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Estado de Minas PENSAR

Romances de Yukio Mishima provam a for�a da prosa do escritor japon�s

Ambientados no p�s-guerra, 'Confiss�es de uma m�scara' e 'Mar incerto' voltam �s livrarias e mostram autor que estabeleceu jornada de extremos


27/05/2022 04:00 - atualizado 26/05/2022 21:55

o escritor japonês Yukio Mishima
O escritor japon�s Yukio Mishima (1925-1970) (foto: reprodu��o)

“Quero transformar minha vida em poesia.” O autor da frase, Limitake Hiraoka, de 45 anos, ap�s a vergonha de uma tentativa frustrada de golpe de Estado em T�quio, junto � sua mil�cia, Tatenokai (Sociedade do Escudo), se dirige � sala onde o capit�o das For�as Armadas se encontra atado, e com o aux�lio de seu assistente, Masakatsu Morita, abre o pr�prio ventre com um punhal. Em seguida, tem sua cabe�a degolada por um sabre. Morita o auxilia a concretizar o ritual do seppuku, dando fim � obra que ensaiou e gestou durante toda sua vida.

Autor de uma vasta obra reconhecida em todo o mundo, Kimitake, falecido em 1970, ap�s o ritual descrito anteriormente, � conhecido pelo nome de Yukio Mishima, autor de romances centrais da literatura moderna. Foi um prol�fico autor do p�s-guerra japon�s, junto a outros nomes como o Nobel de Literatura Yasunari Kawabata e Junichiro Tanizaki. Ainda que tenha produzido uma obra extensa, s�o alguns de seus romances que ganham notoriedade como pontos-chave de uma prosa �nica, que chama a aten��o pela intr�nseca rela��o com a sua vida. Como se ambos, vida e obra, constitu�ssem-se de um impulso retroalimentador profundamente sombrio e lim�trofe, onde sobram fixa��es com a morte e o morrer. Em seu contexto pol�tico-cultural e vida pessoal, a decad�ncia assume papel central, e a morte � uma certeza irrevog�vel, experienciada atrav�s da paix�o do autor por s�mbolos tr�gicos que consolidam o seu tra�o marcante. Tais s�mbolos nos aparecem como uma tentativa desesperada, e ao mesmo tempo irreverente, de transformar a trag�dia num exerc�cio po�tico em que o que est� em jogo � a experi�ncia humana.

Em seu romance de estreia, “Confiss�es de uma m�scara”, publicado em 1949, o autor revisita a sua trajet�ria da inf�ncia � juventude por meio de um relato de extrema intimidade, e confessa a n�s, leitores, o seu fasc�nio sexual pela morbidez ao longo de uma inf�ncia cercada pelo desespero, cujas primeiras lembran�as o conectam � sua av� decr�pita e deprimida, e a uma solid�o que nos assusta pela apatia. Passaria desconhecido aos leitores de agora, caso n�o fosse a atual reimpress�o de suas obras pela Companhia das Letras, ap�s anos esgotadas no mercado editorial. A editora acaba de reimprimir “Confiss�es de uma m�scara” e “Mar inquieto”, al�m dos romances “Pavilh�o dourado” e “Cores proibidas”.

� em “Confiss�es” que vemos Mishima acometido pelo senso acachapante de trag�dia e n�o pertencimento. H� em sua percep��o de mundo um gosto espec�fico de quem encontra na desgra�a o gozo desesperado.  Seu ato m�rbido � uma c�pula com a trag�dia, em que a sexualidade n�o encontra possibilidade plena de ser vivenciada de forma alguma que n�o atrav�s de v�nculos patol�gicos. Somos apresentados, desde a sua primeira ere��o ao ver a imagem de S�o Sebasti�o, a descri��es minuciosas de cenas de guerra e corpos masculinos feridos e desonrados. Trata-se de um romance sobre a descoberta dos desejos homossexuais e descoberta de si pr�prio, em que a reden��o, vista sob uma �tica de indiferen�a e fasc�nio tr�gico, � a busca insistente, ainda que como um sonho natimorto, abortado antes de nascer, em meio aos destro�os da Segunda Guerra Mundial, de viver um amor com uma mulher.

A tormenta adoecida integra a veia central de Mishima, mas � em outra obra, o seu romance “Mar inquieto”, publicado alguns anos depois, em 1954, que descobrimos um outro lugar. Nele o autor japon�s demarca um ponto fora da curva tortuosa de seu tra�o prosaico. 

Ditado atrav�s do movimento das mar�s que determinam os h�bitos da vida na pequena ilha de pescadores de Utajima, “Mar inquieto” � um romance de amor, e permite uma trajet�ria de sonhar nas prova��es do enamoramento entre Shinji e Hatsue. Nele, o mar exerce sua simbologia de fertilidade potente e desafiadora, e se apresenta como a pr�pria din�mica da vida. A �gua, um estado transit�rio e incerto, conduz o macrocosmo da trama como um baile com o desconhecido. O mesmo desconhecido em que o jovem pescador Shinji se v� �s voltas por se tratar tamb�m de seu estado de paix�o. Na obra, os personagens se encontram diante de uma for�a maior, e n�o concebem op��o que n�o mergulhar e atravessar o rito de renascimento. Encontra-se em “Mar inquieto” uma teia rec�proca e perfeita entre o microcosmo e macrocosmo, onde as for�as da natureza, caras � mitologia japonesa, se unem em perfeita harmonia ao destino do casal e da comunidade. Porque ainda que encontrem prova��es na jornada do amor, os elementos externos nos remetem a vicissitudes internas do estado de enamoramento: tudo confabula a favor da hist�ria da paix�o do casal.

