
“O contraste mais impressionante � fornecido pela ostenta��o de luxo dos pal�cios modernos com as favelas. Nunca o luxo e a mis�ria me pareceram t�o insolentemente mesclados.” Essa foi uma das primeiras impress�es do escritor, jornalista e fil�sofo franco-argelino Albert Camus (1913-1960), Pr�mio Nobel de Literatura em 1957, ao chegar ao Brasil. Autor de obras liter�rias e filos�ficas essenciais – “O estrangeiro”, “A peste” e “O homem revoltado” –, Camus esteve duas vezes no continente americano no fim da d�cada de 1940, enviado pelo governo franc�s. Passou por EUA e Canad�, entre mar�o e junho de 1946, a convite do antrop�logo Claude L�vis-Strauss, � �poca conselheiro cultural do Minist�rio do Exterior franc�s em Nova York.
Em 1949, ele desceu para a Am�rica do Sul durante dois meses. Saiu de Marselha a bordo do navio Campana, em 30 de junho, chegou ao Rio de Janeiro em 15 de julho, esteve no Recife, Olinda, Salvador, S�o Paulo e Porto Alegre. Depois, ainda foi � Argentina, ao Chile e ao Uruguai, entre 10 e 21 de agosto, retornou ao Rio e, em 31 de julho, tomou avi�o de volta para Paris. As duas viagens de Camus pela Am�rica est�o relatadas em seus “Carnets”, di�rios sobre as impress�es que teve dos seis pa�ses e depois inclu�das no livro “Di�rio de viagem”, lan�ado na Fran�a em 1978, 18 anos ap�s a sua tr�gica morte, aos 46 anos, em acidente de carro perto de Paris.
Acaba de ser lan�ada a segunda edi��o do livro “Camus, o viajante – Antologia dos textos de Albert Camus no Brasil” (Editora Record), que comemora os 70 anos da passagem do escritor pelo pa�s, organizada pelo jornalista e cr�tico liter�rio Manuel da Costa Pinto. A obra re�ne “O mar muito perto – Di�rio de bordo” (do livro “O ver�o”), a se��o “Am�rica do Sul: Junho a agosto de 1949” (do “Di�rio de viagem) e o conto “A pedra que cresce” (do livro “O ex�lio e o reino”). E ainda a confer�ncia “O tempo dos assassinos”, que Camus proferiu nas cidades brasileiras onde esteve, em que faz contraponto entre o Brasil e a Europa daquela �poca, logo ap�s a Segunda Guerra.
A obra apresenta ainda 13 fotos – j� desgastadas pelo tempo, mas ainda not�veis –, da passagem de Camus por Iguape, cidade do litoral de S�o Paulo, acompanhado pelo poeta modernista Oswald de Andrade (1890-1954). Entre 5 e 7 de agosto de 1949, ele acompanhou a festa religiosa no Santu�rio do Senhor Bom Jesus de Iguape, padroeiro do munic�pio. Ficou hospedado num quarto do Hospital Feliz Lembran�a, asilo hoje em ru�nas, porque os hot�is estavam cheios. Dessa visita, Camus escreveu o conto “A pedra que cresce”. Fala da curiosa hist�ria de um engenheiro franc�s chamado D'Arrast, da imagem sacra e da pedra que a sustenta numa gruta. O conto � o �nico do escritor que se passa fora da Europa e da Arg�lia natal, no Norte da �frica.
Na introdu��o de “Camus, viajante”, Manuel da Costa Pinto lembra: “� primeira vista, a constata��o da import�ncia que o Brasil teve no imagin�rio camusiano contrasta com o tom sombrio de suas anota��es. Em meio a um decl�nio progressivo de sa�de (crises respirat�rias e uma febre renitente que anunciavam uma poss�vel reca�da da tuberculose que o acometeu na juventude), Camus vai mergulhando a cada dia, desde sua partida, num estado depressivo, ainda durante a travessia do Atl�ntico, a bordo do navio, pensa em suic�dio duas vezes, e, j� na parte final da estada sul-americana, confessa a si mesmo estar, “pela primeira vez na vida, (…) em pleno conflito psicol�gico”. De fato, doente, entediado e melanc�lico, Camus reclama do clima tropical e da agenda oficial como enviado do governo franc�s. Impressiona-se com a natureza selvagem do Brasil e com a civiliza��o ainda em crescimento, fala da miscigena��o com pouco conhecimento de causa e distanciamento. Diz preferir Salvador ao Rio, descreve o que viu em Olinda (PE) e Recife, chamada por ele de “Floren�a dos Tr�picos”. Costa Pinto ressalta tamb�m o di�rio de Camus com “p�ginas generosas” sobre os intelectuais e artistas brasileiros que conheceu. A lista inclui os poetas Manuel Bandeira e Murilo Mendes (“esp�rito fino e resistente”), o escritor mineiro An�bal Machado (“esp�cie de tabeli�o, magro, culto e espiritual”) e o cantor e compositor Dorival Caymmi (por quem ficou “totalmente seduzido”).
