
Um dos primeiros pesquisadores e estudiosos da obra de Carlos Drummond de Andrade – poeta itabirano nascido em 31 de outubro de 1902, que se tornaria um dos expoentes da literatura nacional –, Affonso Romano de Sant’Anna nasceu em 1937, em Belo Horizonte. Pela atualidade e qualidade do texto, o posf�cio do poeta de BH foi mantido neste novo lan�amento de “A rosa do povo”, dentro das comemora��es dos 120 anos de Carlos Drummond de Andrade. Segundo Affonso Romano de Sant’Anna, “A rosa do povo” � um dos livros mais fortes e politizados de Drummond. Ao mesmo tempo em que o poeta, na descri��o do cotidiano e da vida “espandongada” da cidade, registra o medo da guerra e o questionamento em torno da exist�ncia; tamb�m “uma flor nasceu na rua”, rompe o asfalto e desafia o tr�nsito; impele o poeta a “assentar-se no ch�o da capital do pa�s �s cinco da tarde para reverenci�-la”. � assim que, para Sant’Anna, da n�usea do cotidiano, no �spero ch�o da capital, nasce uma flor, s�mbolo da resili�ncia da poesia, mensageira da esperan�a. A seguir, “A flor, a vida e a poesia”, o texto original de Sant’Anna para a edi��o de “A rosa do povo”.
“A flor, a vida e a poesia”
Affonso Romano de Sant’Anna
“A rosa do povo” – publicado em 1945 – � um livro crucial em meio ao conjunto da obra de Drummond. � considerado pela cr�tica um de seus livros mais fortes, tanto po�tica quanto politicamente. S�o 55 poemas escritos em dois anos – 1943-1945, enquanto transcorria a Segunda Guerra Mundial. Nesta �poca, vivendo no Rio, era chefe de gabinete do ministro da Educa��o, Gustavo Capanema, cargo que exercia desde 1934 no governo Vargas. Era j� um dos grandes poetas modernistas, embora Manuel Bandeira fosse ent�o o mais festejado.
“A rosa do povo” foi o seu quinto livro de poesia. O primeiro, publicado 15 anos antes, ao contr�rio deste, tinha um t�tulo meio modesto, uma maneira t�mida de pedir licen�a para publicar seus versos. Chamava-se “Alguma poesia” (1930). Editado l� em Minas, teve apenas 500 exemplares, e a tal editora Pindorama era imagin�ria. Os poemas eram curtos e ir�nicos. J� “A rosa do povo”, o mais volumoso de seus livros, possui poemas longos, que usam at� recursos dram�ticos, como “O caso do vestido”. Em v�rios desses poemas recupera a narratividade, o contar uma hist�ria, coisa que sempre existiu na poesia, e que o Modernismo havia refugado. Assinale-se, portanto, que ao publicar “A rosa do povo” o poeta j� n�o vive mais na prov�ncia, n�o � t�o jovem, deslocou-se do “Brejo das almas” (1934) e como um “Jos�” (1942) at�nito na grande cidade j� descobriu o “Sentimento do mundo” (1940).
Com efeito, os t�tulos dos livros t�m algo a nos dizer. Neste temos duas palavras emblem�ticas: “rosa” e “povo”. � curioso considerar isto, mais de meio s�culo depois, quando o mundo n�o est� mais antiteticamente dividido entre democracia e fascismo, democracia e comunismo. �quela �poca, quando se produzia uma literatura ut�pica e ideologizada, “povo” era uma palavra comum no texto dos poetas e romancistas engajados. Lembre-se, entre tantos, Pablo Neruda, com o monumental “Canto general” (1950) – com largos versos � Am�rica –, e Paul �luard, que, sintomaticamente, havia publicado “Rose publique” (1934).
Aquele tempo, como reconhece Drummond, era “tempo de partido, / tempo de homens partidos”; e ele, segundo suas notas biogr�ficas, em 1945, ano da publica��o de “A rosa do povo”, a convite de Lu�s Carlos Prestes, figura como codiretor do di�rio comunista, ent�o fundado, “Tribuna popular”. Verdade seja dita que esse namoro ideol�gico demorou pouco, pois “afasta-se do jornal, meses depois, por discordar de sua orienta��o”. Mas vest�gios dessa contamina��o ideol�gica est�o em poemas onde fala que a “burguesia apodrece”, refere-se ao “mundo capitalista” e, al�m de louvar a resist�ncia de Stalingrado, tem expectativas sobre a vit�ria russa em Berlim.
