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'Tamb�m guardamos pedras aqui' debate quest�es atuais a partir da 'Il�ada'

Vencedora do Pr�mio Jabuti de melhor livro do ano, Luiza Rom�o detalha processo criativo e o impacto que a leitura do cl�ssico de Homero trouxe para sua obra


30/12/2022 04:00 - atualizado 29/12/2022 23:42

 Luiza Romão
Luiza Rom�o: leitura de "Il�ada", de Homero, foi inspira��o para livro premiado de poemas (foto: F�bio Audi/DIVULGA��O)

O uso de pedras como instrumentos de autodefesa e resist�ncia. � a partir da explora��o dessas possibilidades concretas e metaf�ricas que a poeta, slammer e atriz Luiza Rom�o constr�i o livro “Tamb�m guardamos pedras aqui” (Editora N�s), que conquistou a principal categoria do Pr�mio Jabuti, de melhor livro de 2022. O volume tamb�m venceu na categoria poesia,  que disputava com obras igualmente potentes: "Palavra preta" (Organismo), de Tatiana Nascimento; "Risque esta palavra" (Cia. das Letras), de Ana Martins Marques; "Extraquadro" (Impress�es de Minas), de Ricardo Aleixo; e "Algo antigo", de Arnaldo Antunes.

Em “Tamb�m guardamos pedras aqui”, Luiza Rom�o retoma um cl�ssico da literatura mundial: a “Il�ada”, de Homero. Ao contemplar a Guerra de Troia, ela tra�a um percurso por temas que tangenciam a representa��o da mulher, a literatura ocidental, e a pr�pria poesia, os feminismos, o poder e a pol�tica. 

Depois da leitura da “Il�ada”, ela ficou atravessada pela constata��o de como a literatura ocidental foi erguida sobre a viol�ncia. “Troia acaba simbolizando tanto lugar de resist�ncia como esses territ�rios e essas cenas todas de viol�ncia colonial que v�o atravessar o s�culo”, disse.

Com a trajet�ria constru�da nos slams e saraus, � na poesia que ela busca o recurso para resistir  a uma ordem de m�ltiplas opress�es. “Tamb�m n�s guardamos pedras. A gente tamb�m tem pedra. De certa forma, a palavra, a poesia, pode ser essa pedra que a gente afia para se defender, para demolir esses momentos e tentar erigir novas hist�rias”, explicou. 

 “Para mim, as pedras s�o as ru�nas. Essa materialidade. As pedras como esses monumentos hist�ricos que est�o l� at� hoje. Esse monumento que, de certa forma, soterra  muitas hist�rias, muitas pessoas, muitas vidas, muitas vozes. As pedras como esse testamento e esses arquivos coloniais dos vencedores”, disse.  

 Com for�a po�tica descomunal, Luiza traz para a escrita a dedica��o � dramaturgia, � poesia e ao feminismo. Assuntos que ela trata, al�m de como foi o processo criativo, nesta entrevista exclusiva concedida ao Pensar.

A 'Il�ada' � o relato de um massacre, � um relato muito violento. Uma narrativa que eu lembro de ler e pensar: 'Gente, como � poss�vel ter tantos verbos de morte

Luiza Rom�o, escritora



O livro surge a partir da sua leitura da “Il�ada”. Gostaria que nos contasse como foi esse processo.
A primeira ideia do livro, a primeira intui��o, foi quando terminei de ler a “Il�ada”, na virada do ano de 2016 para 2017. Lembro que fiquei muito atravessada por algumas quest�es, que apareciam de uma forma at� obl�qua. Ent�o, a quest�o de como a literatura ocidental, de certa forma, vai se fundamentar a partir desse relato, dessa narrativa. Esse � o poema que vai ser a pedra fundamental de uma tradi��o liter�ria que chega no Brasil, na Am�rica Latina, via coloniza��o, e que tamb�m � a pedra fundamental de toda uma forma de se pensar a pol�tica, de se pensar a democracia, de se pensar a est�tica, e no��es de humanidade, desse homem com H mai�sculo. � o relato de um massacre, � um relato muito violento. Uma narrativa que eu lembro de ler e pensar: 'Gente, como � poss�vel ter tantos verbos de morte'. Eu tinha vontade de ler o livro, s� circulando a quantidade de verbos, de a��es, de gestos de infligir dor ao outro e � outra. Eu n�o tinha no��o de que era t�o amplo esse vocabul�rio. Essa foi a primeira impress�o do livro e, n�o � toa, o primeiro poema que eu escrevi do livro,  que � um poema para Homero, parte desse ac�mulo e desse numeramento.

