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Estado de Minas PENSAR

Ensaios discutem a literatura como instrumento de investiga��o da realidade

Textos reunidos em 'A sociedade dos textos' debatem como textos podem se tornar agentes ativos na configura��o social, pol�tica e cultural do pa�s


17/02/2023 04:00 - atualizado 17/02/2023 00:40

Pedro Nava
O escritor mineiro Pedro Nava � um dos personagens modernistas que t�m seus textos e contextos analisados (foto: Jorge Gontijo/Estado de Minas - 17/12/1976)
Rodrigo Jorge*
Especial para o EM
 
Terminada a leitura de “A sociedade dos textos”, novo livro de Andr� Botelho, Maur�cio Hoelz e Andre Bittencourt, lembrei-me do narrador machadiano do conto “As primas de Sapucaia!”, para quem “tudo depende das circunst�ncias, regra que tanto serve para o estilo como para a vida; palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolu��o; alguns dizem mesmo que assim � que a natureza comp�s as suas esp�cies.” 

A narrativa curta reunida em “Hist�rias sem data”, de 1883, nos sugere, com a ironia t�pica do Bruxo do Cosme Velho, um exerc�cio de imagina��o para sabermos melhor quem seriam essas primas, ou seja, a leitura sobre elas se d� a partir das nossas refer�ncias. E como “palavra puxa palavra”, as refer�ncias seriam n�o apenas resultantes de nossas trajet�rias, mas tamb�m fios que nos ligam a outros caminhos, que talvez um dia se cruzem, ou n�o. 

Os autores de “A sociedade dos textos” lidam com problemas semelhantes ao discutir as rela��es entre os conceitos de “literatura” e “sociedade”. Afinal, quem tem medo da literatura? Vivemos em um tempo de opacidade do conhecimento estimulada pelo volume avassalador de dados e informa��es, tempo de disputas de vers�es dos fatos reconfigurados pela economia de estruturas narrativas, tempo de incita��o ao aniquilamento do outro e de tudo aquilo que desestabilize um sistema de cren�as, tempo de debilidade e urgente reconstru��o das institui��es democr�ticas. Em um tempo como este, a literatura pode dar medo e �, tamb�m por isso, cada vez mais necess�ria.

Por isso, a proposta do livro de ser um “escrito cors�rio”, � maneira de Pier Paolo Pasolini, vem cumprir com um papel fundamental: “Desde a sociologia, contra-atacar a rever�ncia, o a-historicismo e outros obst�culos aos processos criativos de leitura e escrita dos produtores”. O trio de autores � formado por soci�logos de grande destaque no cen�rio intelectual brasileiro. Andr� Botelho e Andre Bittencourt s�o professores da UFRJ; j� Maur�cio Hoelz, da UFRRJ, duas institui��es de relev�ncia incontest�vel no desenvolvimento tecnol�gico e cient�fico nacional.

Atuando, em especial, nos campos da sociologia da cultura e do pensamento social brasileiro, os ensa�stas se ocupam, no livro, de pensar nos textos n�o apenas como fen�meno social, mas tamb�m como instrumentos potenciais de investiga��o sociol�gica da realidade. Ou seja, al�m de produtos da sociedade, as literaturas (no plural, colocando em xeque os rigores disciplinares) podem se tornar, inclusive, suas principais agentes: “Textos s�o for�as sociais reflexivas em rela��o � sociedade que os forja, eles participam de sua constru��o, ajudam a conferir sentido �s a��es, rela��es e processos coletivos e individuais”. Um poema e um romance s�o, portanto, mais do que documentos sociais ou textos de g�neros liter�rios distintos, ajustados a conven��es e exig�ncias espec�ficas. A partir das e contra essas regras, eles reordenam nossa percep��o da realidade e provocam nossos afetos. Mesmo uma leitura despretensiosa pode suspender vis�es supostamente decantadas e ressignificar nossa experi�ncia com o mundo. No entanto, n�o h� qualquer dimens�o messi�nica nesse papel. Nem todo poema salva um afogado, como queria M�rio Quintana. 

