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Estado de Minas PENSAR

Em s�tira, Ana Luisa Escorel recria Brasil como rem�dio para o Diabo

Publicado em edi��o caprichada, 'O fastio do Diabo' ironiza os acontecimentos recentes da hist�ria do pa�s


02/12/2022 04:00 - atualizado 01/12/2022 20:34

Ana Luisa Escorel
Ana Luisa Escorel e os habitantes do inferno de "O fastio do Diabo": "Danados oprimidos e danados opressores" (foto: Monica Ramalho/Divulga��o)

O diabo tem um problema. Perdeu contund�ncia para as maldades das criaturas feitas � imagem e semelhan�a do Criador. Pior. Seu m�todo de trabalho se tornou brando “se comparados aos graus inimagin�veis de torpeza que passaram a mover multid�es de homens e de mulheres, muito melhor equipados para aniquilar seu semelhante, sistemas de pensamento e o pr�prio ambiente natural do que as ativ�ssimas brigadas da noite eterna submetidas ao comando firme da m�o dele”. Desanimado, o Senhor dos Abismos mergulhou na indiferen�a e na mais completa inapet�ncia. O que fazer para arranc�-lo do enfado?

“O fastio do Diabo”, romance sat�rico de Ana Luisa Escorel, s� perde a gra�a quando terminamos de ler as 184 p�ginas da preciosa edi��o da Ouro Sobre Azul. Autora premiada, Ana Luisa encontrou uma maneira original de comentar – e ironizar – as maldades brasileiras. “O livro surgiu da necessidade de refletir um pouco sobre a fraqueza moral que nos atinge – pobres criaturas mal-acabadas que somos – nesse embate sem fim entre o bem e o mal”, conta, em entrevista ao Pensar do Estado de Minas. 

Com tr�s partes, “O fastio do Diabo”, “Culpa e castigo” e “Dando conta do recado”, o livro de Ana Luisa Escorel se passa em uma reuni�o de integrantes do ‘ex�rcito das trevas’, pobres diabos que tentam, sem sucesso, animar o chefe enfastiado. As coisas come�am a mudar apenas quando um deles, o Enviado, desperta a curiosidade do superior ao relatar as atividades em “territ�rio f�rtil, onde reinam a desordem e a ignor�ncia e que patina sobre a pr�pria hist�ria sem conseguir dar o salto que poderia fazer dela um lugar como poucos”. A partir deste momento fica mais f�cil identificar os fatos e personagens da trag�dia brasileira ocorrida nos �ltimos anos. “Fiquei satisfeita por ter me permitido desenvolver uma linha narrativa repleta das mais diversas arbitrariedades, descolada da l�gica corrente, mais pr�xima da fantasia infantil do que da imagina��o rigidamente organizada dos adultos”, conta a autora. 

Nascida em 1944 em S�o Paulo, Ana Luisa Escorel faz parte da primeira gera��o de designers formados pela Escola Superior de Desenho Industrial, no Rio de Janeiro, em 1964, onde vive. Fundou a Ouro Sobre Azul em 1999, empresa de design gr�fico e edi��o de livros. � autora de “Brochura brasileira: objeto sem projeto”, “O efeito multiplicador do design”, “O pai, a m�e e a filha”, “Anel de vidro” (Pr�mio S�o Paulo de Literatura na categoria melhor romance do ano de 2014), “De tudo um pouco”, “Dona Josefa” e “A forma��o de Antonio Candido”. A seguir, a entrevista de Ana Luisa ao Pensar. 

Gostei muito de escrever 'O fastio do Diabo'. Me diverti � grande, satisfeita por ter me permitido desenvolver uma linha narrativa repleta das mais diversas arbitrariedades, descolada da l�gica corrente, mais pr�xima da fantasia infantil do que da imagina��o rigidamente organizada dos adultos

Ana Luisa Escorel



Como surge “O fastio do Diabo”?
N�o tenho muita clareza acerca do que me levou a esse terceiro romance. Acho que a ideia surgiu do horror frente a destrui��o – por extremistas isl�micos, em agosto de 2015 – do templo de Baal-Shamin, em Palmira, patrim�nio arquitet�nico da humanidade. Esse horror foi puxando outros – alguns pr�ximos, outros distantes –, e fez com que eu me detivesse, mais do que usualmente costumo fazer, na constata��o do tanto de vilania de que s�o capazes homens e mulheres, em diferentes ocasi�es e meridianos, pelas mais diferentes raz�es.

