"O mito do para�so perdido � o da inf�ncia - n�o h� outro. O mais s�o realidades a conquistar, sonhadas no presente, guardadas no futuro inalcan��vel. E sem elas n�o sei o que far�amos hoje. Eu n�o o sei." - Jos� Saramago, em "Uma luz inesperada"
A Companhia das Letrinhas acaba de lan�ar, com o capricho habitual, dois livros de Jos� Saramago em edi��es voltadas para o leitor infantil: “O sil�ncio da �gua” e “Uma luz inesperada”. Ambos os textos foram pin�ados de obras adultas do autor, j� publicadas no Brasil. No livro de origem, cada um ocupava duas p�ginas, mas agora espraiam-se por 30 p�ginas, com um ou dois par�grafos por p�gina, acompanhados de amplas e expressivas ilustra��es. Essa op��o editorial tem o efeito de diluir – no melhor sentido – o peso do texto de Saramago, resultando em livros infantis que t�m subst�ncia e leveza.
"Uma luz inesperada"
Em nova edi��o, “O sil�ncio da �gua” veio do livro “As pequenas mem�rias”, lan�ado no Brasil em 2006. � uma hist�ria de pescador, uma esp�cie de “O velho e o mar” calibrado – no tamanho do texto, do pescado e do pescador – para o leitor infantil. Um garoto vai, com seus petrechos, pescar na “boca do rio”, a foz do Almonda, e � surpreendido por um violento pux�o que lhe leva embora o anzol, a boia e o chumbo. Diante do espanto, o garoto reage de forma corajosa e ao mesmo tempo impensada: corre de volta � distante casa dos av�s, esbaforido, para preparar outra vara de pesca, como se a criatura aqu�tica – que para ele equivalia a um monstro – fosse esper�-lo no mesmo ponto do rio. A av� desaconselha o garoto a voltar ao rio, mas ele n�o est� disposto a render-se diante do poderoso rival: “eu n�o a ouvi, n�o a queria ouvir, n�o a podia ouvir”.
Assim, vai encarar novamente o sil�ncio mais profundo do mundo: o sil�ncio da �gua. De certo modo, � a sua terceira margem do rio. Narrado em primeira pessoa, como uma mem�ria encantada, o texto deixa evidente como o epis�dio calou fundo no sentimento do narrador, agora j� adulto: “Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci”.
Yolanda Masquera, premiada ilustradora que mora no Pa�s Basco, cria imagens muito sugestivas para a nova edi��o, com uma paleta que explora v�rios tons entre o marrom e o verde da mata, deixando o rio como um misterioso branco que invade os olhos. A artista inclui, ainda, na hist�ria, um c�ozinho – inexistente no texto – que segue de perto toda a saga do garoto, como companhia e testemunha de seu destemor.
"o sil�ncio da �gua"
Visita � feira
“Uma luz inesperada” – publicado originalmente em “A bagagem do viajante”, em 1996 – tamb�m relata um epis�dio que marcou a inf�ncia de Saramago: uma visita � Feira de Santar�m, ao lado de um tio, para vender o resto de uma ninhada. Embora desprovidos de acontecimentos extraordin�rios, aqueles dois dias insistem em trazer, no silencioso apelo da mem�ria, “uma aura, uma coroa de sons, de luzes, de cheiros miraculosamente conservados intactos”.
Desacostumado a passeios e habituado a calar alegrias, o garoto mal consegue conter os gritos de excita��o ao receber o convite para ir � Feira, como se fosse um convite para se aventurar num navio pirata. Sem luxo nem conforto, a viagem a p� revela sua discreta magia na frescura da noite, no luar que deixa tudo branco refulgente, na curiosa chuva que rodeia o menino e o tio, sem chegar a molh�-los. Tudo aquilo – mesmo sendo t�o pouco – � suficiente para convencer Saramago de que a inf�ncia � o para�so perdido.
As ilustra��es do mexicano Armando Fonseca, em respeito ao ambiente noturno que predomina em quase todo o texto, raramente saem do preto e do cinza. Quando aparecem os poucos tra�os coloridos, eles v�m para destacar a Lua, as estrelas, uma planta ou um bicho. Ainda assim, s�o imagens repletas de simbologia e do sentimento de maravilhoso que povoa as lembran�as do narrador.
Em ambos os livros, a editora alerta que optou por manter o vocabul�rio, a acentua��o e a sintaxe usados pelo autor, por mais que eventualmente provoquem algum estranhamento ao leitor brasileiro. A op��o se mostra acertada, pois n�o h� nada no texto que atravanque a leitura. Quando muito, o estilo e as express�es de Saramago provocar�o um barulhinho bom, um ru�do que pode ser relevado pelo leitor ou que, talvez, o leve ao dicion�rio para verificar o que s�o, afinal, b�coros, marr�s, farn�is e pitan�as.
* Leo Cunha � jornalista, escritor, tradutor, mestre em ci�ncia da informa��o e doutor em artes pela UFMG.Desde 1993, publicou dezenas de obras para crian�as e jovens, em poesia, prosa, cr�nica e teatro. Suas obras receberam pr�mios como o Jabuti, Nestl�, Jo�o-de-Barro, Biblioteca Nacional, entre outros.