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Estado de Minas PENSAR

Jo�o Almino 'ressuscita' o Conselheiro Aires em novo romance

Em 'Homem de papel', integrante da ABL traz um dos personagens mais marcantes de Machado de Assis para o Brasil do s�culo 21


16/09/2022 04:00 - atualizado 15/09/2022 23:18

“O que quer que seja o futuro do Brasil e do mundo, ‘Memorial de Aires’ sempre ter� o que nos ensinar.” � o que garante Jo�o Almino, ao explicar o motivo de trazer um dos personagens mais c�lebres de Machado de Assis, o Conselheiro Aires, para os dias de hoje no romance “Homem de papel” (Record). Nascido em Mossor� (RN) e integrante da Academia Brasileira de Letras desde 2017, Almino � diplomata de carreira e empresta parte de sua viv�ncia diplom�tica para descrever os saracoteios de Aires em sal�es do Itamaraty. 

Em cap�tulos curtos, numerados e nomeados, Almino usa a sua j� consagrada destreza narrativa para tecer uma trama movida pela arg�cia e picardia, capaz de comportar at� antas (sim, os animais) e reagir de forma ir�nica � pol�tica, “aquele verme que carcomia as entranhas da imagina��o, deformava a arte e borrava as belezas do mundo.” A seguir, uma entrevista com Jo�o Almino com perguntas formuladas a partir de trechos de “Homem de papel”. 

Qual foi o ponto de partida de “Homem de papel”? 
Li em “Esa� e Jac�”, de Machado de Assis, que ap�s a morte do Conselheiro Aires foram encontrados sete (ou 10, segundo a vers�o) cadernos de sua autoria. Como sabemos pela advert�ncia do “Memorial de Aires” (o romance seguinte e �ltimo de Machado), assinada pelo editor M. de A., da parte dos cadernos relativa ao “Memorial” foi extra�do pouco para publica��o. O resto, ele diz, podia aparecer um dia. Imaginar as lacunas do “Memorial” n�o me pareceu suficientemente interessante para uma obra de fic��o contempor�nea. N�o era o caso de repetir, expandir ou fazer par�dia daquele livro. Machado havia concentrado as narrativas dos dois romances em per�odos hist�ricos densos. N�o valia a pena dizer mais do mesmo, nem buscar panos de fundo hist�ricos menos significativos. Melhor trazer Aires, com sua mem�ria, personalidade, inten��es e algum elemento biogr�fico novo, para outras �pocas. Seria poss�vel escrever um livro diferente dos originais que permitisse ao Conselheiro se confrontar com novas realidades.
 
Quais as principais diferen�as entre “Homem de papel” e seus romances anteriores? 
Quatro deles flertam com o realismo: “As cinco esta��es do amor”, “Cidade Livre”, “Enigmas da primavera” e “Entre facas, algod�o”. “Homem de papel” dialoga com o in�cio de meu trabalho de fic��o. Revisito, de outra maneira, principalmente meu primeiro romance, “Ideias para onde passar o fim do mundo”. O aspecto de fabula��o �, nos dois casos, fundamental. E de surrealismo, mas sem escrita autom�tica. Em “Homem de papel”, o chamado lugar de fala � a pr�pria fic��o. Pode parecer contradit�rio que, com esse procedimento e mesmo quando o que seja retratado beire o absurdo, eu busque mais e n�o menos verossimilhan�a.
Existe tamb�m em “Homem de papel” o que est� nos outros sete romances: uma dimens�o existencial. Essa dimens�o j� foi tratada pela �tica de jovens, como em “Enigmas da primavera”; de um fot�grafo que ficou cego, em “O livro das emo��es”; de uma professora de filosofia de meia-idade, como em “As cinco esta��es do amor”; de um jornalista que rememora sua inf�ncia, em “Cidade livre”; ou de um advogado em fim de carreira que viaja ao seu Nordeste natal em busca de amor e vingan�a, em “Entre facas, algod�o”. Agora, se apresenta atrav�s da �tica de um velho Conselheiro, de seu olhar sobre a vida, ele j� aposentado e que teve mais de uma. De seu relacionamento com as mulheres, no passado, e no presente de seu relato verbal dirigido a “voc�s”; muito especialmente da sua rela��o l� no passado com Fid�lia e agora com a argentina Leonor, nome que vem da �pera “Fidelio”, a �nica de Be- ethoven. O tema cl�ssico das rela��es amorosas se apresenta igualmente na rela��o da dona do livro em que o conselheiro se encontra, Flor, com seu marido e seu amante.
 
