
Sem fazer alarde, Ivan Angelo construiu, ao longo de mais de meio s�culo, uma obra pra chamar de sua. Seja no romance, no conto ou na cr�nica, o cara � craque. Vencedor dos mais importantes pr�mios liter�rios brasileiros e consagrado com livros como “A festa” (1975) e “A face horr�vel” (1986), nunca vestiu o manto do artista consagrado. O escritor mais antimarketing que conhe�o sabe que o tempo da literatura nunca foi o tempo da ind�stria. E que as vezes � preciso ficar calado. Seguir escrevendo. Mas calado.
Da� o misto de felicidade, e curiosidade, que a gente sente quando um livro dele chega �s livrarias. “Sex shop miscel�nea libidinosa” (Faria e Silva) re�ne contos, poemas e ensaios sobre o sexo. “O livro � uma met�fora do pa�s”, ironiza Ivan, mineiro de Barbacena, onde nasceu em 1936.
Jornalista desde muito cedo, Ivan publicou, ainda 1961, “Duas faces”, volume que reuniu sete contos seus e duas novelas do, tamb�m estreante, Silviano Santiago. Os dois faziam parte do grupo que editou Complemento, ainda nos anos 1950. A revista teve quatro n�meros. E acabaria dando nome � gera��o.
E que gera��o. O grupo reunia talentos multidisciplinares, e que n�o se interessavam apenas por literatura: cinema, teatro, dan�a e artes pl�sticas faziam parte do papo desta turma. Dele fizeram parte, entre outros, um grande renovador da dan�a no Brasil: Klauss Vianna. E, pasmem garotos, Ezequiel Neves, o futuro produtor musical, e que seria o mentor de grupos de rock como o Bar�o Vermelho.
Para falar sobre o novo livro, da gera��o Complemento e muito mais, Ivan conversou com o Pensar. Confira abaixo os melhores trechos.
O sexo, e seus “derivados”, permeia quase todas as narrativas do livro. Recentemente, voc� disse que o “Brasil � um vasto sex shopping”. Como chegamos a este ponto?
Shopping � o qu�? � vitrine, mostra, coisas postas � vista, � venda. Sexo era o escondido, o por tr�s da banca, o por baixo do balc�o. Os corpos eram menos expostos, desejos eram secretos, desvios eram sufocados, casais n�o brincavam de par ou �mpar, jovens n�o transavam na casa dos pais. N�o estou dizendo que era melhor, s� que a intimidade era menos vis�vel, sem exibi��o tipo loja, loja de sexo, nada a esconder. A intimidade mudou. “Mande um nude” virou brincadeira de celular, at� entre quem n�o tem intimidade. Ent�o, um livro cujo assunto � o sexo moderno nesse exibido Brasil moderno n�o tem pudores de se chamar ‘Sex shop’ e de ser uma met�fora do pa�s.
O livro me fez lembrar sua pr�-hist�ria, do tempo do Correio de Minas. L�, voc� escrevia um folhetim meio sacana, que contava os casos de amor de Christine Keeler, uma modelo inglesa famosa na �poca. Curiosamente, por�m, o livro que o projetou, “A festa”, tem uma pegada que n�o diria engajada, mas pol�tica. O que prefere: falar da pol�tica ou da vida �ntima?
As duas coisas podem andar juntas, o lado social e a intimidade, numa fic��o ou na vida real. No caso daquela brincadeira que fizemos no Correio de Minas com a modelo Christine Keeler, a atividade dela na cama tinha implica��es porque ela transava ao mesmo tempo com um alto funcion�rio do governo ingl�s e com um diplomata sovi�tico espi�o. O que passava de um corpo diplom�tico para outro, al�m de saliva e outros fluidos, foi a base do esc�ndalo. No meu livro “A casa de vidro”, a primeira hist�ria, que se chama “Conquista”, funde as duas coisas, a vida �ntima e a atua��o pol�tico-social. O personagem � um predador de mulheres e de trabalhadores. Veja, o assunto de um livro � um dos elementos que o autor manobra literariamente, faz parte de um todo, junto com as t�cnicas, a linguagem, a estrutura, as inten��es amplas da obra. Em “Sex shop”, os contos, os textos po�ticos e aqueles sobre comportamentos t�m essa perspectiva, acredito: trata-se da vida �ntima, mas n�o � s� isso. N�o h� nunca a inten��o de erotizar o assunto, excitar sexualmente o leitor.
Entre “Duas Faces”, de 1961, e “A festa”, de 1976, existe um intervalo de 15 anos. Voc� s� pensou em escrever outro livro, depois de uma viagem que fez � Europa em 1972: l� se encontrou com o Fernando Gabeira, exilado. “A festa” tem nos agradecimentos o nome dele. Que lembran�as voc� tem desses anos? Ainda mant�m conversas com ele?
