
Alguns funcion�rios do fisco, lotados em um escrit�rio na cidade de Peoria, no Meio-Oeste dos Estados Unidos, em meados da d�cada de 1980: eis os habitantes da “terra muito velha” pela qual circula David Foster Wallace (tamb�m conhecido apenas pelas iniciais DFW) em “O rei p�lido”, seu terceiro e derradeiro romance. Lan�ado postumamente em 2011 e finalista do Pulitzer no ano seguinte, trata-se de um livro inacabado.
Ap�s o suic�dio do autor, em 2008, o editor Michael Pietsch se viu soterrado por arquivos, pastas, disquetes, resmas manuscritas e anota��es em cadernos. Assim, o que temos em m�os � tamb�m fruto de um enorme esfor�o editorial, pois, em meio � papelada deixada por DFW, n�o havia um esquema que norteasse o trabalho de organiza��o do material. Assim, � medida que alguns personagens e linhas narrativas se sobressaem, e h� v�rias e v�rias passagens de enorme beleza liter�ria, o que o leitor tem a fazer � se deixar levar por esses fragmentos, regozijando-se com o que foi feito e intuindo o que o autor talvez pretendesse fazer.
Dada a sua incompletude, romances inacabados por motivos de for�a maior — e n�o existe for�a maior do que a morte (nem mesmo os impostos) — tendem a deixar os leitores com um n� na garganta. Imposs�vel n�o lamentar a inconclus�o. Em se tratando de “O rei p�lido”, esse n� � ainda mais apertado: “2666”, de Roberto Bola�o, e “O grande”, de Juan Jose Saer, para citar duas obras-primas lan�adas neste s�culo, s�o livros mais “acabados” do que o romance de DFW. Mas, ainda assim, ele � muito bem-sucedido na concretiza��o de seu universo ficcional.
Teia de personagens e situa��es
O que “falta” s�o maiores desdobramentos ulteriores e paralelos, o momento (como em “Gra�a infinita”) em que essa teia de personagens e situa��es converge de alguma ou de v�rias maneiras. Temos mais do que um vislumbre disso em alguns momentos, como nos cap�tulos 14 (cuja estrutura lembra a dos contos-t�tulo de “Breves entrevistas com homens hediondos”), 19 (o bate-papo no elevador oferecendo p�rolas como: “A extraordin�ria apatia pol�tica que se seguiu a Watergate e ao Vietn� e a institucionaliza��o da rebeli�o comunit�ria entre as minorias s� v�o se aprofundar. Pol�tica depende de consenso, e o legado publicit�rio dos anos sessenta diz que consenso � repress�o.”), 29 (voc� jamais esquecer� a hist�ria envolvendo Marcus Gord�o, o Agiota e Diablo, o Surrealista Canhoto — “Ningu�m na sua universidade tinha uns nomes tipo Joe ou Bill?”) e 46 (um longo di�logo em que, ao final, dadas as coisas ditas e n�o ditas entre dois indiv�duos, quem est� levitando � o leitor).
N�o obstante a reiterada incompletude da obra, � incr�vel como v�rios dos personagens j� aparecem inteiros. Nenhum dos fragmentos coligidos pelo editor � dispens�vel, longe disso, e o ideal (at� para se familiarizar com a ambienta��o, as intrigas e, sim, os fantasmas do lugar) � seguir a ordem estabelecida na edi��o, mas h� cap�tulos que se sustentam quase — repito: quase — como narrativas aut�nomas. Em geral, s�o passagens que se debru�am sobre a vida pregressa e/ou interior de um punhado de personagens, como o “m�dium de fatos” Claude Sylvanshine (2, 7, 15, e o que � aquela liga��o em 30?), Leonard Stecyk (5, 12), Lane A. Dean Jr. (6, 33), Toni Ware (8, 45), David Cusk (13) e Chris Fogle (22).

Das passagens citadas at� aqui, o longo depoimento de Fogle, a narrativa acerca do passado traum�tico de Ware e a dupla “confiss�o” de Meredith Rand (46) talvez sejam os melhores exemplos da capacidade que DFW tem de expor certas fraturas e dar estofo e humanidade aos personagens que cria. Embora ele tenha anotado que a “trama � uma s�rie de prepara��es para coisas que v�o acontecer, sem que nada aconte�a de fato” — o que � reiterado pela ideia de uma pe�a teatral ventilada por um personagem, pe�a em que nada acontece, ou em que a a��o s� acontece depois que a plateia desiste e vai embora —, somos envolvidos por uma s�rie de acontecimentos �s vezes terr�veis (o analista morto h� dias sem que os colegas percebam; os abusos sofridos por Ware; o destino do pai de Fogle), �s vezes pedestres (o atentado que n�o � atentado; a conversa fiada dos funcion�rios no intervalo; a irm� de Nugent imitando a mo�a d’“O exorcista”), mas desvelados em um tom n�o raro compassivo e, no caso de Ware (8), com uma levada que ecoa Cormac McCarthy: “O sol l� no alto como um olho m�gico que se mostrava o cora��o do inferno consumindo-se sozinho”.
