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Estado de Minas PENSAR

Escritora mineira Cidinha da Silva transcende r�tulos

Com mais de 200 mil exemplares vendidos de 19 obras de diversos g�neros, autora apresenta situa��es do cotidiano atravessadas por perspectiva afrocentrada


19/08/2022 04:00 - atualizado 18/08/2022 21:04

Cidinha da Silva
Cidinha da Silva tem cr�ticas �s colegas escritoras "que se tornam eternas (re)educadoras da branquitude, que costuma exotizar a produ��o liter�ria negra ou trat�-la como mera ferramenta educativa" (foto: Dayse Serena/Divulgacao)

A escritora belo-horizontina Cidinha da Silva construiu uma trajet�ria na literatura focada nas tradi��es, conhecimentos e saberes de matriz africana. Com obras adaptadas para o teatro, refer�ncia para os poetas em saraus e slams, com pr�mios de express�o no campo da literatura, ela conquistou um lugar na literatura brasileira, sobretudo pelo estilo que vem construindo. Cidinha foi uma das palestrantes do Congresso Internacional de Leitura da 26ª Bienal do Livro de S�o Paulo, realizada em junho �ltimo, na capital paulista.

Os n�meros dimensionam a amplitude de sua obra: as tiragens dos 19 livros publicados perfazem 227,2 mil c�pias em circula��o. “Tenho, tamb�m, me empenhado em construir uma hist�ria editorial da escritora negra que sou, ou seja, me interessa documentar todos os meus passos, processos, aprendizados, conquistas e estrat�gias para existir de maneira vitoriosa no mercado”, afirma, em entrevista ao Pensar.

A escritora, nascida em 1967 e graduada em hist�ria pela UFMG, passeia por diferentes g�neros liter�rios em prosa e verso. Na prosa, o g�nero preferido � a cr�nica, mas tamb�m experimentou a escrita de contos e de um romance infantojuvenil. O livro de contos “Um Exu em Nova York” (Pallas, 2018) conquistou o segundo lugar na categoria contos do Pr�mio Biblioteca Nacional, em 2019.  Nos contos e cr�nicas, Cidinha apresenta situa��es do cotidiano atravessadas por quest�es que lhe s�o caras, como os saberes e uma maneira de olhar para o mundo numa perspectiva afrocentrada. 

Um dos contos de “Um Exu em Nova York”, “I have shoes for you”, narra o encontro de duas mulheres no bairro negro do Harlem, nos Estados Unidos. Uma delas, moradora de rua, oferece inesperadamente � outra um par de sa- patos. A personagem-narradora busca os sentidos daquele gesto, que tem como pano de fundo Exu, o orix� senhor dos caminhos. 

A escritora coloca personagens na di�spora africana, e podemos encontr�-los em Belo Horizonte, S�o Paulo ou Nova York. Esse deslocamento espacial e temporal (a rela��o com tempo � recorrente em seus textos) permite abordar uma mir�ade de temas comuns de que vive nas metr�poles. No entanto, essa vida urbana � confrontada pelas refle- x�es da autora, que n�o se prende a alguns marcadores, mulher negra, segui- dora de religi�es de matriz africana e LGBTQIA. Na escrita, ela transcende as caixinhas preestabelecidas.

Em “Sobre-viventes!” (Pallas), as cr�nicas v�o desde o protesto de duas atrizes na entrega do Pr�mio da Associa��o dos Produtores de Teatro do Rio (APTR), em 2013, o beijo na boca de Fernanda Montenegro e Camilla Amado (1938-2021); uma conversa com um taxista no Rio de Janeiro no pr�-carnaval; ou refer�ncia � escritora estadunidense Alice Walker para tratar do racismo cotidiano.  

O mais recente livro de Cidinha da Silva � “O mar de Manu” (yellowfante), no qual ela conta a hist�ria de um menino africano que vivia em um pa�s sem mar, entre tr�s pa�ses da �frica Ocidental (Mali, Burkina-Faso e N�ger), mas que inventou um jeito de pescar estrelas. 

Cidinha dialoga com a forma de contar dos griots africanos, mas tamb�m deixa transparecer a influ�ncia da mineirice nesse sonho.  “Uma das coisas que esses pa�ses t�m em comum � que n�o s�o banhados pelo mar. E quem n�o tem o mar no seu lugar de nascimento, como Manu e eu, costuma fazer proje��es no c�u inventando o mar at� chegar o dia de encontr�-lo.” A seguir, a entrevista de Cidinha da Silva ao Pensar do Estado de Minas. 


