h� como recuperar essas hist�rias sem considerar a delicadeza envolvida no trato do tema.
Ser espectador de um naufr�gio � atitude �tica, como lembra o fil�sofo Hans Blumenberg. Olhar � se comprometer, sempre: "Talvez, no final, tudo se resuma a um dilema: se h� uma pessoa se afogando no mar numa tempestade, quem sou eu? Aquele que se atira, mesmo arriscando a pr�pria vida, ou aquele que, aterrorizado pela morte, fica agarrado � terra firme?", indaga Enia.
Armadilhas evitadas
Ao tocar em tantas feridas, o relato evita essa armadilha. Al�m de exercitar a escuta de modo permanente ao recolher depoimentos, o autor olha de frente a pr�pria trajet�ria para narrar a experi�ncia de v�rias visitas a Lampedusa. Como se fosse incontorn�vel o gesto de encarar a biografia pessoal ao se lan�ar no corpo a corpo com as hist�rias da ilha, Enia se volta para dentro de si enquanto mira o espantoso drama que se desenrola diante de todos n�s. Dramaturgo, ator e romancista, o escritor siciliano tem j� publicado no Brasil "Assim na terra" (2013), romance inspirado na pr�pria fam�lia.
Nele, acompanhamos David� e sua rela��o com pai e tio paterno, nesta obra alicer�ada em torno da paix�o pelo boxe. Davide tornado David� (tanto neste quanto no atual relato) foi o caminho escolhido para recriar ficcionalmente a pr�pria hist�ria. H� um eu que vive as situa��es, mas h� sobretudo um eu que escreve, e a grafia da experi�ncia pessoal resulta no texto com ares autobiogr�ficos e sabor de fic��o.
“Notas para um naufr�gio” funciona como se ali convivessem dois livros. Um voltado para a coletividade, a odisseia dos naufragados observada e descrita de forma precisa, e outro centrado no indiv�duo, na travessia de David� em dire��o � rela��o com o pai e com a doen�a e morte do amado tio. Uma narrativa masculina, de homens meridionais que v�em a vida desenrolar-se diante do mar e compartilham sil�ncios, mas tamb�m gestos de ternura e cumplicidade.
O livro seria impactante se narrasse, como o faz, o drama que se desenrola nas �guas de Lampedusa. Seria igualmente comovente se se concentrasse na rela��o dos Enia, no vocabul�rio comum das mem�rias familiares. Ao cruzar os dois caminhos, algo se potencializa, e o jogo textual cresce, na medida em que o individual ilumina o coletivo, e vice-versa. Como na cena da inf�ncia do aprendizado a nadar no mar: a confian�a entremeada ao medo, o olhar do pai a sustentar de longe a coragem do filho; passagens que amplificam a discuss�o sobre a trag�dia ocorrida sistematicamente no espa�o l�quido.
Ao frisar que faz parte de "uma cultura secular na qual calar � sintoma de virilidade", Enia traz para o centro da narrativa a pr�pria quest�o da dificuldade de comunica��o, tema central para quem se prop�e a narrar trag�dias. O que dizer, mas sobretudo como dizer, parece ser a pergunta maior. Nessa cartografia afetiva, o autor vai costurando depoimentos de profissionais, como m�dicos e mergulhadores, ao de moradores e sobreviventes, al�m de sua pr�pria viv�ncia na ilha ao lado do casal de amigos Paola e Melo, moradores do lugar.
H� uma bela passagem no livro em que o autor destaca a necessidade de escuta diante dos sujeitos dessa hist�ria, porque cabe a eles o relato dessa travessia �pica, do enfrentamento do medo, da morte e da viol�ncia. � preciso p�r em palavras tal experi�ncia, uma vez que s�o vidas que devem existir tamb�m como narrativa, salvando-as do esquecimento.Como no gesto de Paola, ao escrever na l�pide de uma mo�a afogada um breve texto que recupera de alguma forma sua biografia, pois de outro modo no t�mulo restaria apenas a data de morte.
Ou a afirmativa de Alberto, antrop�logo romano radicado na ilha, ao sustentar que se sente privilegiado de estar no cais no momento do desembarque, para honrar a viagem dos migrantes. Ou mesmo quando o tio paterno relata ao sobrinho que ao seu lado, no quarto do hospital em que faz quimioterapia, est� em tratamento um rapaz l�bio chegado a Lampedusa em uma barca�a. Lutam juntos pela vida.