O que o fez decidir por um personagem t�o ilustre? Releu a obra de Machado antes de iniciar a escrita do romance? 
J� perdi a conta das releituras de partes da obra de Machado, e meu interesse pelo Conselheiro Aires vem de longe. Alguns ensaios cr�ticos n�o deixaram de perceber um di�logo que tentei travar com ele em meu quarto romance, “O livro das emo��es”. Desta vez � diferente, porque � o pr�prio Aires quem vem como narrador. 
Ele n�o � nenhum her�i, nem representou papel eminente neste mundo. Nem ele nem qualquer dos personagens de “Homem de papel” deveriam ser tomados como modelos. N�o h� no livro her�is nem anti-her�is, personagens cem por cento bons, nem cem por cento maus. No entanto, Aires manteve seu car�ter de conciliador, negociador e mediador. Que nos relatos antigos tenha sido bem-sucedido e no atual frustrado pelas circunst�ncias n�o � porque tenha perdido suas habilidades. 
 
Foi mais f�cil observar o Brasil do s�culo 21 pelos olhos de um homem do s�culo 19?
Para mim, n�o � quest�o de facilidade, mas de necessidade. Na fic��o, � preciso que a mat�ria seja vista com distanciamento, mesmo que esteja pr�xima. Em “Samba-enredo”, a lente do narrador � do futuro, olhando nosso presente, num procedimento inverso ao da fic��o cient�fica. Em “Homem de papel”, a lente � do passado. Aires pode tra�ar paralelos e contrastes entre �pocas distintas.
 
O humor permeia os cap�tulos. � um artigo em falta no Brasil e na literatura brasileira contempor�nea?
Falta humor no sentimentalismo piegas ou no realismo urbano que se limite a retratar os crimes e crises do momento. Mas a fic��o n�o prescinde do humor e pode ir muito al�m de relatos por vezes autobiogr�ficos ou das situa��es lidas nos jornais. A pena da galhofa talvez divirta um pouco o leitor e o ajude a passar o tempo da barca de Niter�i ou o metr� de Taguatinga, mas n�o para tranquiliz�-lo. A fic��o deve surpreender, inquietar e fazer pensar o leitor.
 

"Em 'Homem de papel', Aires atravessa sal�es onde pisei e existe uma apropria��o de aspectos da vida diplom�tica que conhe�o por experi�ncia, por ouvir dizer e por leituras"

 
Quais livros de Machado de Assis t�m mais a dizer ao Brasil de hoje?
Dif�cil escolher. Em especial, os cinco �ltimos romances, cada um ao seu modo, t�m muito a dizer ao mundo de hoje, n�o s� no Brasil. Virg�lia e Br�s, personagens centrais de “Mem�rias p�stumas de Br�s Cubas”, com seu mau-caratismo, bem como Capitu, de “Dom Casmurro”, s�o nossos contempor�neos, mais do que Madame Bovary e seus amantes. “Quincas Borba” nos faz pensar nas crises da raz�o. “Esa� e Jac�”, que trata da transi��o da monarquia para a Rep�blica, � obra fundamental para quem se interessa pelos embates pol�ticos atuais.  O que quer que seja o futuro do Brasil e do mundo, “Memorial de Aires”, o melhor romance de Machado de Assis, sempre ter� o que nos ensinar.
 