“Rosa” e “povo”
H� algo de antit�tico ou de poeticamente complementar nisto. O poeta est� somando, fundindo as duas palavras, imantando uma com o sentido da outra. E se o livro tem poemas que descrevem o cotidiano, o medo, a guerra e a vida “espandongada” da cidade, por outro lado ele anota que “uma flor nasceu na rua” furando o asfalto e desafiando o tr�nsito, impelindo-o a assentar-se no ch�o da capital do pa�s �s cinco da tarde para reverenci�-la. Uma flor (ou poesia, esperan�a) que brota da n�usea do cotidiano, como explicitamente est� indicado no t�tulo do poema “A flor e a n�usea”.
“N�usea” �, com efeito, uma palavra importante no pensamento existencialista t�o em voga �quela �poca, e encontra-se no t�tulo de um romance de 1938 de Jean-Paul Sartre, “A n�usea”. E h� uma sintonia entre o significado desta palavra na obra do poeta e na obra do fil�sofo. J� Heidegger, que foi melhor pensador que Sartre, dizia que o fil�sofo e o poeta s�o aqueles que est�o mais bem equipados para entender o sentido das coisas. Eles podem reunir o discurso da p�lis de seu tempo de uma maneira “re-velante”. E esse discurso, ou l�gos, s� se torna poss�vel atrav�s do verbo po�tico. Ali�s, no livro “Drummond, o gauche no tempo” (Editora Record) tive oportunidade de mostrar a afinidade entre o pensamento metaf�sico de Heidegger e a obra po�tica drummondiana.
A rigor, a obra drummondiana ganha mais densidade e maior gravidade quando lida nesta clave. � poss�vel dizer tamb�m que sua poesia, manifestando uma l�rica e dram�tica vis�o do mundo, pode ser analisada como uma grande pe�a de teatro testemunhando a tentativa e a impossibilidade de inser��o plena do indiv�duo no mundo. O conflito b�sico, ent�o, � este:
Eu versus Mundo
Poder-se-ia alegar, � claro, que este seria o conflito b�sico de todo ser vivo. Mas, no caso deste poeta, o que seria uma circunst�ncia comum transforma-se na reflex�o po�tica sobre o indiv�duo e sua perplexidade pessoal, social e metaf�sica.
� neste sentido que o poeta se instaura como um personagem que se intitula a si mesmo de gauche, ou seja, algu�m desajeitado, t�mido, conflituado com as coisas que ocupam o centro da cena. Esse gauchisme tem desdobramentos psicol�gicos, pol�ticos e metaf�sicos. No primeiro poema de seu primeiro livro ele lan�a as coordenadas a serem desenvolvidas sistemicamente em sua obra. Ao dizer:
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra:
disse: — Vai, Carlos! ser gauche na vida.
ele caracteriza o seu alter ego posto em cena. � algu�m (torto) marcado pela sinuosidade, pela elipse, pela curva, por um certo barroquismo de esp�rito; algu�m que (na sombra) foge � luz da cena, que prefere o escuro, o canto, o lado esquerdo do palco para poder melhor espiar o mundo. Espiar, ali�s, � o verbo usado preferencialmente nos primeiros livros, quando seu personagem ainda habita a prov�ncia do pr�prio ser e olha o mundo de esguelha. Quando se muda para a metr�pole do seu tempo, quando descobre o “mundo grande”, o que era um ir�nico “espiar” converte-se em “olhar”. H� em Jos� o poema “Rua do Olhar” exemplificando isto. Ele n�o est� mais espiando ironicamente da janela, como na prov�ncia. Est� dramaticamente no meio da rua e do mundo, e passar� at� a usar o verbo “contemplar”, muito mais abrangente e maduro que o simples “espiar” origin�rio.
Retomemos a estrutura da pe�a teatral subjacente ao seu texto denunciada no conflito b�sico: Eu versus Mundo. Sua obra, neste sentido, descreve a trajet�ria de um personagem gauche em tr�s atos:
Eu maior que o Mundo
Eu menor que o Mundo
Eu igual ao Mundo
O primeiro ato, que pode ser emblematizado no verso que se encontra no primeiro poema de seu primeiro livro – “Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto � meu cora��o” –, exibe o jovem ir�nico, que, na prov�ncia, ainda n�o experimentou o desgaste do tempo, n�o vivenciou os grandes conflitos do mundo e para quem o amor � mais um jogo que um drama.
O segundo ato instaura-se com o sintom�tico t�tulo do livro “Sentimento do mundo”, onde no poema “Mundo grande”, fazendo uma autocr�tica, ele considera: “N�o, meu cora��o n�o � maior que o mundo. / � muito menor.” A� confessa que precisa de todos, quer ir para a rua, para o meio do mundo, abandonar as ilhas, porque na solid�o de indiv�duo desaprendeu a linguagem com que os homens se comunicam.
