(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas PENSAR

Jo�o Paulo Cunha: a terceira margem da can��o

Em um de seus �ltimos textos, o jornalista Jo�o Paulo analisa o legado do m�sico D�rcio Marques, tema de livro de Let�cia Bertelli


16/09/2022 04:00 - atualizado 16/09/2022 19:26

O jornalista João Paulo Cunha
Jo�o Paulo Cunha, ex-editor do Pensar e do EM Cultura (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press.)


D�rcio Marques, em sua vida pessoal, foi encarna��o da utopia. A palavra, que se refere a um n�o lugar ou a um lugar imagin�rio capaz de realizar os portentos da justi�a, da harmonia e da beleza, ca�a nele como uma esp�cie de sobrenome. O artista n�o teve casa, dizia-se dele que era mesmo “imor�vel”. Sentia-se, no entanto, como muito poucos, em casa em qualquer lugar em que fosse recebido com afeto. Era dessas almas que habitam o mundo.

Em mat�ria de arte, n�o era tamb�m f�cil de pegar. Contempor�neo de v�rios movimentos da can��o popular de seu tempo, da m�sica de protesto ao novo cancioneiro latino-americano em suas variadas express�es no continente, trazia de cada um deles ao mesmo tempo a identidade e a distin��o. Sempre estava al�m do que se esperava, obrigando a um gesto de reflex�o e compromisso.

Em ideologia, tamb�m n�o era simples a tarefa de carimb�-lo. Portador de uma mensagem de revolta, muito mais que de revolu��o, manifestava em suas obras e atitudes, em est�tica e pol�tica, um ide�rio de liberdade. Nele estavam presentes impulsos humanistas (a arte era para ele uma manifesta��o antropol�gica), de defesa da justi�a social e de rep�dio a tudo que desumanizava. Sua liga��o com a natureza e a espiritualidade eram consequ�ncias dessa inspira��o poderosa.

Para complicar ainda mais, era um homem de contornos fluidos. Artista dotado de grande talento, nunca se distinguiu pelo cuidado com a obra. Ser pol�tico de profunda imanta��o com o real, por vezes se isolava em posi��es muito pessoais adiante de seu tempo. H� um custo em se antecipar. Mas h� tamb�m m�rito na coragem, mesmo que isso por vezes obrigue a caminhar sozinho. O que era dif�cil para um ser de rela��es, um malungo existencial como D�rcio Marques.
 
Músico Dercio Marques está deitado e tem um violão à sua frente
D�rcio Marques: personagem fundamental da cultura brasileira, ainda que pouco conhecido (foto: Giselle Rocha/EM/22/11/99 )
 

O cantor e compositor voltou seu esp�rito para fontes do continente e de seu povo origin�rio quando isso mal se desenhava no horizonte brasileiro. Cantava Ataualpa Yupanqui, Victor Jara e Violeta Parra, morou em pa�ses da Am�rica Latina, participou de grupos de m�sica regional. Escreveu um manifesto – algo confuso, mas cheio de ilumina��es – sobre a identidade do continente e seus desafios.

Percebeu, talvez antes de todos, artistas e pensadores da cultura, que o protesto tamb�m era mercado. Mesmo assim, participou de festivais da can��o, admirava Geraldo Vandr� e fez parte da onda de revolta contra as ditaduras de toda ordem. Mas teve a sabedoria de compreender que dar voz ao povo era mais importante que falar em seu nome.

Quando tudo na trajet�ria do artista parecia indicar que a s�ntese de tantos caminhos geraria uma obra marcada pela extrema informa��o pol�tica ou mesmo pela consagra��o do sucesso, o criador escolhe ou � escolhido pela simplicidade e suas ast�cias. Suaviza o canto, retoma refer�ncias mais emotivas, convoca a mem�ria afetiva do povo. Tenta criar ordem aceitando o caos. Algo que pode ser definido como fulejo, nome de seu disco mais emblem�tico.

Ouvir, conversar, pesquisar

Esse caminho de dificuldades em torno do personagem e sua obra � vencido com muita harmonia e afeto em “D�rcio Marques: Da Latinoam�rica ao Brasil de dentro”. Let�cia de Queiroz Bertelli criou um m�todo pessoal, feito de atitudes singelas: ouvir atentamente os discos (h�bito que se perdeu e com ele um cap�tulo indispens�vel da nossa intelig�ncia), conversar com as pessoas (outro atributo que anda em baixa), e pesquisar com curiosidade atenta e respeitosa.

O resultado � um estudo que revela um personagem fundamental da cultura brasileira, ainda que pouco conhecido. O que � mais um ganho do trabalho: a abertura a outras hist�rias a serem contadas sobre nosso modo de ser. Al�m do sucesso, da ind�stria cultural e mesmo do c�none assentado pela mem�ria e pelo h�bito, h� muito o que ser contado. Mais do que isso: a ser revisto e revivido. Talvez parte dos impasses pelos quais passamos hoje estejam perdidos numa curva de caminho da nossa majestosa ignor�ncia e certezas falhadas dos rumos da hist�ria.

