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Estado de Minas PENSAR

Jarid Arraes: 'O que a literatura pede � intimidade'

Autora de "Corpo desfeito" detalha surgimento do livro e o desconforto com a vida no sert�o e no interior do Brasil


30/09/2022 04:00 - atualizado 29/09/2022 23:41

Jarid Arraes
(foto: divulga��o)

 

Jarid Arraes nasceu em 1991, em Juazeiro do Norte (CE), e mora em S�o Paulo, onde criou o Clube de Escrita para Mulheres. Al�m de “Corpo desfeito”, lan�ou o livro de contos “Redemoinho em dia quente”, vencedor do Pr�mio Biblioteca Nacional e finalista do Pr�mio Jabuti, os poemas de “Um buraco com meu nome” e a colet�nea “Hero�nas negras brasileiras em 15 cord�is”. Com mais de 70 t�tulos publicados em literatura de cordel, Jarid respondeu �s perguntas do Estado de Minas e da resenhista Stefania Chiarelli a respeito de “Corpo desfeito”.

 

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Como surge “Corpo desfeito”? O que h� de lembran�as, observa��o e imagina��o no livro?

“Corpo desfeito” me veio como um ensaio de ideia de conto, mas logo que comecei a trabalhar mais profundamente na linha do tempo dos acontecimentos e desenvolver personagens, percebi que a hist�ria pedia mais espa�o para ser contada. Em “Corpo desfeito”, quis criar um elemento absurdo, algo de bizarro e intrag�vel, mas que se misturasse a um tema, infelizmente, muito real e comum na sociedade. Ele nasceu de exerc�cios de observa��o e pesquisa sobre abuso infantil, algo que venho estudando desde quando cursei psicologia, at� document�rios e biografias de pessoas que foram crian�as abusadas por suas fam�lias. H� muito da dor verdadeira que conheci nesses casos reais. A parte que vem das lembran�as est� na ambienta��o e no imag�tico do livro; eu busco retratar e apresentar o sert�o do Cear�, o Cariri, para os leitores, e com isso minha escrita transborda as ruas que conheci, os dias em que eu atravessava as romarias na cidade para ir at� a escola, e o fato de que cresci, de fato, em alguns dos cen�rios do romance, como a Matriz, onde minha tia-av� tinha um rancho para romeiros e minha bisav� tinha uma loja de est�tuas de santos cat�licos e outros itens religiosos tamb�m muito procurados durante as romarias. Eu morei na mesma rua onde vivem Amanda, sua fam�lia e sua melhor amiga, e frequentemente falava com seu Lunga, que foi uma figura muito conhecida no Brasil inteiro e que cito no livro. Acho que o fator especial de “Corpo desfeito” como constru��o est�tica est� justamente nas caracter�sticas t�o pr�prias do Cariri, suas cores, paisagens, o sotaque que fa�o quest�o de escrever e os elementos que mostram um mundo muitas vezes novo para quem est� lendo.

 

Romances como “Corpo desfeito” e o recente “Dil�vio das almas”, de Tito Leite, revelam um olhar que pontua o desconforto com aspectos da vida no interior. O deslocamento � condi��o essencial para esses personagens?

Acho que o meu deslocamento do sert�o para S�o Paulo foi um acontecimento importante para que eu me aproximasse ainda mais das minhas origens e decidisse fazer delas parte da minha est�tica art�stica e liter�ria. A ambienta��o � relevante, conta uma hist�ria que � �nica, � claro, mas as quest�es que abordo na minha escrita est�o por toda parte. Cada livro as coloca de sua pr�pria maneira e conversar sobre tudo isso � algo que pede contexto, e a discuss�o se torna mais complexa de acordo com essa localiza��o. No entanto o sofrimento humano, as perguntas dif�ceis, a vulnerabilidade, o que � horr�vel, s�o todos fatores que fazem parte da pr�pria exist�ncia, independentemente da geografia. Por isso a literatura � impactante, porque ela mexe no que h� de mais profundo, �ntimo e comum a todos n�s, mas faz isso utilizando todo o espa�o poss�vel para a criatividade, para as diferentes linguagens e texturas que existem no universo de cada hist�ria. Para mim � muito importante contar hist�rias que acontecem no sert�o, porque o sert�o tamb�m � um personagem indispens�vel para o que me proponho a questionar e retratar, mas sei que, mesmo todas as suas particularidades, o elemento que pode despertar identifica��o entre os leitores, mesmo os que n�o sabem como � a vida no sert�o, deve estar l�.

 

A escrita po�tica atravessa seu romance, denotando o cuidado com a linguagem. A cria��o (a poeta e a romancista) corre em paralelo ou s�o processos em sepa-rado? O que voc� consegue dizer pela literatura em cordel que n�o � dito em um romance ou em um conto?