Nos �ltimos anos, escritoras negras t�m conquistado visibilidade na cena liter�ria. Como voc� avalia esse espa�o conquistado? � representativo? � equivalente � produ��o?
Penso que ainda � um espa�o gen�rico para um bloco monol�tico batizado como “mulher negra”. No curso de debates sobre a produ��o liter�ria, � comum dirigirem perguntas a autoras negras que as forcem a falar sobre o que  escreveram, e n�o como escreveram. Uma imposi��o de decodifica��o feita desde dentro do fazer art�stico, como a dizer-nos: “A arte de voc�s tem fun��es de ensino-aprendizagem e milit�ncia pol�tica, mais do que art�sticas”. Por outro lado, muitas colegas tomam para si esse lugar e se tornam eternas (re)educadoras da branquitude, que costuma exotizar a produ��o liter�ria negra ou trat�-la como mera ferramenta educativa. O grande desafio ainda �, a meu ver, a conquista do direito � frui��o e come�armos a falar sobre as gera��es editoriais de mulheres negras, alocando-as por g�neros liter�rios, romance, cr�nica, conto, ensaio, poesia, dramaturgia, etc.

Em qual medida, voc� considera ser importante ser vista como uma “escritora negra”? Esse marcador pode limitar ou expandir sua literatura?
Eu sou uma mulher negra, isso � definidor na minha vida, principalmente em um pa�s racista como o Brasil. O fato de ser negra e de ter que sobreviver ao racismo diminui minha expectativa de vida em rela��o �s mulheres e homens brancos, como faz com todas as demais pessoas negras em rela��o �s brancas. Ser negra � uma condi��o da minha exist�ncia, n�o � um adjetivo, n�o � uma circunst�ncia. O adjetivo, muitas vezes, quer definir o qu�, quando e como podemos e devemos escrever. Contra isso, me insurjo.

Voc� procura criar uma literatura com marcadores de quest�es importantes relacionados ao pertencimento � cultura de matriz africana, invocando os sabores de ax�, por exemplo. Sua obra tamb�m � marcada pela quest�o do feminismo negro e das quest�es LGBTQIA. Como � fazer fic��o partindo desses lugares?
N�o sei se “parto desses lugares” como pontos definidores da minha escrita. Meu ponto de partida � minha determina��o de ser escritora profissional e de efetivar meu projeto liter�rio, de fazer arte. Em minha caixa de ferramentas carrego os princ�pios �ticos que me orientam na vida, as t�cnicas de escrita que venho apurando e que s�o meu sustent�culo. S� ent�o abordo os temas que me interessam, e que podem ser infinitos; entre eles, est�o os que voc� mencionou.

Os seus livros chegam muito aos jovens…
Meus 230 mil exemplares s�o, em larga medida, resultado de aquisi��es em pol�ticas p�blicas de forma��o de acervo em escolas p�blicas brasileiras. “Os nove pentes d’�frica” (PNLD Liter�rio 2020), “Um exu em Nova York” e “Oh, margem! Reinventa os rios!”, ambos no PNLD Liter�rio 2021. Agora, come�o a vender tamb�m em livrarias, principalmente depois de ganhar dois pr�mios importantes, o Biblioteca Nacional (2019) e o APCA – Associa��o Paulista de Cr�ticos de Artes (2021).


Voc� alcan�ou cerca de 230 mil c�pias dos seus 19 livros publicados. O que isso representa em termos de recep��o da cr�tica? E como esse retorno vem do p�blico?
A cr�tica que se faz na imprensa liter�ria n�o costuma olhar muito para o traba- lho de escritoras e escritores negros, a n�o ser que estejam em evid�ncia, que ocupem um lugar de destaque majoritariamente constru�do pelas editoras.  A cr�tica acad�mica costuma nos enclau- surar em caixinhas que facilitem a an�lise – se voc� fizer um daqueles ma- pas de palavras pr�prios dos sistemas complexos, ver� a frequ�ncia de termos usados para nos enquadrar, tais como “den�ncia”, “guerreira”, “apagamento”, “invisibilidade”, “luta”, “milit�ncia”, “enfrentamento”, “mulher negra”, entre outros. A recep��o, por sua vez, � muito movida pelos ventos editoriais capazes de promover a propaganda massiva e intermitente sobre determinados livros, autoras e autores. Cito, como exemplos, o boom de Geovani Martins em 2018 (“O sol na cabe�a”); ou a divulga��o das obras vitoriosas dos queridos amigos Itamar Vieira J�nior e Jeferson Ten�rio, algo t�o avassalador que n�o cai bem para algu�m n�o conhecer esses autores, ou n�o mencionar “Torto arado” e “O avesso da pele” numa rodinha de conversa sobre livros e autores contempor�neos. Se voc� � uma mulher negra, precisa citar a obra de Concei��o Evaristo; isso inclui tamb�m comprar livros dela (mesmo que n�o a tenha lido) para presentear mulheres negras de dife- rentes idades (� certeza de que voc� acertar� o presente). Eu ainda estou bem longe disso, mas s�o lugares aos quais aspiro e trabalho para alcan�ar.