As conversas com os exilados do p�s-1968 brasileiro na Europa, principalmente o Fernando, colocaram em movimento um livro que eu havia planejado e come�ado a escrever em 1963, em Belo Horizonte. Era “A festa”, o mesmo t�tulo, mas outra festa, outro pa�s, pr�-golpe militar. Com o golpe, o livro parou, ficou engasgado enquanto eu fazia jornalismo e publicidade em BH, continuou engasgado depois que me mudei para S�o Paulo, no fim de 1965, ficou mais engasgado ainda com a censura e aquelas atrocidades todas do p�s-1968, at� que me deram um tapa nas costas em 1972, na Europa, e o engasgo saiu. Replanejei o livro, inclu� a ditadura, retomei o texto em 1973, conclu� o livro em 1975, publiquei em 1976. Demorou a sair porque n�o era f�cil achar editor para uma coisa daquelas. Quando o Fernando voltou, retomamos a amizade, ele inclusive morou em S�o Paulo um tempo, ficou na minha casa, escreveu um livro l�, acho que foi “O crep�sculo do macho”. Atualmente, moramos em cidades diferentes, n�o vou ao Rio h� uns oito anos, porque tenho implicado com a cidade, o distanciamento piorou com a pandemia, conversar � raro, mas a amizade � a mesma.
Voc� entrou para a o jornalismo pelas m�os de Cyro Siqueira, que o convidou para escrever uma coluna semanal de literatura no Di�rio da Tarde, chamada “Plant�o Liter�rio”. Pode contar um pouco dessa hist�ria?
Sim, � verdade. O Cyro chefiava o Di�rio da Tarde, era o mais importante cr�tico de cinema da cidade, um dos fundadores da importante Revista de Cinema, era do CEC, Centro de Estudos Cinematogr�ficos, e muito ligado � cultura. Volta e meia, eu publicava no DT umas cr�nicas, na se��o Revezamento. Contos, aqui e ali. Eu despontava como escritor antes de ser jornalista. O Cyro me ofereceu essa coluna, em que eu comentava os lan�amentos de livros e revistas liter�rias. Depois me convidou para ser rep�rter, em seguida redator, para reescrever not�cias. Nos setores de pol�cia e de cidade havia rep�rteres de �timo faro que n�o sabiam escrever. Me tornei jornalista porque n�o sabia fazer outra coisa sen�o escrever, como � o caso de quase todo jornalista, de Machado de Assis a Ant�nio Prata.
H� mais de 50 anos fora de Belo Horizonte, que imagem voc� tem hoje da cidade? Sente saudade? Que rela��es tem com a tal mineiridade?
Gosto muito de uma frase do escritor Humberto Werneck, excelente mineiro nacional: ‘Sou mineiro, mas n�o pratico’. A pr�tica seria a mineiridade? A ideia de mineiridade me faz procurar qualifica��es correspondentes em outras terras, outras gentes. Existe carioquidade, gauchidade, paulistidade, pernambucanidade, roraimidade? J� ouvi falar baianidade, mas a coisa para a�. � o mesmo caso da mineiridade. No fundo, no fundo, � achar que seus h�bitos e costumes s�o mais especiais do que os de outros estados, n�o � n�o? Acho o sufixo ‘ismo’ menos pretensioso, mineirismo, carioquismo, gauchismo. Quanto a BH, alguma coisa acontece no meu cora��o quando cruzo a avenida e chego ao Mercad�o. Tenho ido menos a Minas do que gostaria, mas cidade nenhuma supera em saudade e lembran�as a BH dos anos de 1950 e 60. L� se juntavam as buscas e os achados, o perigo de perder-se e a ternura das namoradas, as madrugadas sem riscos em papos infind�veis com os amigos da Complemento, o ir e vir a p� para entregar as mo�as em casa, os botecos e restaurantes que nos suportavam... A BH de hoje ficou mais igual �s outras metr�poles brasileiras, S�o Paulo dando o mau exemplo. Mesmo barulho, mesmo tr�nsito confuso, mesma inseguran�a nas ruas, mesma desigualdade, bairros espigados tomando conta das serras. N�o � saudosismo, � realismo. Em compensa��o, o Mercad�o melhorou muito.
Sua av� foi professora. Uma mulher trabalhando fora, como voc� disse certa vez em uma entrevista, era incomum no in�cio do s�culo passado. Quanto isso ajudou a formar a rela��o que voc� tem com as mulheres?