Tenho um processo muito detalhado de escrita, de escolha de palavras. Tudo � muito intencional. As palavras e express�es que uso e que fazem parte do sotaque caririense s�o parte fundamental da minha linguagem art�stica. Tamb�m trabalho de tal forma que chego a me questionar se um dia aquele texto teria finaliza��o, porque sempre sinto a necessidade de continuar o processo de releitura, edi��o, revis�o e colora��o do vocabul�rio que uso. Vejo que isso vem da minha forma��o como leitora com a poesia, tanto a de cordel quanto a poesia em seus outros diversos formatos. Cresci lendo poetas, ouvindo literatura de cordel, e acho que o poema � parte de como experimento a vida. Quanto �s diferen�as na escrita de cada g�nero, acho que tudo pode ser dito em qualquer est�tica, seja em estrofe metrificada e rimada ou em prosa. O que a literatura pede � intimidade.

 

Considera que “Corpo desfeito” problematiza a constru��o do amor materno como algo incondicional?

“Corpo desfeito” com certeza mostra que o que se chama de “amor materno” est� cercado por condi��es. Estou muito mais interessada em discutir o que � desconfort�vel, feio e muitas vezes escondido. Acho que devemos isso �s crian�as que sobrevivem dentro de fam�lias violentas, omissas, ausentes ou autorit�rias. A realidade � muito complexa e a vida fict�cia de Amanda nos revela os emaranhados das rela��es familiares na sociedade. O romance � tamb�m um recurso para expor nossa face mais assustadora.

 

Por que decidiu criar o Clube de Escrita para Mulheres? Qual a import�ncia dessa iniciativa e qual a realiza��o que a deixou mais feliz?

Em 2015, quando criei o Clube da Escrita Para Mulheres, me sentia muito sozinha descobrindo o mercado editorial e o mundo liter�rio como escritora independente. A minha inten��o era  construir um ambiente de tro- ca, de apoio e de discuss�o sobre as experi�ncias das mulheres na literatura brasileira, desde o momento da escrita, at� os eventos liter�rios e premia��es. Ent�o, o Clube rapidamente se  tornou esse movimento de tro- ca genu�na, em que sempre vi escritoras apoiando umas �s  outras, e a partir do Clube muitas coisas bonitas se tornaram realidade. H� dois momentos que considero representativos do que esse projeto �: a primeira participa��o de uma mulher no Clube, quando ela chega e diz que escreve, mas sente vergonha ou medo de mostrar o que cria, e que at� n�o se sente no direito de se nomear escritora – e isso acontece em todos os encontros, porque sempre h� participantes chegando pela primeira vez –, e tamb�m o momento em que uma mulher decide que vai publicar o que escreve, depois de participar dos encontros, de conversar, de dar e receber suporte, e a� ela coloca seu livro no mundo (ou sua zine, seu e-book, seu cordel, etc.) e vemos uma transforma��o incr�vel e inspiradora. Tenho muito amor por esse projeto e muito orgulho de mant�-lo vivo h� sete anos, sempre gratuito.

 

Acredita que, de alguma forma, “Corpo desfeito” a ajudou a chegar aos contos de “Redemoinho em um dia quente”? O que une os dois livros? 

O processo, na verdade, foi o contr�rio, j� que o livro de contos veio antes. Os contos de “Redemoinho em dia quente” representam minha confian�a nas escolhas est�ticas e tem�ticas que fa�o na minha escrita. Eles s�o a concretiza��o de um desejo livre, porque eu me permito escrever aquilo que tenho vontade e o que me move. “Corpo desfeito” � fruto de algo que se mostrou muito claramente em meu livro de contos e acho que os dois livros caminham juntos, eles fazem sentido estando pr�ximos e representam esse processo muito intencional de escrever o sert�o que conhe�o e apresent�-lo do meu jeito. Isso inclui a palavra, a est�tica e o inc�modo que se transforma em hist�rias. 

TRECHO

“Corpo desfeito”
(de Jarid Arraes)

 

Continuo proibida de sair. S� tenho paz quando ela vai � feira. Fora isso, estou sempre trancafiada naqueles olhos. Ela me vigia o tempo inteiro. N�o sei como consegue me enxergar, com todo esse problema de n�o acender a luz. Ando pela casa com uma �nica vela e deixo que ela queime at� o final, at� a cera esfriar na minha m�o. Nunca uso pires, quero segurar na m�o. Quando a cera me queima, eu sinto que alguma coisa viva est� acontecendo comigo.

 

N�o sabia como tinha chegado naquele estado, mas n�o era a primeira vez que os feitos de v� me faziam ultrapassar todos os meus limites. E eu nem sabia quais eram meus limites, ningu�m me ensinou como me equilibrar nas beiras de meu corpo.


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