Como esses verbos de morte aparecem no seu livro?
Da forma como o livro est� impresso, tem uma mancha gr�fica. Ent�o, acabei pensando  tamb�m na censura desses verbos. Por um lado, por mais que a gente tente nome�-la, h� algo dessa barb�rie, eu acredito, que a palavra n�o d� conta. Por outro, tamb�m para pensar como essa viol�ncia � gigantesca, muitas vezes, ela � apagada ao longo da hist�ria, seja pela queima de arquivos, seja pelos sigilos impostos, seja pela pr�pria morte de quem poderia contar e narrar essa hist�ria. Coloco a quest�o do desaparecimento dos corpos e tamb�m como que, na Am�rica Latina, a gente tem uma rela��o muito complexa com a mem�ria, seja a mem�ria das ditaduras recentes, seja os arquivos coloniais… temos esses apagamentos, tanto de arquivos como de espa�os. Temos que pensar o que est� em jogo ali na Guerra de Troia. Se fala que � por Helena, essa mulher universal, essa mulher bela mais bela, essa  mulher que nunca existiu na Terra, que vai fundamentar a ideia de beleza, que � muito surreal. Tem essa desculpa, mas, na verdade, o que est� em jogo ali � um acordo comercial. Estamos falando da Turquia. Troia, na verdade, n�o � na Gr�cia, � do outro lado do Mediterr�neo, a gente est� falando de uma zona comercial, de um entreposto que possibilitaria  o com�rcio entre �fricas e Europa.  Ent�o, na verdade, � uma guerra comercial.

Voc� fala que Helena nunca pisou em Troia. Talvez nunca tenha pisado na Terra. � um ideal feminino que foi constru�do?
Exato. A  gente est� falando de uma mitologia. Ent�o, � louco pensar: tem o que � o fato hist�rico da guerra de Troia, tem o que chega e tem diversas leituras. Fui estudar um tanto  dessa parte mais historiogr�fica para escrever o livro, inclusive fui para a Gr�cia. Fiquei l� 20 dias visitando o s�tio arqueol�gico e visitando ru�nas, pesquisando nos museus de arqueologia. Enfim, tentando ler essa hist�ria, l�gico que do ponto de vista dos vencedores, os gregos… eu mesma nunca pisei em Troia. E alguns te�ricos v�o falar que, de fato, Helena nunca pisou em Troia. Isso � uma das leituras poss�veis, ela estaria refugiada em outro lugar. No poema “Cassandra”, trabalho isso, de que a Helena nunca � vista. Ela chega coberta por um pano e, enfim, P�ris, mesmo comentando com Cassandra, fala: “Irm�, voc� nunca percebeu que ela n�o existe. A gente est� lutando por outra coisa”. Ela n�o existe. Ela nunca pisou aqui. Penso que a pr�pria Helena, enquanto ideal de mulher, nunca existiu. Ela emula exatamente essa mulher universal, essa mulher que muitos dos feminismos decoloniais, uma feminilidade que n�o corresponde � maioria dos corpos, � maioria das sexualidades. Eu trabalho bastante com esse jogo. Ela nunca pisou em Troia e qui�� nunca pisou no mundo.

Voc� prop�e uma reflex�o sobre as representa��es do feminino… 
Pensando nessa representa��o da categoria de mulher, tanto a constru�da pelo sexismo, pelo patriarcado, mas tamb�m uma categoria de mulher que, dentro das discuss�es feministas, tem que se tomar cuidado para n�o repor. � um pouco esse gesto que eu penso nesse poema, dessa categoria de mulher universal, que algumas vertentes de um feminismo liberal, muito euroc�ntrico, calcado na biologia, muitas vezes acaba emulando  uma categoria que acaba se tornando muito opressora, pensando a sociabilidade de uma forma.