Meus av�s eram realmente um casal diferente. Uma mulher que o marido chamava de bugra, quando brigavam, e um homem branco e bronco que tinha herdado do antepassado Visconde do Rio das Velhas aquela arrog�ncia dos antigos propriet�rios. Talvez por n�o ter estudado n�o aprumou, tinha s� uma ch�cara em Venda Nova. Minha av� punha dinheiro em casa. Minha m�e nunca teve empregada, e criou oito filhos. Sempre, sempre, admirei as mulheres, a capacidade que elas t�m de ser muitas. Tr�s irm�s crescendo junto com cinco irm�os, m�e, av� que s� teve filhas e que s�o minhas quatro tias, minhas tr�s filhas, s� tive filhas, mulher, ex-mulher, ex-namoradas, amigas, colegas – tive e tenho um campo de afetos e de aprendizagem muito grande, prazeroso. Meninas jogavam futebol conosco na rua, n�s brinc�vamos de roda com elas, aprend�amos com as mesmas regras. Nos revez�vamos igualmente nas tarefas da casa de fam�lia sem empregados. Isso ajuda muito.
Que lembran�as tem da gera��o Complemento?
Nos primeiros tempos, a� pelo ano 1956, a gente come�ava a se reunir no fim da tarde na esquina da Livraria Rex, na Pra�a Sete. Era uma esquina quente aquela, naquele hor�rio, com v�rias turmas. Tinha grupinho de jornalistas, com o Mauro Santayana, o ruivo Charles Corfield e o Ti�o Nery; grupinho de l�deres estudantis, Z� Nilo Tavares e outros; grupinho de artistas pl�sticos, com gente que estudava com Guignard; grupinho de cinema, com algum pessoal do CEC etc.; e o grupinho da Complemento, com Heitor, Fl�vio, Theot�nio, Ezequiel, Ary, Frederico, Silviano e outros. Cada turminha no seu ponto. Tais ajuntamentos provocaram a curiosidade da Pol�cia Social, e botaram l� um cara para sapear as conversas dos grupos. Acho que foi o Mauro Santayana quem pegou um peda�o de giz branco, fez um c�rculo no ch�o e escreveu em letras grandes TIRA, marcando o lugar dele. O cara sumiu. Um pouquinho mais tarde, a nossa turma subia a Av. Amazonas, dava uma passada na Livraria Itatiaia, que era uma porta e uma vitrine no Edif�cio Dant�s, seguia e abancava-se na vizinha leiteria Tirolesa. A� pass�vamos horas tomando “mosca”, nome que o Carl�o, Carlos Kroeber, deu para uma mistura de conhaque Castelo com Coca-Cola e muito gelo. Quando eu cheguei, estava saindo o primeiro n�mero da revista Complemento. O grupo foi inchando, agregando mais poetas, pessoal de cinema, teatro, artes pl�sticas, bal� e dan�a moderna, m�sica, jornalistas, cr�ticos de arte, intelectuais variados, outros grupos da esquina da Rex. E quando saiu o quarto n�mero da revista, em 1958, o grupo em torno da Complemento j� n�o cabia num bar, deixou de ser uma gera��o liter�ria, virou atitude, comportamento. Falar de cada um separadamente seria longo e eu poderia ferir algu�m com um esquecimento. Todos ao seu modo se destacaram nas carreiras, nos feitos, no meu afeto.
Para terminar: qual o futuro do Brasil?.
Brasil, pa�s do passado. N�s, das gera��es mais velhas, temos pelo menos um passado para p�r no nosso futuro. Quero dizer um passado de civilidade, bons modos, compromissos sociais, inclus�o social, respeito ao meio ambiente, projetos de distribui��o de renda, apoio �s artes, toler�ncia com os diferentes, seguran�a nas ruas, invisibilidade das armas. Os racistas sempre resmungaram e cochicharam, mas agora gritam e s�o aclamados, negros s�o assassinados a pauladas na rua. Os pobres sempre foram marginalizados, mas n�o massacrados pela economia e pela pol�cia como agora. Nem mesmo no per�odo da ditadura militar os violentos agiam t�o abertamente. Onde os mais mo�os v�o buscar par�metros de civiliza��o se n�o tiveram outro padr�o? A tarefa dos brasileiros vai ser implantar outro marco civilizat�rio, derrotar a barb�rie atual, antes de conseguir �xitos na economia e na pol�tica. O problema � que civiliza��o s� se consegue pela pol�tica e pela redu��o dram�tica da desigualdade.
* Jo�o Pombo Barile � jornalista e redator do Suplemento Liter�rio de Minas Gerais
Trechos de livros
(Do conto “Lindo lindo”)
“Quando crian�a, Maur�cio K. colecionava figurinhas de futebol da Copa de 1958, fotos de artistas de cinema, boli- nhas de gude, cartelas de f�sforos, conchas, folhas que desidratava entre p�ginas de livros. Agora, colecionava pelos. Havia 20 anos que colecionava pelos pubianos femininos.