Como foi estruturado o seu “Inferno”? Que leituras a ajudaram a elaborar esse ambiente e o “organograma” de seu “inferno” particular?
H� cerca de 20 anos n�o leio praticamente coisa nenhuma, apenas escrevo. Fiquei esse tempo todo emendando o fim da escrita de um livro ao come�o de outro, com intervalos que n�o passavam de 30 dias, com exce��o feita � “Dona Josefa”. Para escrev�-lo precisei me informar sobre as revoltas liberais ocorridas em meados do s�culo XIX, em S�o Paulo e Minas Gerais e, como n�o conhecia nada sobre o assunto tive de ler bastante: viajantes, historiadores, jornalistas e memorialistas. Quanto a “O fastio do Diabo”, surgiu da necessidade de refletir um pouco sobre a fraqueza moral que nos atinge – pobres criaturas mal acabadas que somos – nesse embate sem fim entre bem e mal, embate que carregamos desde o nascimento e nos acompanha at� o final. Na tentativa de tratar esses contr�rios e seu poder de interfer�ncia no comportamento de homens e de mulheres, n�o me apoiei em leitura nenhuma. Me apoiei, apenas, na licen�a de abusar do del�rio, aplicando-o � narrativa com toda a liberdade. Em fun��o disso inventei esse Inferno particular, descrito no romance, senhor de uma ordem espacial pr�pria e habitado por uma popula��o de danados oprimidos e danados opressores imaginada tamb�m, fruto de certa necessidade de fabula��o – meia infantil, talvez – impressa em mim h� muito, desde o tempo em que, dos tr�s aos dez anos de idade, fui nutrida, dia ap�s dia, pela verve dos extraordin�rios contadores de hist�rias que foram minha av� paterna e meu pai.

O que a fez escolher a s�tira para contar essa hist�ria e n�o o realismo? Poderia citar algumas obras sat�ricas que admira?
No meu caso os textos nascem com o formato j� tra�ado. N�o fa�o sen�o respeit�-lo e desenvolv�-lo, tentando servi-lo por meio da melhor escrita a meu alcance, escrita que me ocupa bem mais que a estrutura narrativa criada para acomod�-la. Nesse rumo, “O fastio do diabo” se imp�s como s�tira desde o come�o, apesar de eu n�o ser conhecedora, amante e muito menos leitora do g�nero.

H�, evidente, uma cr�tica pol�tica no livro, mas tamb�m surgem ironias para a aprecia��o das artes visuais e mesmo da literatura. O que a fez ir al�m da met�fora pol�tica no livro?
O que me fez misturar, ao n�cleo da trama, coment�rios sucessivos sobre algo da produ��o consagrada da arte erudita ocidental foi a necessidade de atenuar uma linha narrativa descritiva em excesso – talvez – acerca de fatos e lugares desconhecidos pelos personagens do romance, familiares, no entanto, aos leitores de uma certa regi�o, plantada ao sul do Equador. Regi�o vacilante que n�o vai nem vem, insistindo, h� s�culos, em emendar dois passos para frente com dois para tr�s, na tentativa pat�tica – recorrente e malsucedida – de impor a si pr�pria e ao mundo uma originalidade cultural que n�o chega nunca a se realizar plenamente.

Por que o Brasil, mesmo n�o nominado, � avaliado como “terreno f�rtil para a iniquidade” e um lugar onde “a desordem e a ignor�ncia reinantes favorecem bastante o delito”?
Uai, porque � disso que se trata em todas as regi�es do globo que sofrem com a distribui��o desigual da riqueza! Darcy Ribeiro, numa tirada conhecida, disse que, no Brasil, por exemplo, a ignor�ncia n�o � fatalidade, mas projeto. Projeto para manter as camadas menos favorecidas � margem da condu��o pol�tica, econ�mica e cultural do pa�s, eternamente condenadas a formas prec�rias de vida. E mais expostas, em consequ�ncia, � sedu��o pelo il�cito como alternativa de sobreviv�ncia.

