
Mais da metade da hist�ria do Brasil � marcada pela escravid�o. Pouco tempo depois da chegada dos portugueses por aqui, em 1530, come�ou o sistema escravista que explorava a m�o de obra e desumanizava as pessoas negras. Foram tr�s s�culos e meio desse regime de horror, que matou e torturou milhares de africanos e seus descendentes, sendo oficialmente extinto apenas em 1888. Pela for�a do tema, muitos escreveram sobre essa p�gina de barb�rie da hist�ria brasileira. Os poetas foram agora reunidos na antologia “A escravid�o na poesia brasileira do s�culo XVII ao XXI” (Record), organizada pelo poeta e ensa�sta carioca Alexei Bueno.
“O Brasil foi criado sobre esta que � a pior das rela��es sociais, milenar e universal, mas que aqui sobreviveu al�m de qualquer outro pa�s do Ocidente. S� isso explica a fascinante continuidade do tema, por cerca de tr�s s�culos e meio e at� a atualidade, mais de 130 anos ap�s a sua desapari��o legal”, afirma Alexei, que j� organizou outras colet�neas, como a edi��o bil�ngue de “Cinco s�culos de poesia” (2013). “A escravid�o na poesia brasileira” re�ne preciosidades como “O navio negreiro”, de Castro Alves, “Hino � liberdade dos escravos”, de Maria Firmina dos Reis, e “Sabina” de Machado de Assis. A antologia traz poemas de Cruz e Sousa, Lu�s Gama, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade e Ariano Suassuna.
Ainda os necess�rios poemas de Carlos de Assump��o, que inspira gera��es de escritores negros e ativistas da luta antirracista: “Protesto” e “Meus av�s”. E ainda h� nomes de poetas em plena produ��o, como o premiado mineiro Edimilson de Almeida Pereira, com o poema “Cemit�rio marinho”.
O organizador faz quest�o de ressaltar na introdu��o que se trata de um livro de poesias, e n�o de hist�ria, publica��es que comumente abordam o tema escravid�o. Mas mesmo sem essa pretens�o, o volume apresenta uma bela cronologia da poesia brasileira que demonstra como o tema foi abordado ao longo dos s�culos.
A busca de Alexei come�ou na pr�pria biblioteca, que conta com 20 mil volumes, depois a imers�o seguiu na hemeroteca da Biblioteca Nacional, em que ele teve contato direto com os livros ou em publica��es da imprensa, nas quais foram publicadas uma infinidade de poemas nunca reunidos em livros.
Alexei re�ne, a partir dessa pesquisa, 80 poetas que tiveram algum aspecto da escravid�o retratado nos poemas, apresentados na ordem cronol�gica de nascimento. Como o livro re�ne poesia de cinco s�culos, de tr�s s�culos e meio do sistema escravagista e mais de um depois da aboli��o, h� uma varia��o da ortografia nos textos. Por�m, a escrita original foi mantida pelo organizador a n�o ser quando representava algum entrave no valor expressivo.
No ensaio introdut�rio, o organizador apresenta os poemas a partir de nove grupos sem�nticos: o ex�lio for�ado; a travessia atl�ntica; as sev�cias f�sicas; a profana��o da mulher; a separa��o das fam�lias; as revoltas e fugas; Palmares, Zumbi e outras figuras; rea��es �s leis e, por fim, o t�mulo do escravo.
Em “O ex�lio for�ado”, os poemas retratam a vinda dos africanos para c�. O organizador destaca o poema “A escrava”, de Gon�alves Dias, que traz refer�ncia ao Congo. Outro poeta a tratar desse tema � Lu�s Delfino no poema “A filha d’�frica”.
Na sequ�ncia vem a “A travessia atl�ntica”, tema esse que abarca o poema mais c�lebre de todos os poemas brasileiros sobre a escravid�o, “O navio negreiro”, de Castro Alves. Na tem�tica “As sev�cias f�sicas”, os poemas mostram o horror, medo, indigna��o, curiosidade em rela��o � tortura e maus-tratos. Os textos fazem men��es aos instrumentos de tortura, do tronco � gargalheira, da palmat�ria ao libambo, do vira-mundo ao azorrague, grilh�es e correntes.
Outro t�pico, “A profana��o da mulher”, mostra as atrocidades feitas pelos senhores �s mulheres negras. Os poetas ainda tratam da separa��o das fam�lias pela venda, no t�pico “A separa��o das fam�lias”. Ainda tratam da explora��o dos velhos. Um dos poemas mais fortemente ligados ao tema � “Verba testament�ria”, de Melo Morais Filho. Outra parte, “As revoltas e fugas”, abrange o poema “Fugindo ao cativeiro”, de Vicente de Carvalho.
