
Leonardo Cazes
Especial para o EM
Na correspond�ncia entre o cr�tico Alceu Amoroso Lima — mais conhecido pelo pseud�nimo Trist�o de Athayde — e os principais nomes do modernismo brasileiro, as cartas t�m sempre um duplo destinat�rio: a pessoa f�sica a quem a missiva est� endere�ada e o leitor do futuro, que por meio dos textos vai descobrir a teia de rela��es entre alguns dos principais intelectuais brasileiros. No caso do poeta alagoano Jorge de Lima, a correspond�ncia in�dita reunida no livro “Jorge de Lima & Alceu Amoroso Lima: Correspond�ncia” (Ed. Francisco Alves) revela uma hist�ria de profunda amizade, al�m de lan�ar luz sobre o modernismo alagoano e os bastidores do meio liter�rio brasileiro na primeira metade do s�culo 20.A correspond�ncia, organizada por Leandro Garcia Rodrigues, professor da UFMG, n�o poderia chegar em melhor hora. No ano do centen�rio da Semana de Arte Moderna, em S�o Paulo, as cartas entre o cr�tico e o poeta alagoano ajudam a expandir a geografia do modernismo brasileiro e colocam em evid�ncia a linhagem m�stica da renova��o est�tica brasileira — menos lembrada, mas n�o menos importante. Isso no ano em que tamb�m se completam sete d�cadas do lan�amento de “Inven��o de Orfeu”, o poema �pico de Jorge de Lima que permanece como uma das obras mais enigm�ticas da literatura brasileira.
A troca de cartas tem in�cio em 1928, por iniciativa de Jorge de Lima. O poeta remeteu ao cr�tico originais que fariam parte da segunda s�rie dos seus “Poemas”. O tom � de quem busca a chancela para incluir os textos na seleta que preparava. “N�o � vontade de amol�-lo n�o, meu amigo. � mesmo mais que estima, � apre�o � sua opini�o. � mais: � medo. Medo sagrado. Depois de impresso o meu amigo dizer que n�o presta!”, escreve o alagoano, em 24 de junho.
A resposta chegou com data de 10 de julho. Alceu Amoroso Lima confirma o recebimento dos poemas e diz: “Vou ler tudo com o interesse que isso merece e o gosto j� estimulado pela ‘Negra Ful�’. Logo lhe direi com toda a franqueza o que julgar a respeito". A “Negra Ful�” a que o cr�tico se refere � o poema “Essa negra ful�”, que se tornaria um dos mais conhecidos de Jorge de Lima. Publicado em separata por uma casa editorial alagoana, o texto j� tinha chegado �s m�os do cr�tico no Rio de Janeiro.
Alceu estava sempre atento � produ��o liter�ria dos diferentes cantos do Brasil. Era comum ser procurado por autores em busca de reconhecimento e nunca os deixava sem resposta — como tamb�m mostra a sua correspond�ncia com o mineiro Carlos Drummond de Andrade — o que por si s� j� d� a justa medida da import�ncia que os modernistas brasileiros davam � sua opini�o.
O interesse e o conhecimento de Alceu acerca da literatura brasileira do per�odo v�o se revelando ao longo da correspond�ncia. No di�logo com seu interlocutor, ele comenta sobre textos e pede colabora��es para a revista “A Ordem”, publica��o cat�lica que dirigia, a conterr�neos de Jorge de Lima como o hoje consagrado Jos� Lins do R�go e o poeta Alu�sio Branco, hoje pouco lembrado.
Nas cartas, inclusive, aparece a cobran�a por um texto prometido e nunca escrito por Lins do R�go para “A Ordem”. Ap�s diversas cobran�as do amigo, Jorge de Lima confidencia: “Jos� Lins � um caso de pregui�a incur�vel”. Em outra missiva, Alceu pede informa��es sobre outro autor alagoano, Graciliano Ramos. “Que tal � esse Graciliano Ramos? Escreve admiravelmente. E parece ter um pulso de verdadeiro romancista. Li alguns trechos de um romance dele, ‘Caet�s’, que tem vigor. Talvez um pouco exterior demais, com um verdadeiro horror ao sentimentalismo." Ao final, escreve: “Mande-me indica��o sobre o homem, pois � uma figura realmente fora do comum.”
Na fase inicial da correspond�ncia entre o cr�tico e o poeta, “A Ordem” ocupa um papel central. Jorge de Lima toma para si o papel de conseguir novos assinantes em Alagoas, atendendo aos apelos de Alceu para manter a revista de p�. A publica��o cat�lica trazia ensaios, poemas, tradu��es e abordava uma grande variedade de temas. Esse esfor�o � caracter�stico daquilo que Rodrigues classifica como um “catolicismo militante”.
Essa afinidade religiosa foi o cimento da amizade entre os dois. O cr�tico sempre reconheceu o empenho do amigo para conseguir novas assinaturas. Em um trecho, Jorge de Lima lamenta que o “clero numeroso se desinteressa” e que “a ma�onaria aqui atrasa um bocado e a melhor gente est� nas lojas”, justificando o baixo n�mero de ades�es. Eles comentam tamb�m a posi��o da Igreja Cat�lica frente � Revolu��o de 1930. “Deus permita que o clero n�o esteja acendendo uma fogueira para si pr�prio”, escreveu o alagoano em 11 de novembro daquele ano.
