Podcast Pensar: 'A gente vive uma distopia esvaziadora das ruas', diz Luiz Ant�nio Simas
Luiz Ant�nio Simas, autor de O corpo encantado das ruas, fala sobre como a expans�o das metr�poles e o racismo fizeram a rua deixar de ser ponto de encontro
postado em 22/11/2019 04:00 / atualizado em 30/04/2020 16:24
Ao longo do �ltimo s�culo, com a expans�o das metr�poles e o protagonismo dos autom�veis, as ruas foram deixando de ser ponto de encontro para ser passagem. Circulam mercadorias e corpos que trabalham, num constante vaiv�m, enquanto o homem se enclausura cada vez mais em concreto e telas multiconectadas. Essas mudan�as ocorreram de forma acelerada no per�odo que separa A alma encantadora das ruas (1908), do cronista e jornalista Jo�o do Rio (1881-1921), e O corpo encantado das ruas, do historiador Luiz Ant�nio Simas, rec�m-lan�ado pela Civiliza��o Brasileira.
Mas, apesar das diferen�as, h� algo imut�vel entre o Rio retratado por Jo�o do Rio e o de Simas: a rua como um palco de disputas. Se na Belle �poque existia a tentativa de se europeizar para esconder as ra�zes africanas e amer�ndias, hoje as culturas populares sofrem com persegui��es e uma tentativa de desencantamento. “Temos um certo discurso civilizat�rio que tenta desencantar a rua. Um discurso moralista, ligado � seguran�a p�blica, ao cristianismo. O corpo encantado das ruas � uma tentativa de mostrar que as ruas esvaziadas perdem for�a, se desmobilizam, v�o perdendo o corpo, a alma”, conta o autor em entrevista ao Estado de Minas – a �ntegra est� dispon�vel no sexto epis�rio dopodcast Pensar.
Simas � um carioca de 53 anos criado tocando tambor no terreiro de candombl� da av� pernambucana e versado na experi�ncia de d�cadas de carnavais, botecos e rodas de samba – por isso, para ele, o homem vai al�m do pensamento cartesiano: � um ser que se amplia, que “dan�a, logo existe”, “toca tambor, logo existe”.
O corpo encantado das ruas � um conjunto de 42 pequenos deliciosos ensaios distribu�dos em 175 p�ginas. Ali, Simas discorre sobre ruas, encruzilhadas, terreiros, sonoridades. Resist�ncia e reexist�ncia. Os textos s�o devorados com a mesma �nsia que as crian�as avan�avam sobre os saquinhos de S�o Cosme e Dami�o, cuja capa do livro imita as tradicionais embalagens de papel.
Quanto de Jo�o do Rio tem neste seu trabalho?
Simas: Jo�o do Rio � aquele personagem que est� entre o amor profundo pela rua e um certo estupor. Porque, ali, a gente tinha um Rio de Janeiro que era uma cidade em combate: a de padr�o parisiense, mas ao mesmo tempo uma cidade marcada pela experi�ncia civilizat�ria dos africanos. Esse embate � muito curioso: o Rio � uma cidade fundada para espantar franceses, oficialmente, e que num certo momento tenta ser francesa para negar que � africana. A minha ideia era revisitar as ruas do Rio, pouco mais de 100 anos depois do Jo�o do Rio, e ver que a rua continua sendo um cen�rio em disputa. Se l� atr�s tinha a ideia de dar o recorte civilizat�rio europeu �s ruas, hoje temos outros embates: o avan�o das igrejas neopentecostais, o discurso da seguran�a p�blica. Entender esses enfrentamentos das ruas foi meu objetivo.
O livro fala de uma rua de cultura de saberes sofisticados. Mas, como voc� escreve, “somos educados para desprezar as culturas da s�ncope, ou seja, as que subvertem”. Por qu�?
Simas: � fruto do preconceito, do racismo estrutural brasileiro. Esse medo � feito para desqualificar os saberes que n�o t�m vi�s euroc�ntrico, fundado na ignor�ncia, no preconceito, no desconforto que o Brasil sente de admitir, de perceber a for�a das culturas amer�ndias e africanas. S�o saberes que para sobreviver na cidade elas operam em gram�ticas n�o normativas: na gram�tica do corpo, do tambor. Estamos encapsulados na ideia do cristianismo, na ideia da raz�o iluminista, do saber que se manifesta apenas nas culturas letradas. E o alargamento dessas gram�ticas � uma inten��o do meu trabalho.
O livro chega num momento de resist�ncia...
Simas: Hoje voc� tem uma cidade marcada por um crescimento espantoso do neopentecostalismo e ele trabalha na tentativa de desqualificar e demonizar as refer�ncias de culturas de terreiros, de culturas africanas. Costumo dizer que a rua, hoje, est� espremida entre a cruz e o mercado. O corpo encantado das ruas � uma tentativa de mostrar que as ruas do Rio esvaziadas perdem for�a, se desmobilizam, v�o perdendo o corpo, a alma. Elas v�o ficando desencantadas. Hoje isso � uma tarefa pol�tica da maior relev�ncia, porque existe um processo de exterm�nio, genoc�dio no campo f�sico e da cultura. Falar disso � crucial.
O carioca Luiz Ant�nio Simas foi criado tocando tambor no terreiro de candombl� da av� e � versado na experi�ncia de d�cadas de carnavais, botecos e rodas de samba (foto: Divulga��o)
Como essas culturas sobrevivem, de gera��o para gera��o, � escravid�o, aos preconceitos?
Simas: Se toda di�spora � uma dispers�o, um fen�meno de aniquilamento, de sequestro de identidades, toda cultura de di�spora � de reconstru��o coletiva, um fen�meno agregador, que cria estrat�gias de transmiss�o dos saberes. Quando falo de escola de samba, roda de candombl�, capoeira, ali existem elementos de constru��o de identidade, de rede de prote��o social, de sociabilidade, que v�o passando de gera��o em gera��o, operando em gram�ticas que n�o s�o as normativas. Porque s�o culturas de frestas, de s�ncope, que a rigor t�m que driblar a normatividade para que consigam sustentar toda a pot�ncia, seus saberes. S�o c�digos internos.
Como voc� imagina as ruas daqui a um s�culo?
Simas: A gente vive uma distopia esvaziadora das ruas, das sonoridades, dos corpos. Tenho uma perspectiva que � muito vinculada � ideia da fresta. Acho que o maior desafio para quem for escrever outro livro daqui a 100 anos – fazendo um exerc�cio de fic��o –, ser� perceber onde est� a brecha, a fresta, como � que essas culturas foram violentamente submetidas e subalternizadas pelo processo hist�rico e como redefinem estrat�gias para sobreviver. O grande mist�rio ser� entender o que estar� preenchendo a s�ncope daqui a 100 anos.