Let�cia Bertelli nos abre algumas importantes fontes de desconfian�a. Em primeiro lugar, o desafio � narrativa dos vencedores, mesmo que ela seja por vezes confort�vel ao nosso ju�zo. Como a entroniza��o de certa MPB de alta qualidade est�tica e for�a moral. A enuncia��o de novas vertentes, como a cultura latino-americana e a arte de Elomar e dos cantadores, torna mais complexa – e melhor – o que j� parecia pacificado.

A preocupa��o com o contexto tamb�m traz algumas pistas importantes, numa esp�cie de cr�nica social dos grupos de contesta��o. Acostumados com uma hist�ria da cultura que passa necessariamente pelos meios autorizados de produ��o e divulga��o, � importante rever outros mecanismos sociais de mobiliza��o e legitima��o em funcionamento.

S�o formas de conviv�ncia art�stica que passam longe da m�dia de suas maquina��es, como os festivais e os discos promovidos em programas de audit�rio, para tangenciar um momento de constru��o de consensos mais perme�vel ao debate, ao partilhamento e � troca – n�o necessariamente pac�fica. Bares, jornais alternativos, escolas compunham uma cultura da presen�a viva. Que, quem sabe, esteja na hora de ser recriada.

Nesse cen�rio, a vida e obra de D�rcio Marques (1947-2012) revelam algumas caracter�sticas que ainda parecem ter o que dizer para o artista e o p�blico dos nossos dias. Em meio a an�lises muito finas das can��es, tanto na constru��o musical como po�tica, Let�cia Bertelli prop�e uma arte sutil da percep��o. Ouvir as hist�rias e a hist�ria que est�o nas m�sicas, nas letras e nos discos como discurso �ntegro. E n�o � um acaso que a trajet�ria do artista se revele transformadora tanto na forma como no conte�do, campos que, na verdade s� se separam na teoria. Na pr�tica da vida, a transi��o se d� como o movimento do rio, em continuada fluidez. Do canto ideol�gico e empostado dos primeiros discos �s can��es mais ing�nuas e entoadas com lirismo da obra de maturidade, h� algo que movimenta os dois campos do engenho do artista.

Depois de tantas andan�as e p�riplos, de batalhas ideol�gicas e est�ticas, de disputas com um mercado que parece tudo devorar, de reunir e sentir esgar�ar la�os de comunh�o, D�rcio encontra um caminho que vai dar na terceira margem da can��o. A intelig�ncia parece avan�ar em dire��o a um sentido mais profundo e at�vico de Brasil, enquanto a express�o busca um modo mais suave e emp�tico de comunica��o.

N�o seria um trajeto, em outro contexto, seguido por artistas como Jo�o Gilberto, que abandona a voz altissonante para inventar a voz do sil�ncio? Ou Milton Nascimento, que transmigra o canto barroco para a sensibilidade contempor�nea? Ou dos compositores do hip-hop, com sua conquista, a partir da margem, do centro da fala mais atenta sobre a realidade social do pa�s?

H� algo de modelar nesse empenho em dar conta da tradi��o, avan�ar al�m dela e a ela retornar com humildade, deixando o caminho para ser trilhado pelos que v�m depois. �s vezes com delicadeza. Outras com raiva.

Em vida, D�rcio Marques n�o completou esse ciclo, na forma do reconhecimento merecido pelo alt�ssimo n�vel de sua arte e de seu compromisso com a cultura brasileira. As aporias da nossa m�sica popular, hoje, talvez mostrem que a li��o ainda tem validade. Este livro � a prova disso.
 
 
  • O jornalista Jo�o Paulo Cunha (1959-2022) trabalhou 18 anos no Estado de Minas, onde ingressou como subeditor do caderno Gerais. Por 17 anos, editou o EM Cultura e o caderno Pensar. Formado em filosofia, comunica��o social e psicologia pela UFMG, escreveu os livros “Elomar – O cantador do Rio Gavi�o” (Duo Editorial, 2009), ensaio sobre a trajet�ria do m�sico baiano Elomar Figueira Mello; “Em busca do tempo presente” (Comunica��o De Fato, 2011), com artigos publicados no EM; e “Penso, logo duvido” (Lira Cultura, 2019), com artigos publicados no EM, no jornal Brasil De Fato e em cartilhas populares. Tamb�m foi um dos colaboradores do livro “Democracia em crise: o Brasil contempor�neo” (Editora PUC Minas, 2017). Presidiu o BDMG Cultural e atuou tamb�m na Rede Minas e R�dio Inconfid�ncia.
 
 

Capa de livro sobre o músico Dércio Marques
(foto: Letra da Cidade/reprodu��o)
D�RCIO MARQUES: DA LATINOAM�RICA DO BRASIL DE DENTRO

. De Let�cia Bertelli
. Letra da Cidade
. 240 p�gs.
. R$ 50. Vendas pelo e-mail [email protected]


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)