“Mar inquieto”, ent�o, surge como o irm�o luminoso e poss�vel de “Confiss�es de uma m�scara”, demarcado pela impossibilidade e trag�dia de um amor doentio. As duas narrativas, situadas no p�s-guerra japon�s, s�o influenciadas pelo estado de incerteza e apagamento cultural atrav�s de uma ocidentaliza��o for�ada j� em curso d�cadas antes. De suas refer�ncias a signos crist�os e da literatura ocidental, ao citar Oscar Wilde e se masturbar na inf�ncia com a imagem de S�o Sebasti�o, o Ocidente se faz presente a todo tempo. Mas tais incertezas conduzem a destinos opostos nas duas obras em quest�o: uma conduz � descoberta do amor e da vida, e a outra � apatia e ao absurdo de uma vida cujo sentido � seu pr�prio fim. 

Assimila��o do amor 

Mishima, um escritor de aten��o voltada aos signos da natureza e seus movimentos na vida �ntima, n�o deixa de acolher os acontecimentos em curso no contexto hist�rico. Analista das rela��es sens�veis, o romancista transita pela mesma tem�tica nas “Confiss�es de uma m�scara” e “Mar inquieto”. O amor, presente nas duas obras, � assimilado de formas opostas.  No amor doentio de “Confiss�es”, irm�o sombrio de “Mar”, ele desenha uma no��o amargurada e ferida, e acima de tudo imposs�vel, em que a rota �nica de estabelecimento de um la�o � a morbidez e a c�pula com o signo maior de Th�natos em seu estado mais visceral. O personagem se esfor�a por fugir de seus desejos homossexuais e afirma – mesmo que o pre�o seja a sua infelicidade e a da mulher que o ama –, querer apagar o seus desejos “invertidos”. � como se toda essa chaga surgisse transfigurada em “Mar inquieto”, num amor vivido ao �ltimo limite, como um ato belo, heroico e, portanto, um rito de transforma��o e cria��o. Vemos no trecho em que o protagonista encontra � beira da praia uma pequena concha rosa, e de s�bito guarda-a no bolso, para entregar, mais tarde, a Hatsuo, sua amada. Aqui, a natureza, o macrocosmo, conspira novamente a favor de seu destino de enamorado. A concha carrega no imagin�rio a forte representa��o da libido, remetendo � imagem da vagina. Esses signos s�o tratados em seu irm�o sombrio como uma condena��o, n�o sem abrir m�o de uma latente misoginia, que � expressa atrav�s dos dilemas pessoais do personagem, que narra o livro em primeira pessoa. Outros signos comuns surgem ao longo dos textos, feito o pr�prio oceano, que em “Mar inquieto” remete � possibilidade do desconhecido, presente n�o somente no universo pessoal do jovem casal, mas em todas as rela��es desenhadas pelo autor na pequena ilha de pescadores Utajima. Nas sombrias “Confiss�es”, o oceano � figura aterradora e macabra ligada � trag�dia e � sexualidade malfadada de sua primeira paix�o homossexual por um garoto de nome Omi, resultando, portanto, em uma rela��o em que h� apenas a via da profunda agonia.

Ainda que o amor constru�do nas obras seja oposto � primeira vista, chama a aten��o que os recursos narrativos usados para abarcar tais experi�ncias evoquem uma raiz comum: a transforma��o absoluta. Em “Mar inquieto”, Shinji sente febre quando percebe em si os sentimentos estrangeiros que lhe acometem o peito. E � em uma manh�, n�o sendo reconhecido pela m�e, que o autor nos coloca diante da irrevog�vel condi��o de transforma��o que o personagem se encontra. O estado febril de Shinji se confunde aos diversos estados adoecidos do personagem de “Confiss�es de uma m�scara”. Ambos s�o impelidos ao desconhecido, que – parte inexplorada de si pr�prios –, os convoca a um estado em que n�o h� retorno. Nas duas obras, o obscuro se irrompe, e � atrav�s das tramas que, ainda que aparentemente opostas, criam por fim personagens absolutamente diferentes do que eram desde a primeira p�gina. Estamos diante de obras cuja t�nica s�o as travessias: a morte em vida como um rito de passagem de Shinji, e a condu��o da vida rumo � morte pela trag�dia do narrador das “Confiss�es”. Em vida e obra trata-se de uma jornada de extremos, mesmo que, para a produ��o de uma vida que coincidisse com a poesia, Mishima tenha recorrido a um ato tr�gico e marcante que p�s fim � sua vida.

*Bernardo Serino � estudante de psicologia na PUC-MG e livreiro
**Jo�o Moraleida � ge�grafo pela UFMG e livreiro

%u201CConfissões de uma máscara%u201D

“Confiss�es de uma m�scara”
.Yukio Mishima
.Tradu��o de Jaqueline Nabeta
.Companhia das Letras
.199 p�ginas
.R$ 64,90

%u201CMar inquieto%u201D

“Mar inquieto” 
.Yukio Mishima
.Tradu��o de Leiko Gotoda
.Companhia das Letras
.164 p�ginas
.R$ 59,90



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