Eu gostaria que voc� falasse do seu processo criativo.
Em geral, eu demoro muito para sentar e escrever. Sou um pouco de ficar pensando e falando muitos poemas ou anotando versos. A princ�pio, eu tenho uma forma um pouco dispersiva de pensar o processo criativo que me alimenta, e depois quando eu pego para escrever, em geral, o tempo de escrita mesmo � curto, muito concentrado. Tem esse primeiro momento de abrir muitas janelas. E, �s vezes, at� fico meio perdida. Tive essa primeira intui��o sobre esse primeiro despertar para o projeto em 2016. Vou me debru�ar de fato no “Pedras…” em 2019, no segundo semestre, em que Marcelino Freire me acolhe no curso de escrita que ele ministra, que � incr�vel. Para mim, � muito importante. Sou muito uma poeta-aluna. Eu amo estar em curso. Todos os meus livros, de uma forma, passam por uma oficina. No final de 2019, eu terminei a primeira vers�o. Inclusive, ela � quase um zine. Eu recortei as folhas e recortei os poemas, fui colando grampeando a m�o para eu come�ar a pensar essa atmosfera que eu queria, e a quest�o das leituras te�ricas… Meu trabalho � imposs�vel n�o passar por essas leituras te�ricas que, �s vezes, t�m mais a ver ou menos a ver com o projeto. 

Voc� fez essa pesquisa para o “Tamb�m guardamos pedras aqui”?
Fui ler as historiadoras para fazer esse mapeamento do contexto em que eu estava trabalhando, tem essas leituras todas de te�ricas te�ricos decoloniais, feministas, certa teoria pol�tica, os estudos culturais… isso tudo independentemente do projeto, sou algu�m que l� muito. E conforme o livro vai pedindo certa coisa ou vai pedir uma um pouco mais complexidade e profundidade, determinadas discuss�es, eu vou atr�s. Inclusive, h� um debate que eu tento propor, com essa tradi��o escolar no Brasil, que � muito euroc�ntrica e muito calcada na Gr�cia antiga. Eu li quase tudo do Eur�pedes, do S�focles, do �squilo, e a gente n�o l� a literatura latino-americana, por exemplo, ou enfim, de outras partes do mundo. � uma forma��o escolar muito vinculada �s mitologias gregas. De alguma forma, estou remexendo nessas pedras, como esse imagin�rio grego, t�o distante, forma tanto o nosso curr�culo escolar at� hoje estando no Brasil.

A performance sempre passou pelo seu trabalho com uma for�a muito grande. Voc� falou que os poemas nascem desse lugar de atriz. Eles nascem falados, digamos assim?
No caso do Pedras, eu assumo muitas vozes. Tem poemas que a personagem est� falando, a H�cuba. Tem poemas que s�o a voz  de uma certa personagem , que eu posso dar a chave de quem acho que � para mim, mas � uma personagem comentando dos personagens. N�o vou dar a chave, vai depois das pessoas imaginarem quem, mas sempre tem essa figura comentando e, de alguma forma, dialogando com os personagens. Tem vezes que essa figura est� na Gr�cia antiga, �s vezes, ela est� no s�culo 21.  E tem poemas que t�m outra estrutura total.  Ent�o isso para mim at� a cria��o da performance quando a gente vai gravar tamb�m o v�deo poema -  uma parceria minha com o Eug�nio Lima.  N�o era t�o evidente para mim quem era essa figura. E a� na hora que a gente come�ar a declamar os poemas,  eu fico entendo quem era essa figura, a Luiza �pica - poderia se pensar que � a minha voz de poeta. Ao mesmo tempo, atravessado por essa voz da personagem. Ent�o, eu precisava, em algum momento, entender quem � que estava falando os versos, se eles caberiam na minha boca, se � que eles cabem. Poderia pensar como vozes no sentido liter�rio, mas pensar quais s�o essas vozes que est�o ecoando nos poemas. Eug�nio Lima, querido, me deu a chave para o �ltimo poema. Poema que fecha o livro e que a influ�ncia do slam - tanto da Cassandra como da Andr�maca - a influ�ncia do slam est� mais presente.

Voc� estrutura os poemas com os personagens, e faz uma refer�ncia: em "Agamenon", voc� o relaciona a homens poderosos do s�culo 21, o ex-presidente norte-americano Donald Trump, por exemplo.
Agamenon � um d�spota. � muito louco. Eu ia lendo "Il�ada" e ficava pensando assim: 'quem � aquele homem nos dias de hoje?'. Ele n�o faz nada. Eu o detesto. Ele mata a filha. Quem � que mata a filha? Quem mata uma uma jovem de 15 anos? Agora, eu n�o vou lembrar direito o quiproc� da mitologia, mas a Artemis est� furiosa com os gregos e fala: 'Olha, ou voc� sacrifica sua filha de 15 anos para mim, ou voc�s n�o v�o conseguir partir para a guerra’. Ele vai e mata a filha. � essa masculinidade que est� se erigindo  nesse momento. E, depois durante a guerra, ele n�o faz nada. Ele � super autorit�rio. A hist�ria come�a com uma treta entre ele e Aquiles. Voc� tem duas mulheres que que ele saqueiam. Uma mulher que est� numa posi��o de escrava sexual, de despojo de guerra, e pertence a Aquiles, e Agamenon pega ela de Aquiles. Tem cena que est� tudo posto, quest�o das mulheres, essa condi��o de extrema viol�ncia da guerra, e desse homem secretamente grande d�spota. Aquiles fica puto com Agamenon e sai da guerra durante certo tempo. Ele fica afastado da guerra at� Heitor matar, sem querer, P�troclo, que � um amante e amigo de Aquiles. Agamenon, para mim, � essa figura. Al�m de ele ser absolutamente autorit�rio, ele � um homem que mata a filha de 15 anos para ganhar uma guerra. � um violador. Depois ele vai e leva Cassandra para Mecenas.