Rec�m-derrotado nas urnas, o atual presidente do pa�s, mesmo sem ser nominalmente identificado, � descrito como um homem de “prop�sitos infames, vulgares e de valores baixos”. A inf�mia e a vulgaridade dominaram o pa�s nos �ltimos anos? O que espera dos pr�ximos anos?
A inf�mia dos opressores sobre os oprimidos tem marcado, desde sempre – e de forma
particularmente violenta – a hist�ria das regi�es menos desenvolvidas do planeta. Ocorre que nos �ltimos quatro anos, na zona meridional descrita em “O fastio do Diabo”, esse e outros tra�os, igualmente nefastos, se revelaram sem disfarce por meio das a��es de um numeros�ssimo grupo ideol�gico, obrigando a popula��o descrita no romance a se defrontar com a realidade inescap�vel de uma for�a retr�grada assustadora. Diante desse quadro, e para responder � pergunta, espero que, nos pr�ximos anos, possam se constituir ao redor do mundo rea��es cada vez mais efetivas a esse arranjo de coisas, na regi�o tratada em “O fastio do Diabo”, inclusive. N�o me parece tarefa f�cil dado o estrago que o neoliberalismo – est�gio mais que perverso da domina��o capitalista – conseguiu provocar, retendo com m�o de ferro as cartas do jogo pol�tico e econ�mico em escala global.

A edi��o esmerada � um dos destaques de “O fastio do Diabo”. Em tempos digitais, o que representa para voc� o investimento em uma edi��o impressa t�o bem cuidada? Como a Ouro sobre Azul se situa no mercado editorial brasileiro?
Na era da informa��o digital, na minha opini�o, faz muito sentido investir na edi��o de livros f�sicos, oferecendo, com eles, produtos cada vez mais cuidados no tocante � cadeia do processo industrial. Ou seja, � qualidade do design, da impress�o e dos materiais em que vierem a ser fabricados. Como essas formas de reprodu��o – a digital e a anal�gica – se equivalem no que se refere ao tratamento do texto, o que passa a distingui-las � justamente a interface que cada uma prop�e. Nesse contexto, o setor editorial da Ouro sobre Azul continua privilegiando o livro impresso e continua a se conduzir segundo a m�xima que d� norte a nossos trabalhos desde o surgimento: o compromisso com o melhor desempenho editorial poss�vel tanto no tratamento do texto, quanto no tratamento do aspecto gr�fico do livro. Nunca deixamos de ser uma pequena empresa e nunca nos afastamos desse compromisso com a qualidade editorial de nossos produtos. Sendo assim, acabamos conquistando um lugar pr�prio no mercado editorial brasileiro, me parece, onde o que nos distingue � justamente a qualidade dos livros que produzimos.

Como o design pode influenciar a frui��o de uma obra liter�ria? O que voc� gosta e o que n�o gosta nas capas das edi��es brasileiras no s�culo 21?
No caso do livro impresso o que mais importa � a aplica��o de t�cnicas tipogr�ficas corretas ao miolo, comprometidas em facilitar, para o leitor, a apreens�o dos sentidos contidos no texto. E esse � um terreno ao mesmo tempo �rido e fascinante, que n�o me parece reter o interesse principal nem dos designers nem da maioria dos editores brasileiros, tradicionalmente voltados para o apelo visual da capa e por sua influ�ncia no ato da compra. Eu arriscaria afirmar que a brochura comercial feita em nosso pa�s revela bem esse estado de coisas: capas bonitas e originais servindo a miolos projetados sem muita sensibilidade no trato com os tipos nem com os imensos recursos que os tipos oferecem aos designers que sabem lidar com eles.

Foi t�o divertido escrever “O fastio do Diabo” quanto � ler o livro?
Gostei muito de escrever “O fastio do Diabo”. Me diverti � grande, satisfeita por ter me permitido desenvolver uma linha narrativa repleta das mais diversas arbitrariedades, descolada da l�gica corrente, mais pr�xima da fantasia infantil do que da imagina��o rigidamente organizada dos adultos.
Capa do livro %u201CO fastio do Diabo%u201D
(foto: Ouro sobre Azul/Divulga��o)

“O fastio do Diabo”
•  De Ana Luisa Escorel
•  Ouro sobre Azul
•  192 p�ginas.
•  R$ 59,00


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