“Os diplomatas de agora esbarravam por vezes em barreiras � l�gica.” Como a sua experi�ncia diplom�tica o alimentou a escrever “Homem de papel”? O que h� de viv�ncia, de lembran�as e o que h� de imagina��o nas descri��es do cotidiano, e dos atuais percal�os, no Itamaraty?  
Tento muitas vezes partir de algo que conhe�o para dar asas � imagina��o. Fiz isso com a fotografia, com cen�rios de Bras�lia ou de outros lugares por onde passei e com viv�ncias e paisagens do Nordeste do Brasil, onde nasci (por exemplo, no romance anterior, “Entre facas, algod�o”).
Em “Homem de Papel”, Aires atravessa sal�es onde pisei e existe uma apropria��o de aspectos da vida diplom�tica que conhe�o por experi�ncia, por ouvir dizer e por leituras. Como substrato para isso, um elogio � diplomacia e � toler�ncia, tendo como fio condutor as tentativas malogradas do Conselheiro para tornar o seu entorno menos tenso.
Ele � um estere�tipo do diplomata, estere�tipo simp�tico: culto e sempre cordato. H� quem veja nele o pr�prio Machado, que evitava e detestava a pol�mica.
Por outro lado, n�o fa�o autofic��o, nem roman � clef. Gosto da inven��o do personagem e das situa��es. Fico contente quando me dizem que tal personagem � fulano ou beltrano, � sua colega de escrit�rio, o seu chefe ou a vizinha de porta – pista da capacidade de comunica��o do texto. � inevit�vel que minha fic��o esteja impregnada do que sou, como brasileiro vivendo no s�culo 21. Mas a consideraria pobre se viesse a se basear exclusivamente na minha experi�ncia. Por isso, para compor minhas hist�rias, recorro a tudo o que est� ao meu alcance, como um colecionador voraz e desorganizado.
 
“A realidade era um lugar desagrad�vel” � o t�tulo de um dos cap�tulos. A realidade anda dificultando a fic��o?
Pode dificultar e ao mesmo tempo tornar necess�ria a fic��o. A solu��o liter�ria n�o passa pela idealiza��o dos fatos e situa��es. N�o adianta pintar de cor-de-rosa as nuvens negras. A fic��o n�o deve se desviar do dif�cil desafio de revelar o lado escuro da vida, o que pode ser feito inclusive com humor e alta dose de imagina��o. O pessimismo pode ser usado como m�todo que n�o implique falta de esperan�a. Ao revelar o lado sombrio da exist�ncia, demonstrando compreens�o do que � profundamente humano, o escritor �s vezes espera que, se n�o seus personagens, o leitor possa se valer de alguns instrumentos adicionais para fazer face �s muitas adversidades da vida.
 
“A �ltima coisa em que queria pensar era em pol�tica, aquele verme que carcomia as entranhas da imagina��o, deformava a arte e borrava as belezas do mundo.” Como a pol�tica embota a imagina��o?
A pol�tica � a arte do poss�vel. A fic��o deve encarar o imposs�vel. E seu instrumento � a imagina��o. � compreens�vel a opini�o de Aires, j� ele n�o queria se envolver com pol�tica, nem no s�culo 19 nem no 21. No entanto, a pol�tica persegue at� mesmo quem � apol�tico e detesta pol�tica. Foi inevit�vel que o conselheiro tivesse, em “Esa� e Jac�”, que dialogar com os g�meos rivais, um monarquista e outro republicano. Em “Homem de papel”, eu o trouxe, com sua posi��o de n�o tomar partido, para um mundo de maior complexidade e com ciz�nias t�o ou mais marcadas do que as que presenciou e que n�o envolvem apenas dois lados da hist�ria. Talvez t�o dividido quanto o dos anos 20 do s�culo passado.
 
 “Quero sair do livro, isso � tudo.” E voc�, j� sentiu vontade de entrar em algum livro? Em quais deles gostaria de passar uma temporada?
Em algum que ainda n�o tenha sido escrito e no qual passarei o tempo que levar para conclu�-lo.
  
“O mundo era uma col�nia penal onde a humanidade pagava um pre�o por seus pecados.” E quem faz literatura no Brasil, tamb�m faz parte dessa col�nia? � ‘doudo’?
De uma maneira geral, fazer literatura � uma atividade dif�cil, � qual n�o se deve lan�ar em busca de fama ou dinheiro. Primeiro, dif�cil como a vida, com suas alegrias e sofrimentos. E n�o s� os sofrimentos de quem escreve – que tem compaix�o por seus personagens e sente de alguma forma seus dramas. Nem sempre h� o reconhecimento mais justo. Em determinados momentos e lugares, publicar uma pe�a de fic��o pode ser uma atividade de alto risco. Apesar de tudo isso, muitos de n�s n�o podemos escapar � escrita, porque � atividade vital e h� uma inquieta��o que precisa ser posta em palavras, quando falar n�o basta.

“Homem de papel”
De Jo�o Almino.
Record.
416 p�ginas.
R$ 64,90.


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