A cole��o tomava a melhor parte da trabalhosa vida de Maur�cio. Como todo colecionador, organizar era a segunda melhor parte daquela melhor parte de sua vida, s� perdendo mesmo para a verdadeiramente melhor parte, que era o delicado e excitante momento de obter um novo exemplar. Cada novo exemplar exigia �s vezes a reorganiza��o de toda a cole��o. No princ�pio n�o tinha ordem: jogava os envelopezinhos numa gaveta e olhava-os de vez em quando. Sentiu a necessidade de p�r alguma ordem na cole��o quando chegou a 40 exemplares. Arrumando-a, poderia apreciar melhor, pensou, lembrar melhor.
Come�ou a organizar os pelinhos pelo que mais o atra�a ent�o: a textura. Do mais encaracolado para o mais liso. A arruma��o trouxe algumas surpresas.”
(Do artigo “Aos p�s”)
“O que o pr�ncipe queria da Cinderela n�o era a m�o, eram os pezinhos. Procurou-os, s�frego, de posse de um dos seus sapatinhos. Sem eles, caiu em depress�o. Queria o outro p� do sapatinho, queria aqueles pezinhos – oh, divinos pe- zinhos! Mandou vasculhar todo o reino at� encontrar a dona daquele sapatinho, cujo p� nenhum outro substituiria. Interpretado assim, este conto de fadas revela uma das mais antigas elabora��es simb�licas do desejo fetichista.
No s�culo 7 a.C., contava-se no Egito a hist�ria de uma cortes� de lindos p�s, chamada Rodopis. Um dia, quando tomava banho em uma fonte, uma �guia roubou sua sand�lia e levou-a para o fara�, que se apaixonou pelo seu perfume e pela delicadeza do p�. Mandou procur�-la por toda parte e se casou com ela. Foi a primeira Cinderela.”
(Do artigo “Amor a varejo”)
“Naqueles anos havia cabar�s, dancings, zona, hot�is de sobe e desce, rendez-vous, e havia mulheres, mo�as umas e nem tanto outras, que ficavam nas escadas, portas e janelas a encorajar com olhares, boquitas e beijinhos os necessitados hesitantes. Havia outras, j� senhoras, algumas idosas, brancas, de origem europeia, chamadas ‘polacas’, desdentadas, que das janelas mamavam o ar, sugerindo aos passantes sua especialidade. Por que estariam ali, naquela vida, na pequena Belo Horizonte, bem mais velhas do que a cidade? Que ca- minhos haviam percorrido? Ainda se podia ver, nos primeiros anos 50, o vaiv�m do amor a varejo. Muitas d�cadas mais tarde, aprendi, em S�o Paulo, que aquelas se- nhoras eram restos de um drama que se desenrolou paralelo � grande imigra��o para as Am�ricas e �s guerras na Europa.
O tr�fico de europeias para desfrute dos paulistanos, dos fluminenses, dos fazendeiros do interior de S�o Paulo e do Sul de Minas n�o � lenda. Em 1914, mais de 500 das 812 prostitutas registradas na pol�cia de S�o Paulo eram estrangeiras. Destas, 186 eram russas, 80 italianas, 52 alem�s, 50 francesas.”
“Sex shop”
.Ivan Angelo
.Faria e Silva Editora
.148 p�ginas
.R$ 59,90
No Caf� da Bienal
Ivan Angelo � um dos convidados da Bienal Mineira do Livro, que ser� realizada de hoje (13/5) a 22/5, no BH Shopping. Ele falar� no
domingo, no encerramento da Bienal, das 16h �s 18h, no Caf� Liter�rio. “Vamos falar muito de toda a sua trajet�ria, desde a estreia, dividindo volume de contos com Silviano, at� ‘Sex Shop’, seu �ltimo livro”, antecipa Rog�rio Faria Tavares, presidente da Academia Mineira de Letras, respons�vel pela curadoria da programa��o do Caf�.
Bibliografia
“Duas Faces” (Com Silviano Santiago, 1961)
“A Festa” (1975)
“A casa de vidro” (1979)
“A face horr�vel” (1986)
“O ladr�o de sonhos e outras hist�rias” (1995)
“Amor?” (1995)
“Pode me beijar se quiser” (1997)
“O vestido luminoso da princesa” (infantil, 1998)
“O comprador de aventuras e outras cr�nicas” (2000)
“Melhores cr�nicas” (2007)
“Certos homens” (cr�nicas, 2011)