SEM CLICH�S
Na obra, Camus foge dos clich�s com os quais estrangeiros classificam o Brasil, como para�so tropical, fasc�nio da mistura �tnica e cultural, e exotismo idealizado. Costa Pinto avalia que o escritor e fil�sofo cria uma “percep��o mais aguda da tens�o entre natureza e hist�ria e aqui testemunhou com sarcasmo ag�nico” a “precariedade da civiliza��o em terras brasileiras”. Diz o escritor no “Di�rio de viagem”: “O Brasil, com sua fina armadura moderna colada sobre esse imenso continente fervilhante de for�as naturais e primitivas, faz pensar num edif�cio corro�do cada vez mais de baixo para cima por tra�as invis�veis. Um dia, o edif�cio desabar�, e todo um pequeno povo agitado, negro, vermelho e amarelo espalhar-se-� pela superf�cie do continente, mascarado e munido de lan�as, para a dan�a da vit�ria”. Em um trecho, a lembrar a desesperan�a na Europa do p�s-guerra, Camus destaca: “A �nica esperan�a � que nas�a uma nova cultura, e que a Am�rica do Sul ajude talvez a temperar a tolice mec�nica”.
Costa Pinto lembra que quando esteve no Brasil, Camus estava escrevendo “O homem revoltado”, em que faz “um salto da experi�ncia indidividual do absurdo”, tratado filosoficamente em “O mito de S�sifo”, “para a dimens�o hist�rica”. Nessa obra, ele ataca a viol�ncia do Estado como arma pol�tica contra advers�rios. Vale ressaltar que esse livro de Camus causou o seu banimento do meio intelectual franc�s alinhado � esquerda, inclusive pelo escritor e fil�sofo Jean-Paul Sartre (1905-1980). Ao denunciar as execu��es praticadas na URSS, por exemplo, em nome da revolu��o, Camus foi “excomungado” pela esquerda tolerante ao regime stalinista.
CONTO
Mas a grande novidade surgida da viagem de Camus ao Brasil � a experi�ncia em Iguape, no litoral de S�o Paulo. Desde o encontro, no s�culo 17, de uma imagem do Senhor Bom Jesus encontrada por dois �ndios na Praia da Una, cresceu a lenda sobre a pedra na gruta onde ela foi colocada. Sempre que um peregrino tirava uma lasca da pedra como lembran�a de f�, a parte afetada se regenerava. Oswald de Andrade quis que ele conhecesse o Brasil real, “sem m�scara”, e o levou a Iguape. Camus descreve a prociss�o em detalhes e se inspirou na festa religiosa para para escrever “A pedra que cresce”. O conto, de 1957, ano em que ele recebeu o Nobel de Literatura, fala da hist�ria do engenheiro franc�s D'Arrast, que viaja para Iguape como respons�vel pela constru��o de uma barragem. Conhece, ent�o, um cozinheiro negro que precisa pagar uma promessa por ter escapado de um naufr�gio. A promessa � carregar a pedra durante a prociss�o do Senhor Bom Jesus. Mas o cozinheiro se desvia do caminho da romaria, se embebeda num terreiro e � socorrido pelo engenheiro. A trama mostra acomunh�o do sincretismo.
TRECHO DE “AM�RICA DO SUL”
“A n�voa desaparece rapidamente. E vemos as luzes do Rio correndo ao longo da costa, o “P�o de A��car”, com quatro luzes no seu topo, e no mais alto cume das montanhas, que parecem esmagar a cidade, um imenso e lament�vel Cristo luminoso. (…) Os motoristas brasileiros ou s�o alegres loucos ou frios s�dicos. A confus�o e anarquia deste tr�nsito s� s�o compensadas por uma lei, custe o que custar. (…) O contraste mais impressionante � fornecido pela ostenta��o de luxo dos pal�cios modernos com as favelas, �s vezes a cem metros do luxo esp�cies de bidonvilles [favelas] agarrados aos flancos dos morros, sem �gua nem luz, onde vive uma popula��o miser�vel, negra e branca. As mulheres v�o buscar no sop� dos morros, onde fazem fila, e trazem de volta sua provis�o em latas de alum�nio, que carregam na cabe�a como as mulheres “kabyles”. Enquanto esperam, passam diante delas, numa fileira ininterrupta, os animais niquelados e silenciosos da ind�stria automobil�stica americana. Nunca o luxo e a mis�ria me pareceram t�o insolentemente mesclados. � bem verdade que, segundo um dos meus companheiros, 'pelo menos, eles se divertem'. Desgosto e cinismo – B., o �nico generoso. Vai levar-me �s favelas, que conhece bem: 'Fui rep�rter policial e comunista', diz. 'Duas boas condi��es para conhecer os bairros da mis�ria'''.
TRECHO DE “A PEDRA QUE CRESCE”
“– Est� vendo! Um dia, a boa est�tua de Jesus, ela chegou do mar, subindo o rio. Os pescadores encontraram. Que linda! Que linda! Ent�o, eles lavavam aqui na gruta. E agora cresceu uma pedra na gruta. Todo ano tem festa. Com o martelo voc� quebra, vai quebrando peda�os para a felicidade aben�oada. E depois disso ela continua a crescer, e voc� continua a quebrar. � o milagre. Tinha chegado � gruta, cuja entrada baixa distinguia por cima dos homens que esperavam. No interior, na escurid�o manchada pelas chamas tr�mulas das velas, uma forma acocorada batia nesse momento com um martelo. O homem, um ga�cho magro, de bigodes compridos, levantou-se e saiu, segurando na palma da m�o � vista de todos um pequeno peda�o de xisto �mido em torno do qual, alguns segundos depois, voltou a fechar a m�o com cuidado, antes de afastar-se. Ent�o, abaixando-se, um outro homem entrou na gruta.”

CAMUS, O VIAJANTE
Antologia dos textos de Albert Camus sobre o Brasil
Manuel da Costa Pinto (organiza��o)
Tradu��o de Cl�vis Marques, S�rgio Milliet e Valerie Rumjanek
Editora Record
R$ 64,90 (impresso)
R$ 44,90 (digital)