
– Por que essa mulher est� aqui dando ordens e controlando a casa se n�o � nada minha? A m�e reagia com raiva. – O que est� acontecendo com voc�? – perguntava com incredulidade. – N�o � ele, mam�e. � a dem�ncia. Ela me olhava como se eu tentasse engan�-la. Surpreendentemente, esse per�odo passou, e na mente do meu pai ela recuperou o lugar que pertencia � minha m�e como sua acompanhante principal. � o �ltimo la�o. A secret�ria, o motorista, a cozinheira, que trabalham na casa h� anos, ele reconhece como pessoas familiares e gente am�vel, de confian�a, mas j� n�o sabe como se chamam. Quando meu irm�o e eu o visitamos, ele olha longa e vagarosamente para n�s, com uma curiosidade desinibida. Nossos rostos tocam algo distante, mas j�n�o nos reconhece.
– Quem s�o essas pessoas no quarto a� ao lado? – pergunta para a empregada. – S�o seus filhos. – S�rio mesmo? Esses homens? Caralho... Que incr�vel. Faz um par de anos, houve um per�odo mais desagrad�vel. Meu pai estava plenamente consciente de que a mem�ria estava virando fuma�a. Pedia ajuda com insist�ncia, repetindo algumas vezes que estava perdendo a mem�ria. O pre�o de ver uma pessoa nesse estado de ansiedade e ter que tolerar suas intermin�veis repeti��es, uma, duas, tantas vezes, � enorme. Dizia ele: “Trabalho com a minha mem�ria. A mem�ria � minha ferramenta e minha mat�ria-prima. N�o consigo trabalhar sem ela, me ajudem”, e depois repetia de v�rias maneiras, muitas vezes por hora e por horas a fio. Era extenuante. Com o tempo, passou. Recobrava alguma tranquilidade e �s vezes dizia: – Estou perdendo a mem�ria, mas por sorte esque�o que estou perdendo a mem�ria... Ou
– Todos me tratam como se eu fosse crian�a. Ainda bem que eu gosto... Sua secret�ria me conta que numa tarde o encontrou sozinho, de p� no meio do jardim, olhando para o nada, perdido em pensamentos. – O que o senhor veio fazer aqui fora, dom Gabriel? – Chorar. – Chorar? Mas o senhor n�o est� chorando. — Estou sim, mas sem l�grimas. Voc� n�o percebe que minha cabe�a est� uma merda? Em outra ocasi�o, disse a ela: – Esta n�o � a minha casa. Quero ir para casa. A do meu pai. Tenho uma cama ao lado da dele.
Suspeitamos que a refer�ncia n�o seja ao seu pai, e sim ao seu av�, o coronel (e que inspirou o coronel Aureliano Buend�a), com quem ele morou at� os oito anos e que foi o homem mais influente em sua vida. Meu pai dormia num colchonete no ch�o, ao lado da cama dele. Nunca voltaram a se encontrar depois de 1935. – � o que acontece com o seu pai – me disse sua assistente.
– Ele pode falar de um jeito bonito at� das coisas mais horr�veis.”
Sobre o autor
“Gabo & Mercedes: uma despedida”
(Editora Record) foi escrito por Rodrigo Garc�a, filho mais velho de Gabriel Garc�a M�rquez. Ele conta os �ltimos dias de vida do escritor colombiano, que morreu em 17 de abril de 2014, e de sua mulher, Mercedes Barcha, morta em 15 de agosto de 2020. A edi��o brasileira, que chega �s livrarias na pr�xima segunda-feira (2/5), tem tradu��o e orelha de Eric Nepomuceno, amigo pessoal de Gabo e tradutor de v�rias obras do Nobel de Literatura de 1982.
‘Gabo & Mercedes": Uma despedida’’
- Rodrigo Garc�a
- Tradu��o de Eric Nepomuceno
- Editora Record
- 112 p�ginas
- Pre�o: R$ 64,90