
Entretanto, os trabalhos que se prop�em a realizar, hoje, mais uma volta em torno do si, parecem nos acenar de um lugar que n�o repete aquele entrevisto em outros momentos da arte brasileira, como nas d�cadas posteriores � ditadura, em que o uso da primeira pessoa reivindicava tanto um devir-corpo da palavra quanto um devir-texto do corpo em libera��o. N�o se trata do mesmo tempo, mesmo que ainda n�o possamos assegurar uma experi�ncia interior – o que ser�, portanto, que se est� a dizer quando se diz eu?.
Obras como a da pesquisadora Marina Baltazar, que acaba de lan�ar “Escrever Leonilson: Expans�o da poesia”, publicada pela t�o cuidadosa editora mineira Relic�rio, nos levantam quest�es como essas. O livro � o eco e a dobra (j� que gerou n�o s� uma, como duas encaderna��es) do mestrado realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Minas Gerais, e se prop�e a pensar, no entrela�amento entre arte e vida, o sentido de expans�o na obra do artista cearense Leonilson.
Por “expans�o” l�-se tanto das linguagens – pl�sticas, sonoras, jornal�sticas, po�ticas – caracter�stica do experimentalismo do artista, quanto no sentido de uma pr�tica do inespec�fico, express�o cunhada pela pesquisadora e tradutora argentina Florencia Garramu�o, para receber esses corpos em obra ou esses frutos estranhos que fazem coisas com palavras quando pintam, costuram, bordam, recortam e colam, gravam-se a si mesmos, escrevem-se em di�rios.
Por “expans�o” l�-se tanto das linguagens – pl�sticas, sonoras, jornal�sticas, po�ticas – caracter�stica do experimentalismo do artista, quanto no sentido de uma pr�tica do inespec�fico, express�o cunhada pela pesquisadora e tradutora argentina Florencia Garramu�o, para receber esses corpos em obra ou esses frutos estranhos que fazem coisas com palavras quando pintam, costuram, bordam, recortam e colam, gravam-se a si mesmos, escrevem-se em di�rios.
O resultado da pesquisa, que agora chega ao amplo p�blico, com o m�rito de apresentar, tecida pela mais fina cr�tica, um poetartista de tal relev�ncia como Leonilson, parece se construir sobre estes dois eixos, inespecificidade e expans�o, amparada por um repert�rio que passa pela “literatura fora de si” (Florencia Garramu�o), pela “literatura p�s-aut�noma” (Josefina Ludmer) e pela “literatura em campo expandido” (Marjorie Perloff), para poder dizer com propriedade: “O transbordamento — ou expans�o — de limites vai al�m dos suportes e g�neros tradicionais destinados � palavra, transbordando tamb�m em conceitos como a impropriedade — �quilo que � comum — e a autoria” (p. 39).
O subt�tulo do livro gravita, portanto, como um centro paradoxal da investiga��o; afinal, seria o inespec�fico dos variados g�neros e suportes utilizados, dos tecidos, telas, linhas, agulhas, l�pis e bot�es, o que, com efeito, garante a expans�o da poesia, obrigando-a a sair de si para se instalar em outras l�nguas e campos, outros pronomes que n�o a primeira pessoa, outras imagens que n�o a do espelho? Ou ter� a poesia esse dom de acessar algo que n�o � pr�prio, acessar o pr�prio acesso, por isso o t�o radical efeito po�tico, trabalhando em mi�do e ao avesso, nas linguagens que interessavam ao artista?
O subt�tulo do livro gravita, portanto, como um centro paradoxal da investiga��o; afinal, seria o inespec�fico dos variados g�neros e suportes utilizados, dos tecidos, telas, linhas, agulhas, l�pis e bot�es, o que, com efeito, garante a expans�o da poesia, obrigando-a a sair de si para se instalar em outras l�nguas e campos, outros pronomes que n�o a primeira pessoa, outras imagens que n�o a do espelho? Ou ter� a poesia esse dom de acessar algo que n�o � pr�prio, acessar o pr�prio acesso, por isso o t�o radical efeito po�tico, trabalhando em mi�do e ao avesso, nas linguagens que interessavam ao artista?
Leonilson, nascido em Fortaleza, criado em S�o Paulo e passageiro na Europa, rapidamente vivenciou o sentido que tem para o eu ser levado a conhecer o mundo por meio do outro. Pelas bordas e margens, o intimismo, o tema do abandono, o vocabul�rio bastante prosaico e aquele romantismo das sedas, foi se deslocando em dire��o ao lugar de destaque que hoje ocupa. Foi tamb�m por meio das fitas gravadas, principalmente depois que fora diagnosticado como portador do v�rus HIV e dos di�rios e cadernos de viagens, que Leonilson passa a ser reconhecido como um importante nome da arte brasileira das �ltimas d�cadas do s�culo 20, muitas vezes associado a Artur Bispo do Ros�rio pelo duplo trabalho de dar-se ao mesmo tempo a ver e a ler.
No caso espec�fico do poeta cearense, o vis�vel e o leg�vel parecem estar mais pr�ximos de um certo grau zero, no sentido que Roland Barthes deu � escrita indicativa, aqu�m ou al�m das institui��es, e que � fruto de um entregar-se a uma esp�cie de l�ngua b�sica, letra-ainda-desenho, forma-puro-gesto. Nesse ponto se encontra um dos tantos paradoxos da obra de Leonilson: � medida que a pr�tica po�tica se expande, desloca-se, tornando-se reconhecida em outros meios, ela retorna a um momento em que a letra ainda � gesto, dan�a, impessoalidade.