� gra�as ao talento de DFW e � generosidade dele para com os personagens que “O rei p�lido”, em vez de se deixar abra�ar pelo “v�u de t�dio”, pelo “t�dio al�m do t�dio”, abra�a o leitor. A qualidade narrativa do romance est� ancorada nessa proximidade que ele cria entre n�s e os personagens. Aquele esfor�o compassivo � muito bem-sucedido; mesmo a ironia funciona como um vetor de aproxima��o, n�o de distanciamento. E � gra�as a tudo isso que, volta e meia, somos pegos no contrap�: seja em uma aula de marcenaria do ensino m�dio, seja em um bar no qual os funcion�rios do fisco se re�nem ap�s o expediente, as epifanias se materializam uma ap�s a outra.
Trecho
“As habilidades relacionais da m�e eram insignificantes e n�o inclu�am a fala confi�vel ou consistente. A filha foi aprendendo a confiar em a��es e detalhadamente ler sinais dos quais o grosso das crian�as se mant�m inocente. O surrado atlas rodovi�rio tinha ent�o aparecido e estendido jazia sobre a fresta mediana do balc�o aberto no estado natal da m�e sobre cuja representa��o de seu ponto de origem restava um esporo de muco seco rajado de rubro fio de sangue. O atlas ficou aberto daquele jeito por quase uma semana inconsulto; elas comiam em volta dele. Acumulava cinzas que o vento trazia pela tela rasgada. Formigas assolavam todos os trailers do parque, havendo algo na cinza do fogo de que elas precisavam. (...)”
Guia de leitura da obra de DFW
Romancista, contista e ensa�sta, David Foster Wallace se movimentava com desenvoltura em todos esses g�neros. Os livros citados abaixo sa�ram no Brasil pela Companhia das Letras. Uma colet�nea de entrevistas, “Um ant�doto contra a solid�o”, foi publicada em 2021 pela editora mineira �yin�.
Na prosa de n�o fic��o, a colet�nea “Ficando longe do fato de j� estar meio que longe de tudo” (trad.: Daniel Galera e Daniel Pellizzari) vai � Feira Estadual de Illinois, a um cruzeiro pelo Caribe e ao Festival da Lagosta do Maine. O volume tamb�m inclui “Isto � �gua”, discurso que viralizou ap�s a morte de DFW e no qual � sublinhada aquela “liberdade de ver os outros”.
Essa liberdade comparece inteira em “Gra�a infinita” (trad.: Caetano Galindo). Drogas, t�nis, depress�o, cinema, caos pol�tico (ali�s, em tempos de guerra da Ucr�nia, sugiro a passagem com o jogo Eskhaton, a partir da p�g. 331) e virtuosismo: tudo comparece ali. N�o custa lembrar que o primeiro romance do autor, o divertid�ssimo e wittgensteiniano “The broom of the system”, permanece in�dito por aqui. N�o quero engolir o universo como Bombardini, mas h� aus�ncias inexplic�veis em nossas prateleiras (como William Gaddis, uma das inspira��es liter�rias de DFW e um dos maiores autores do s�culo 20).
Por fim, “Breves entrevistas com homens hediondos” (trad.: Jos� Rubens Siqueira) traz alguns dos melhores contos do autor, como “A pessoa deprimida” e “Sem querer dizer nada”. Seria �timo o leitor n�o fluente em ingl�s ter � disposi��o a melhor colet�nea de DFW, “Oblivion” — � nela que est� “The suffering channel”, sobre um jornalista que, �s v�speras dos atentados de 11/9, tenta escrever sobre um artista que defeca suas obras.
Andr� de Leones � escritor, autor de "Eufrates”’ (Jos� Olympio), entre outros romances

“O rei p�lido: um romance inacabado”
David Foster Wallace
Tradu��o de Caetano W. Gallindo
Companhia das Letras
608 p�ginas
R$ 114,90