
N�o que n�o tenha havido vozes femininas dissonantes antes do s�culo 19: elas foram como brados, gritos isolados e lancinantes que preconizaram, de forma comovente, como as mulheres tamb�m eram seres pensantes, racionais como os homens. � o caso de Juana Inez de la Cruz, nascida no M�xico, em 1648, que, mesmo longe de falar em favor dos direitos das mulheres, pois n�o havia essa possibilidade no horizonte no s�culo 17, foi “uma cr�tica sagaz da conduta dos homens, de sua hipocrisia e de suas limita��es intelectuais e morais”. Ou de uma long�nqua Christine de Pizan, que escreveu “O livro da cidade das damas”, em 1405. Talvez tamb�m de muitas outras que tenham se manifestado solitariamente e que a a��o dos homens, principalmente dos intelectuais, apagou da hist�ria pelo processo denominado de memoric�dio.
Nascida em 1940, Dora Barrancos morou no Brasil entre 1977 e 1984 como exilada. Em nosso pa�s, concluiu o mestrado em educa��o (UFMG) e o doutorado em hist�ria (Universidade Estadual de Campinas). No livro, ela faz levantamento minucioso a partir da chamada primeira onda do feminismo europeu, que reivindicava o direito � educa��o para as mulheres, mantidas em trevas de ignor�ncia, apenas tendo est�mulo e acesso aos saberes voltados � manuten��o do lar burgu�s. A etapa seguinte a essa reivindica��o ser� pela cria��o de escolas e curr�culos adequados � modernidade. Quanto �s trabalhadoras, Dora Barrancos n�o as esquece um minuto sequer: paralelamente ao chamado, hoje, feminismo burgu�s, branco, acompanha sua luta atrav�s de grupos, coletivos e associa��es por respeito e melhores condi��es de trabalho.
Mas, longe de ser uma mera cartografia descritiva com pretens�es de neutralidade, a autora tamb�m marca indelevelmente sua leitura de dados e fatos com um olhar explicitamente pol�tico de esquerda, situando as lutas feministas em contextos mais amplos de batalhas por democracia ou rea��es a regimes autorit�rios. Cada pa�s da Am�rica Latina � esmiu�ado em termos de sua hist�ria pol�tica e singular. Assim, o feminismo latino-americano � desenhado, em tra�os gerais, em tempos diversos ao europeu e norte-americano – mas portando a mesma agenda: a igualdade jur�dica, a equipara��o dos direitos pol�ticos, os benef�cios da educa��o, o reconhecimento dos valores da maternidade com a devida prote��o das m�es e da prole.
O olhar pol�tico engajado da autora n�o esconde, por�m, em v�rios momentos, como os movimentos de esquerda se posicionavam contrariamente em rela��o �s reivindica��es feministas das companheiras de luta. Ela mesma, oriunda desse lugar, confessa, no pref�cio � edi��o brasileira, que, at� meados de 1970, tamb�m pensava, “desajeitadamente” que o feminismo era “individualista, dizia respeito a mulheres burguesas incomodadas, mas relutantes em perceber as v�rias formas de opress�o.”
Surpresas para o leitor
Dora Barrancos certamente vai surpreender o leitor ao mostrar como for�as de direita e esquerda se encontravam, ideologicamente, muitas vezes, no meio do caminho, pois partilhavam da mesma concep��o de "patrimonialismo do corpo da mulher". Assim, no s�culo 19, lideran�as oper�rias se manifestavam contra uma participa��o das mulheres na cena pol�tica atrav�s do voto, pois rememoravam as cenas de ass�dio por patr�es e capatazes no ch�o de f�brica. J� os pensadores de direita, liberais, com raras exce��es como um Stuart Mill, por exemplo, tamb�m manifestavam preocupa��o quanto a essa participa��o pol�tica por temer que as mulheres negligenciassem seus deveres de esposa e de m�e na organiza��o do espa�o dom�stico. Este pensamento foi o principal entrave ou “pedreira” simb�lica � conquista do voto feminino.
Nessa abordagem, os pr�prios movimentos feministas se dividiram ao longo da hist�ria entre a preconiza��o da confian�a de que as desigualdades entre homens e mulheres seriam resolvidas dentro do pr�prio sistema capitalista por leis igualit�rias e a ideia de que isso s� seria poss�vel com o fim da sociedade de classes. Para demonstrar esse pensamento, uma cita��o da socialista Clara Zetkin, em 1909, prim�rdios da Revolu��o de 1917, na R�ssia:
“As mulheres socialistas se op�em francamente � cren�a das mulheres burguesas de que as mulheres de todas as classes devem se unir em torno de um �nico movimento apol�tico e neutral que reivindique exclusivamente os direitos das mulheres.” Na perspectiva de Clara Zetkin, o voto n�o � a m�xima express�o das aspira��es, “mas uma arma, um meio de luta para alcan�ar um objetivo revolucion�rio: a ordem socialista”.