O Trump…
E a hist�ria vai condenar Clitemnestra, a mulher que vai vingar a filha. A hist�ria do Agamenon est� no "Oresteia", a �nica trilogia tr�gica que chega inclusive at� hoje. O primeiro poema � a morte de Agamenon, ele voltando para Mecenas, Clitemnestra vai assassin�-lo – estive nessa cidade que est� no Peloponeso, uma cidade, inclusive, que, de um lado, tem um mar e, do outro lado, tem as montanhas na cidade alta. Clitemnestra � a primeira personagem feminista da hist�ria. O marido dela vai embora, o cara mata a filha dela, ela vai ficar com o amante, vai governar a cidade estado e mata ele quando ele volta. Ele volta com a Cassandra, que � uma escrava sexual. � tomada de Troia e ele volta com ela exibindo a Cassandra para todo mundo. 

Clitemnestra � uma feminista, ent�o?
 E a �ltima parte da trilogia da "Oresteia" � o julgamento da Clitemnestra. Temos duas for�as: a no��o de Justi�a antiga, que evoca uma certa sociedade matriarcal, pr�-guerra de Troia, as F�rias que tentam defender Clitemnestra. Do outro lado, Orestes, o filho de Clitemnestra, que vai matar a m�e para vingar o pai, junto com  Electra e que eles s�o aconselhados por Atenas. � essa pe�a de teatro que de certa forma vai fundamentar esse essa ideia do direito moderno. Atenas e Orestes vencem, e ele � perdoado por matar a m�e. Ele vai continuar um pouco atormentado, mas, de certa forma, voc� tem em c�mbio dessa no��o de Justi�a a partir inclusive da figura de Atenas,� uma figura feminina, que no poema para Atenas, eu falo ‘voc� nos vendeu a todas e nem pediu recibo’.

Como recebeu a not�cia da premia��o do Jabuti? 
Para mim, foi uma surpresa muito grande. De fato, n�o imaginava que seria premiada nem na categoria de poesia, qui�� na categoria de melhor livro do ano. Muito porque sou muito f� das outras e dos outros poetas que estavam concorrendo na categoria de poesias, todos eles s�o pensadores maravilhosos que eu admiro muito. � interessante pensar no Pr�mio Jabuti, como voc� falou, reconhecendo essas poesias que passam pela performance, n�o s� eu. O Ricardo Aleixo � um poeta que pesquisa muito a palavra performada – o verso, o corpo, o gesto. Tatiana Nascimento tem trabalhos com a palavra po�tica. O Arnaldo Antunes tem todo um trabalho com m�sica, uma palavra tamb�m perfumada e Ana Martins Marques tem livros que passam por uma ideia performativa. � interessante que tem uma poesia que, de certa forma, investiga essas fronteiras da palavra po�tica mais liter�ria tradicional com outras artes, com a performance, a m�sica, o teatro. Estou muito contente de, enfim, compor esse cen�rio de poesia, muito mais amplo do que eu, e que � muito vasto em termos est�ticos e art�sticos tamb�m. No meu caso, n�o existiria Luiza poeta se n�o fossem os slams, se n�o fossem saraus, se n�o fossem todos esses movimentos de poesia falada que tenho muito muito prazer, felicidade de compor. Ent�o, � uma vit�ria do rol� da poesia falada.
Capa do livvro 'Também guardamos pedras aqui'
(foto: Editora N�s/Divulga��o)

Tamb�m guardamos pedras aqui
•  Luiza Rom�o
•  Editora N�s
•  64 p�ginas
•  R$ 54
•  E-book: R$ 37,80


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