Tentativas de ingressar na ABL
A correspond�ncia entra numa nova fase com a mudan�a de Jorge de Lima para o Rio de Janeiro, em outubro de 1931. Neste per�odo, as cartas escasseiam, multiplicam-se os telegramas e surge, na conversa, o projeto de Jorge de Lima para ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL). Ao todo, foram cinco tentativas, documentadas nas cartas. A primeira data de dezembro de 1936, ap�s a morte do acad�mico Goulart de Andrade:
“Goulart era alagoano e eu tamb�m sou, era poeta e eu tamb�m e era cat�lico e eu tamb�m me gabo de o ser. Queria saber se pelo menos com essas coincid�ncias minha candidatura seria vi�vel � Academia. N�o quero fazer aventura e desejaria que voc� me falasse como o amigo que tem sido sempre para mim.”
A resposta de Alceu, eleito para a Academia no ano anterior, n�o veio por carta, mas sua sinaliza��o foi positiva, pois Jorge de Lima concorreu � cadeira, cujo vencedor no escrut�nio realizado em 1937 foi o jornalista Barbosa Lima Sobrinho. No mesmo ano, o poeta se inscreveu novamente, dessa vez para a cadeira vaga ap�s a morte de Paulo Set�bal. O eleito, entretanto, foi Cassiano Ricardo. Alceu n�o escondeu seu descontentamento: “Fiquei irritado com o resultado das elei��es. Para voc� ver como s�o as promessas acad�micas”, escreveu. “Ali�s, � um bom poeta o Cassiano, mas devia esperar”.
Apesar de contar com Alceu como cabo eleitoral, os insucessos se acumularam. As missivas revelam que rusgas anteriores, e que nada tinham a ver com Jorge de Lima, assim como compromissos j� assumidos por acad�micos com outros nomes, minaram a entrada do poeta alagoano na casa de Machado de Assis. Contribuiu tamb�m para esse desfecho a morte precoce, em 1953, pouco mais de um ano ap�s a publica��o de “Inven��o de Orfeu”. Sete d�cadas depois, a for�a da obra do poeta e de seu poema mais famoso mostram que, quem perdeu, foi a pr�pria Academia.
Leonardo Cazes � jornalista e mestre em Hist�ria pela UFF (Universidade Federal Fluminense)

“Jorge de Lima & Alceu Amoroso Lima: Correspond�ncia”
• Organiza��o de Leandro Garcia Rodrigues
• Editora Francisco Alves
• 532 p�ginas.
• R$ 120.
Entrevista/Leandro Garcia Rodrigues
“Essa correspond�ncia vem para colocar Alagoas no modernismo brasileiro”
Leandro Garcia Rodrigues, professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), � o respons�vel por organizar e editar a correspond�ncia de Alceu Amoroso Lima com os principais autores do modernismo, tendo j� publicado as cartas do cr�tico com o paulista M�rio de Andrade, e os mineiros Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. Em entrevista, ele destaca os principais temas tratados por Jorge de Lima e o cr�tico, mais conhecido pelo pseud�nimo Trist�o de Athayde.
No ensaio de abertura do livro, voc� destaca a linhagem m�stica do modernismo brasileiro. Por que essa tradi��o � bem menos lembrada?
A historiografia e a cr�tica liter�ria, em sua maioria, ignoraram o elemento religioso. Eu vejo a religi�o no Brasil como parte da nossa cultura, nossa identidade. V�rios autores expressaram isso nas suas obras, e n�o s� aqui. No modernismo franc�s uma onda de escritores se converteram. No Brasil, temos Jorge de Lima, Murilo Mendes, L�cio Cardoso, Corn�lio Penna, Octavio de Faria, Augusto Frederico Schmidt, para falar apenas da linhagem cat�lica. Se n�s tirarmos a quest�o religiosa de Jorge de Lima e Murilo Mendes, por exemplo, voc� acaba com os dois.
De que forma a correspond�ncia refaz a geografia do modernismo brasileiro?
Essa correspond�ncia vem pra colocar Alagoas no modernismo brasileiro. Em geral, s� lembram de Graciliano Ramos, mas n�o foi s� ele. Nos anos 1920, l� a coisa pegava fogo. A Rua do Com�rcio, em Macei�, era como se fosse a Rua do Ouvidor, no Rio. Era o ponto de encontro de intelectuais como Jorge de Lima, Graciliano, Rachel de Queiroz, Jos� Lins do R�go. A pr�pria entrada de Jorge de Lima no modernismo se d� a partir desse universo alagoano e com todos se correspondendo com Alceu no Rio.
As cartas t�m um tom muito �ntimo, de amizade fraternal. Como se deu essa aproxima��o?
Nos primeiros cinco anos da correspond�ncia eles n�o se conheciam pessoalmente. Eles formam uma amizade por cartas. Isso era o grande barato da correspond�ncia para aquela gera��o. � uma amizade liter�ria e um tanto religiosa, ambos s�o cat�licos. Alceu logo detecta esse elemento na poesia de Jorge de Lima. O que despertou a aten��o de Alceu � que o poeta levava um catolicismo popular, nordestino, para sua poesia. � um catolicismo do interior, de devo��o popular, sincr�tico e Alceu via isso como uma coisa positiva.