A luta pela participa��o das mulheres na cena pol�tica pela conquista do direito ao voto, nos s�culos 19 e 20, consumiu energias de v�rias gera��es de mulheres. A autora persegue detalhadamente essa luta contextualizando historicamente em cada pa�s da Am�rica Latina, mostrando a forma��o de coletivos e associa��es femininas. E faz um levantamento de centenas de nomes de ativistas mulheres que o chamado “memoric�dio” apagou da hist�ria: isso torna a leitura do livro, �s vezes, mon�tona, mas � o pre�o a se pagar para se fazer justi�a a essas vozes silenciadas pelos homens, intelectuais, pol�ticos e cr�ticos.
Tamb�m pode surpreender a demonstra��o de que muitas conquistas pol�ticas feministas tenham sido alcan�adas n�o s� em regimes democr�ticos com a discuss�o livre de temas, mas tamb�m em pa�ses que passavam por regimes autorit�rios. O Brasil mesmo � um exemplo: o direito ao voto feminino foi obtido em 1932, no governo autorit�rio de Get�lio Vargas. Ou que v�rios pa�ses com regimes de esquerda, como a Nicar�gua de Daniel Ortega, n�o foram exatamente solid�rios com as reivindica��es feministas.
Em tra�os gerais dos feminismos na Am�rica Latina, Dora Barrancos situa alguns momentos decisivos em todos os pa�ses: um ciclo que vai desde os prim�rdios entre as d�cadas de 1900 e 1910 at� os anos 1940; depois, um certo estancamento e um reflorescimento nos anos 1970 com uma transforma��o da agenda, nas reivindica��es nos anos 1980 e 1990. E, finalmente um terceiro ciclo, at� os dias atuais, com a expans�o das manifesta��es mais livres das sexualidades, “� propens�o das agendas mais vern�culas com ecos p�s-coloniais, � massividade das reivindica��es e a formas mais ousadas e expansivas do protesto antipatriarcal”.
Assim, temos uma Guatemala que sancionou o div�rcio por consentimento m�tuo em 1894; o Equador, que sancionou o voto feminino em 1929. E Cuba, p�s-revolu��o, que se adiantou a toda a Am�rica Latina e mesmo a boa parte do mundo e aprovou o direito ao aborto em ...1965! Seguiram-se a Cuba o M�xico, em 1976, e o Uruguai, em 2012 – nesta luta que talvez seja a que encontra maior resist�ncia em pa�ses de maioria crist�.
Sobre o Brasil, a autora descreve bem o surgimento dos prim�rdios do movimento com o destaque para Bertha Lutz, grande defensora do voto feminino desde 1919, e de movimentos conservadores de mulheres, como o que apoiou o golpe militar de 1964. Ao abordar a segunda onda, a partir dos anos 1970 e principalmente anos 1980, pelo controle do pr�prio corpo e contra a viol�ncia masculina contra as mulheres, a autora comete o mesmo equ�voco de outras historiadoras influenciadas pela m�dia brasileira: atribui o surgimento do slogan e movimento mineiro Quem Ama N�o Mata � a��o das feministas cariocas, em protesto pelo assassinato de �ngela Diniz, em 1977. Mais uma vez, a corre��o hist�rica: o slogan surgiu pichado no muro do tradicional Col�gio Pio XII, em BH, poucos dias antes do ato p�blico na Igreja S�o Jos�, em 18 de agosto de 1980, em protesto ao assassinato de duas mineiras por seus respectivos maridos.
A obra de Dora Barrancos cobre – a� de forma breve – os movimentos feministas e sua nova agenda por reconhecimento de outras formas de se perceber mulher e de outras sexualidades poss�veis fora da heteronormatividade at� os dias atuais. Textos adicionais falam das manifesta��es do “Ele n�o”, contra a elei��o de Bolsonaro em 2018 e o canto-dan�a “O estuprador �s tu”, originado no Chile. Agora, a den�ncia da viol�ncia contra as mulheres se expande do ambiente dom�stico para a responsabiliza��o do Estado, considerado c�mplice, conivente. Os obst�culos ao exerc�cio do trabalho, � falta de prote��o de meninas e mulheres: as pedreiras simb�licas e materiais do estado contra as mulheres.
Dora Barrancos constata que, em um s�culo de movimento feminista, as transforma��es ocorreram mais nas pr�prias mulheres, “que mudaram muito mais que os homens” e faz o convite a eles, principalmente, que se renovem e abandonem seu lugar privilegiado masculino, herdeiro de uma ordem pol�tica nada divina, mas injusta, em prol de uma sociedade mais igualit�ria.
Fica o convite.
“Hist�ria dos feminismos na Am�rica Latina”
- De Dora Barrancos
- Tradu��o de Michelle Strzoda
- Editora Bazar do Tempo
- 288 p�ginas
- R$ 75