Todos j� assistimos, com maior ou menor distanciamento, imagens terr�veis de afogamentos, cenas de campos de refugiados e de protestos por m�s condi��es de vida nesses lugares. Vistos pela m�dia e pelo senso comum como v�timas, ou, no pior dos casos, delinquentes, vale frisar que essas pessoas n�o se v�em como sujeitos falhados, mas como her�is da pr�pria exist�ncia, pois sonharam um futuro e realizaram uma empreitada de dimens�o �pica.
Ao narrarem suas experi�ncias, passam enfim a portadores de uma palavra pol�tica que mobiliza e reivindica espa�o para al�m do mero consumo de sua figura (ou de sua fotografia). "H� outras coisas al�m do desespero. H� a vontade de resgate e de uma vida melhor, h� as can��es e os jogos, o desejo de alguma comida em especial e a vontade de se divertir com os outros", afirma Melo.
O para�so n�o � aqui
No que concerne o Brasil, imposs�vel n�o pensar no recente assassinato de Mo�se Kabamgabe, de 24 anos, que trabalhava por di�rias em um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Espancado covardemente por cinco homens com peda�os de madeira e um taco de beisebol, o congol�s teve o corpo amarrado ap�s a morte ao lado do estabelecimento. Racismo e xenofobia em um epis�dio de barb�rie tendo como testemunhas a areia e o mar. O para�so n�o � mesmo aqui.
Lugar atemporal, de acolhimento e beleza, percebido como espa�o de liberdade e alegria, o mar se transmuta em vertigem, espanto, naufr�gio da pr�pria exist�ncia: do movimento constante das �guas ao imobilismo da imagem do cemit�rio, instaura-se um doloroso jogo de contraste. Como dizem os versos de "Casa", da poeta Warsan Shire, "Voc� tem que entender/que ningu�m coloca os seus filhos num barco/a menos que a �gua seja mais segura do que a terra (...)". Por isso, n�o nos enganemos, a escolha j� est� feita. Para muitos, � inevit�vel partir e os botes v�o continuar a chegar. Nesse sentido, os discursos nacionalistas e xen�fobos, a defesa de portas fechadas e a criminaliza��o de quem se desloca s�o a perversa face do modo de lidar com a quest�o. Dentro dessa guerra de fronteiras, a li��o talvez seja mesmo a que prioriza a coabita��o, o conv�vio e a escuta. Sem esses elementos, cidadania � palavra esvaziada de sentido.
"No mar toda vida � sagrada. Se algu�m precisa de ajuda, n�s o salvamos. N�o existem cores, etnias, religi�es. � a lei do mar", afirma um mergulhador. Pelo direito mar�timo, � dever de toda embarca��o o resgate nas �guas. Nessa perspectiva, todo n�ufrago � sagrado. Talvez seja a hora de transpor para a terra firme a li��o que desde sempre o oceano nos ensina, para que todas essas vidas tenham, enfim, a chance de recome�ar.
TRECHO
Nossas palavras n�o conseguem colher em cheio a verdade deles. Podemos nomear a fronteira, o momento do encontro, mostrar os corpos dos vivos e dos mortos nos document�rios. Nossas palavras podem narrar as m�os que tratam e as m�os que levantam arames farpados. Mas a hist�ria da migra��o ser�o eles a narr�-la, aqueles que partiram e, pagando um pre�o inimagin�vel, atracaram nessas lides. Ser�o necess�rios anos. (...) Ser�o eles a usar as palavras exatas para descrever o que significa arrancar em terra firme depois de ter escapado da guerra e da mis�ria, perseguindo o sonho de uma vida melhor. E ser�o eles que nos explicar�o o que se tornou a Europa e a nos mostrar, como num espelho, quem nos tornamos."
(Trecho de "Notas para um naufr�gio, de David Enia)
"Notas para um naufr�gio"
.De Davide Enia
.Tradu��o de Wander Melo Miranda
.�yin�.
.257 p�ginas.
.R$ 59,90
* Stefania Chiarelli � professora e pesquisadora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF), coorganizadora do volume "Falando com estranhos: o estrangeiro e a literatura brasileira"