Reveladoramente, o terceiro ato, “Eu igual ao Mundo”, � cristalizado � altura de “A rosa do povo”, quando no poema “Caso do vestido” um dos versos diz: “O mundo � grande e pequeno.”
Nessas alturas, o gauchisme cr�nico do personagem se manifesta de diversas maneiras. Ali�s, no primeiro poema de “A rosa do povo”, retomando este tema, que estar� presente em toda sua obra, refere-se “ao fatal meu lado esquerdo”. Verdade � que est� tentando vir para o meio do palco, do mundo, estar com o povo na hist�ria, numa rua que come�a em Itabira e vai dar em qualquer parte da Am�rica; verdade � que est� recuperando a hist�ria de sua fam�lia, da fazenda, de sua prov�ncia, antes t�o ironizada. Descobriu o desgaste do tempo, que morremos diariamente, e que a idade madura j� se prenuncia em rugas e certa sensibilidade ao frio. Encontra, ent�o, na figura l�rica e dram�tica de Carlito, um duplo, uma m�scara, um disfarce: “� Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de p� e de esperan�a.”
Quando ao princ�pio disse que “A rosa do povo” � um livro crucial na sequ�ncia das obras drummondianas, estava n�o apenas aludindo � sua import�ncia po�tica e hist�rica, mas encaminhando a ideia de que ele � a ampla porta para se ingressar no est�gio seguinte de seu projeto po�tico, quando, a partir de “Claro enigma”, assume um tom mais limpidamente metaf�sico, produzindo uma poesia menos ligada ao presente, aos fatos do cotidiano e mais interessada na ess�ncia da vida. N�o estranha que ele aprofunde a partir de ent�o o seu di�logo com o “nada”, como forma de estudar o “tudo” pelo seu avesso.
Neste livro em que v�rias vezes aparece a palavra “povo” e a palavra “rosa”, gostaria de chamar a aten��o, por exemplo, para um sutil e pequeno poema, na verdade, um sonetilho, chamado “�poro”:
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em pa�s bloqueado,
enlace de noite
raiz e min�rio?
Eis que o labirinto
(oh raz�o, mist�rio)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orqu�dea forma-se.
Parece enigm�tico � primeira leitura. Descobrindo-se, no entanto, que “�poro” � uma palavra que tem tr�s significados: � o nome de um inseto, tipo de escaravelho que cava terra adentro; � tamb�m um teorema sem solu��o e, enfim, o nome de uma orqu�dea, o texto come�a a se esclarecer.
Como um inseto, um ser min�sculo, gauche, acostumado � escurid�o, onde noite, raiz e min�rio se entrela�am, o indiv�duo encontra-se numa situa��o labir�ntica, apor�tica. Mas � cavando, a despeito da irracionalidade da vida e dos fatos, � lutando contra a treva, contra a aporia, contra os teoremas da raz�o, que, antieuclidianamente, a orqu�dea (ou indiv�duo), enfim, se forma.
Como se v�, a tem�tica da flor est� a� subjacente. E como ele dir� em “An�ncio da rosa”: “Imenso trabalho nos custa a flor”.
A flor, a vida, a poesia
A publica��o deste e de outros livros de Drummond separadamente funciona como uma esp�cie de porta para se entrar num universo complexo e labir�ntico. Este, como todos os seus livros, podem ser lidos isoladamente e exercer�o, cada qual ao seu modo, a sedu��o sobre o leitor. Contudo, n�o se deve perder de vista que este � um poeta na alta acep��o do termo. Ele havia falado certa feita num texto intitulado “Autobiografia para uma revista”: “Entendo que poesia � neg�cio de grande responsabilidade, e n�o considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor de cotovelo, falta de dinheiro ou moment�nea tomada de contato com as for�as l�ricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos da t�cnica, da leitura, da contempla��o e mesmo da a��o. At� os poetas se armam, e um poeta desarmado �, mesmo, um ser � merc� de inspira��es f�ceis, d�cil �s modas e compromissos”.
Em outros termos, repito que, embora se possa e se deva ler seus livros isoladamente, � fundamental ter em considera��o que sua obra � um largo “projeto po�tico-pensante” – conforme express�o heideggeriana. Cada poema, cada livro est� retomando imagens, temas e quest�es progressivamente.
Neste sentido, ler Drummond � mais do que um prazer po�tico, � tamb�m um sofisticado exerc�cio de compreens�o da pr�pria vida e da irremiss�vel perplexidade humana.
“A rosa do povo”
Carlos Drummond de Andrade
Record
238 p�ginas
R$ 60
Nas livrarias a partir da pr�xima semana