Alexei tamb�m selecionou os poetas a partir de “Palmares, Zumbi e outras figuras m�ticas”. “Se a presen�a dos quilombos � relativamente limitada na poesia brasileira sobre a escravid�o negra, a presen�a mais importante �, evidentemente, a de Palmares, o quilombo por antonom�sia, n�o poucas vezes chamado de “rep�blica”, embora de um reino se tratasse, o que � um dos fatos sobejamente reconhecidos no pouco que realmente se sabe sobre o grande evento hist�rico.” Ainda h� poemas na tem�tica “Rea��es �s leis” e “O t�mulo do escravo”. Um exemplo � o poema de Gilberto Freyre, “Hist�ria social: Mercado de escravos”.
A seguir, confira a entrevista com o poeta e ensa�sta carioca Alexei Bueno.
A seguir, confira a entrevista com o poeta e ensa�sta carioca Alexei Bueno.
O que motivou a organiza��o da colet�nea?
De in�cio, um velho interesse meu pelo assunto, assim como a proximidade com alguns poetas bastante ligados ao tema, como Castro Alves e Cruz e Sousa. Entre outras coisas, fui o curador da exposi��o do sesquicenten�rio de Castro Alves, em 1997, que foi inaugurada em Salvador e depois percorreu outras seis capitais. Quanto a Cruz e Sousa, em 1995, fiz uma vasta atualiza��o da sua “Obra completa”, a partir da edi��o do centen�rio, organizada por Andrade Muricy, e fui curador, em 1998, da exposi��o do centen�rio da sua morte, na Biblioteca Nacional, bem como organizei a sua primeira edi��o em Portugal, lan�ada ano passado, no Porto: uma antologia longa, que me parece de grande import�ncia. Comecei a compilar os textos antes da pandemia, mas o tempo vago criado por ela foi fundamental para a sua realiza��o.
Ao longo dos s�culos, o tema “escravid�o” � abordado de formas diferentes pelos poetas?
Muito diferentes. Na col�nia, ela surge como uma realidade natural, um fato socialmente normal que � apenas descrito, caso de Greg�rio de Matos. J� em Alvarenga Peixoto, encontramos uma inesperada apologia dos cativos, da for�a do seu trabalho, comparando-os aos her�is da Antiguidade cl�ssica. Com Tom�s Ant�nio Gonzaga, em certos trechos das “Cartas chilenas”, se delineia pela primeira vez uma vis�o cr�tica. No per�odo do Romantismo abolicionista, que � de uma riqueza enorme, embora dure apenas cerca de quatro d�cadas, passamos a uma cr�tica militante, violenta. Com o modernismo h� um vasto retorno ao tema, em outro tom, e, a partir de meados do s�culo 20, surge uma forma diversa de vis�o cr�tica retroativa, que de certa maneira continua vigente.
Como a escravid�o � apresentada?
De todas as maneiras poss�veis e imagin�veis, desde a maior indigna��o at� o quadro de g�nero, �s vezes id�lico. Essa extrema variedade � um dos motivos de fasc�nio de uma reuni�o t�o vasta, cronologicamente e no n�mero de poetas, que, por isso mesmo, acompanha as mudan�as de vis�o no tempo, e as vis�es totalmente diversas entre exatos contempor�neos.
Podemos tra�ar o perfil dos poetas que entraram na colet�nea?
N�o posso dar aqui o perfil de cerca de 80 poetas espalhados por tr�s s�culos e meio, isso tomou mais de 130 p�ginas do livro. O importante � que cerca de metade dos maiores poetas brasileiros escreveram sobre o tema. Minas Gerais est� bem representada da col�nia at� a atualidade, pois nela est�o, entre outros, embora nem todos mineiros de nascen�a, desde os j� lembrados Alvarenga Peixoto e Tom�s Ant�nio Gonzaga, at� Edimilson de Almeida Pereira e Iacyr Anderson Freitas, passando por Bernardo Guimar�es, Alphonsus de Guimaraens, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, etc.
No s�culo 19, como Castro Alves estabelece di�logo com outros poetas e vice-versa?
� a figura central do livro, na quantidade de poemas e na grandeza �mpar deles. H� um di�logo tem�tico, e localizei, por exemplo, a influ�ncia muito direta de um verso de Bernardo Guimar�es sobre outro verso de “A cruz da estrada”, de Castro Alves, uma das obras-primas da poesia sobre a escravid�o e de toda a poesia de l�ngua portuguesa. Vale a pena, igualmente, fazer uma compara��o entre ele e o seu contempor�neo e amigo Fagundes Varela, autor de outra das obras-primas m�ximas sobre o mesma tem�tica, o poema “O escravo”, talvez �nico na descri��o do processo de destrui��o an�mica do cativo, para al�m dos sofrimentos f�sicos, sempre mais lembrados.

“A escravid�o na poesia brasileira do s�culo XVII ao XXI”
• Alexei Bueno (organiza��o)
• Editora Record
• 714 p�ginas
• R$ 78,90