No caso espec�fico do poeta cearense, o vis�vel e o leg�vel parecem estar mais pr�ximos de um certo grau zero, no sentido que Roland Barthes deu � escrita indicativa, aqu�m ou al�m das institui��es, e que � fruto de um entregar-se a uma esp�cie de l�ngua b�sica, letra-ainda-desenho, forma-puro-gesto. Nesse ponto se encontra um dos tantos paradoxos da obra de Leonilson: � medida que a pr�tica po�tica se expande, desloca-se, tornando-se reconhecida em outros meios, ela retorna a um momento em que a letra ainda � gesto, dan�a, impessoalidade.
Ent�o, onde ainda sobrevive a dimens�o do menor, do discreto, do sonho e do impercept�vel, na obra desse artista que apostou na exposi��o de certa vulnerabilidade, compondo desenhos t�o pequenos que exigem um aproximar-se perigoso e vertiginoso do quadro (contr�rio aos avisos de n�o tocar a obra), em uma din�mica de autonega��o do objeto? Ou mesmo, o que ter� sido feito de toda a devo��o de Leonilson diante do que n�o � pensado para durar, do perec�vel e do moment�neo, como os desenhos enviados semanalmente para a coluna Talk of the town, de B�rbara Gancia, na Folha de S.Paulo?
Sens�vel � dimens�o do corpo impermanente, a pesquisa de Marina toma como campo de observa��o os “registros que partem de um eu mas que n�o se findam nele, construindo uma rela��o subjetiva permeada de lirismo entre o interior e o exterior do sujeito” (p. 60). O comum a todos os n�s �, de fato, a permeabilidade ao pol�tico; por essa raz�o, o corpo n�o s� � constru�do como tamb�m pode ser por ele destru�do, o que t�o tragicamente sabemos em um pa�s como o Brasil.
Sens�vel � dimens�o do corpo impermanente, a pesquisa de Marina toma como campo de observa��o os “registros que partem de um eu mas que n�o se findam nele, construindo uma rela��o subjetiva permeada de lirismo entre o interior e o exterior do sujeito” (p. 60). O comum a todos os n�s �, de fato, a permeabilidade ao pol�tico; por essa raz�o, o corpo n�o s� � constru�do como tamb�m pode ser por ele destru�do, o que t�o tragicamente sabemos em um pa�s como o Brasil.
Pr�ximo do impr�prio
E isso o pr�prio Leonilson pode experienciar e, imediatamente, simbolizar, em obras que pareciam sonhar com as formas vazias diante das insistentes l�nguas normatizadoras e prescritivas. Se por insistir n�o s� nessas figuras-s�-linha, sem preenchimento, e no tr�nsito entre mat�rias e suportes, ele pode ser considerado o autor de uma obra que se aproxima do impr�prio, escapando dos limites de g�nero, por outro lado, n�o encontramos nome que tenha apostado na economia de recursos, na expressividade das formas simples e dos signos solit�rios, a flutuarem nas p�ginas, telas e tecidos, a perderem-se da constela��o a que pertenciam.
Quando nos deparamos com figuras quase infantis ou com um escrita pueril, muitas vezes bordada e, portanto, pouco artificiosa (como se esse fosse um jeito de rever-se naquele grau zero do estilo, numa for�a ainda cega e tateante), sabemos, especificamente, tratar-se desse artista �nico, reconhecido, ainda, pela va- riedade de objetos que fabricava para desativar a mesma linguagem com a qual eram feitos, como um poema, apostando na l�ngua b�sica de que falava Barthes, e que aqui se comp�e de rios, oceano, rapazes, montanha, vulc�o, fantasia, deserto, terra, mar, ar. Significantes comuns, anteriores, talvez, � forma��o do eu, contempor�neos ao momento em que somos projetos de escrita, so- nhadores do mundo, peregrinos do fora das institui��es. Afinal, � o pr�prio Leonilson quem afirma, comentando a obra intitulada “El puerto”, composta por um tecido bordado cobrindo um espe- lho: “Nunca me olhei no espelho. Para n�o me ver”.
O livro que agora � lan�ado n�o deixa de ter olhos atentos para os paradoxos, quando se trata desse jogo arriscado entre fic��o e verdade. Pensando bem, quem � que sabe o que se passa no seu corpo? Leonilson, aqui, n�o � escrito; nome, corpo e obra permanecem no infinitivo do verbo, como tra�o e como devir, por admira��o a uma experi�ncia que fez da perigosa partida entre expans�o e contra��o um conjunto de objetos que exigem olhar acurado para serem lidos e desmentidos, guardados e esquecidos, recitados e apagados.
* Carolina Anglada � professora e pesquisadora da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop)
“Escrever Leonilson: expans�o da poesia”
- Marina Baltazar
- Relic�rio Edi��es
- 156 p�ginas (mais 30 do caderno de notas)
- Distribui��o gratuita
- Lan�amento neste s�bado (27/8), �s 11h, na Livraria Quixote (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi, Belo Horizonte)
O livro pode ser baixado de gra�a no site da Relic�rio.