Depoimento

“� arte, n�o ideologia”


Eduardo Oliveira

“Cidinha da Silva materializa uma coisa banto de viver no mundo a partir da pele, e n�o escapulir para a escatologia. Viver tudo o que � natural! Viver mais que sobreviver. Antecipar no acontecimento o sentido que lhe � inerente sem escapismo para outro mundo. N�o existe outro mundo. As coisas se d�o e se resolvem aqui. Materializam-se em acontecimentos, fatos e pessoas. Ali�s, um livro de cr�nicas se notabiliza tamb�m pelas personagens que cria ou menciona. E pelas paisagens que recria. Neste, os homens francamente v�o mal, mas v�o mal demais! Tem exce��es, visto que esse � um livro de literatura banta, que vive da complexidade e n�o to- lera simplismo. As mulheres, ah as mulheres!, infinitamente mais pl�sticas, mais v�rias, mais humanas, mais coloridas, mais protagonistas, mais felinas, mais cotidianas, menos retas, mais curvas, mais viventes, mais humanas. Quanto ao mundo heteronormativo, s� posso dizer que com as cr�nicas de Cidinha ele “pira”! N�o me impressiona que ela corra o risco do texto caricato e, em nenhum caso, caia na armadilha. A autora escapa, de longe, da literatura cifrada e ideologicamente identificada. � arte, n�o ideologia! Ela fala como mulher, negra, l�sbica – seu modo de habitar a vida. � seu ponto de partida, e n�o de chegada. Faz literatura banta, universaliz�vel desde seu lugar de pertencimento. Cria seu pr�prio modo de express�o. Constitui seu universo. Escolhe suas refer�ncias. Diz com o estilo o que n�o se pode dizer com a frase. Ultrapassa o dito com o Dizer. Para mim, isso � literatura. Dizer para al�m do dito. Intencionalmente, ocultar para revelar. Revelar ocultando. Nesse jogo, deslinda-se o humano.”


(Texto do fil�sofo e educador Eduardo Oliveira, da Universidade Federal da Bahia, para o pref�cio da segunda edi��o de “Sobre-viventes!”, e publicado no Literafro, portal da Literatura Afro-brasileira)  


ESTANTE
Livros de Cidinha da Silva

•  “Sobre-viventes!” (cr�nicas. Pallas, 2016. Esgotado)

•  “Can��es de amor e dengo” (poemas. Me Pari� Revolu��o, 2016. Esgotado)

•  “O mar de Manu” (Infantojuvenil. Yellowfante, 2021)

•  “Parem de nos matar!”  (Cr�nicas. Janda�ra; Kuanza Produ��es, 2ª edi��o, 2019).

•  “O homem azul do deserto” (Cr�nicas.  Mal�, 2018)

•  “Um Exu em Nova York” (Contos. Pallas, 2018)

•  “Exuzilhar: melhores cr�nicas de Cidinha da Silva” (Cr�nicas. Kuanza Produ��es, 2019)

•  “Pra come�ar: melhores cr�nicas de Cidinha da Silva, vol. 2” (Cr�nicas. Kuanza Produ��es, 2019)

•  “Kuami” (romance infantil. Janda�ra, 2ª edi��o, 2019)

•  “Oh, margem! Reinventa os rios!” (Cr�nicas. Oficina Raquel, 2ª edi��o, 2020)

•  “Movimento de mulheres negras e feminismo negro no Brasil: uma mem�ria” (Ensaio. N-1, 2020)


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