Entre as discuss�es te�ricas mobilizadas pelos autores, destacam-se os trabalhos dos soci�logos Anthony Giddens e Niklas Luhmann, que nos auxiliam na compreens�o do papel da literatura, ou das literaturas, na sociedade por meio de conceitos como reflexividade social e sistemas sociais. Uma determinada obra, seja de fic��o ou autobiogr�fica, por exemplo, n�o � apenas um dado da realidade social, mas tamb�m um de seus elementos constitutivos, podendo, inclusive, modificar a trama sobre a qual ela reflete. Assim sendo, os textos s�o os registros das din�micas sociais e os seus dispositivos de “medi��o”, mas podem se tornar tamb�m de controle e de transforma��o. 

“A sociedade dos textos” � composto por 10 ensaios, divididos em duas partes, intituladas “Atrav�s do espelho” e “Bildung e depois”. A primeira � de car�ter mais te�rico-metodol�gico, e a segunda discute os problemas da ideia de forma��o da subjetividade como aprimoramento do indiv�duo. Em todos eles, o movimento modernista surge como principal tem�tica, considerando a sua import�ncia na configura��o social, pol�tica e cultural do pa�s e suas resson�ncias at� os dias atuais. Por isso, o modernismo � abordado aqui a partir do conceito de “movimento cultural”, objeto, ali�s, de ensaio incontorn�vel de Andr� Botelho e Maur�cio Hoelz, publicado em 2022 sob o t�tulo “O Modernismo como movimento cultural: M�rio de Andrade, um aprendizado”. 

M�rio de Andrade, Ronald de Carvalho e Pedro Nava s�o os tr�s personagens modernistas que t�m seus textos e contextos analisados, entre cartas, relatos de viagem, ensaios de cr�tica liter�ria, romances e livros de mem�rias. Al�m desses, os autores tamb�m se det�m em um dos mais importantes int�rpretes do Modernismo e da cultura brasileira, o cr�tico e escritor Silviano Santiago, com seu conceito de “entre-lugar”, suas mem�rias de inf�ncia e suas contribui��es para uma cr�tica da concep��o euroc�ntrica e colonialista da nossa cultura. Tamb�m merece destaque a colabora��o do ensa�sta convidado, Lucas van Hombeeck, mestre e doutorando em sociologia da UFRJ, que traz uma leitura perspicaz do “Poema sujo”, de Ferreira Gullar, como possibilidade de interpreta��o do Brasil. 

Nesse sentido, os ensaios de “A sociedade dos textos” s�o tamb�m cors�rios, lan�ados no alto-mar, ora sereno e l�mpido feito l�mina, ora feroz e tenebroso feito uivo, dos textos e dos contextos sociais que eles singram, n�o como quem busca a seguran�a dos p�s fincados em uma ilha, depois do grito “terra � vista!”, mas, talvez, como quem sabe que, neste pa�s, navegar � preciso. E viver tamb�m. 


*Rodrigo Jorge Ribeiro Neves � professor, cr�tico e doutor em estudos de literatura pela UFF
 
 

“A sociedade dos textos” 

  • Andr� Botelho; Maur�cio Hoelz; e Andre Bittencourt
  • Relic�rio Edi��es
  • 260 p�ginas
  • R$ 59,90
 
 

Entrevista com Andr� Botelho, Maur�cio Hoelz e Andre Bittencourt, autores de “A sociedade dos textos”

 

“O memorialismo mineiro � extremamente instigante”

 
Como um livro de sociologia da literatura, “A sociedade dos textos” lan�a m�o de determinados conceitos das ci�ncias sociais para pensar na rela��o entre a literatura e a sociedade, como o de reflexividade social. Do que ele trata?
O livro trata da rela��o entre literatura e sociedade, o que pode parecer convencional. Entendemos, por�m, que tanto na teoria liter�ria quanto na sociologia, “a” rela��o propriamente dita tem dado lugar a an�lises polarizadoras. Isto �, ora recaindo sobre a literatura, ora sobre a sociedade. Nossa pesquisa mostra, al�m disso, que “sociedade” opera como uma categoria praticamente naturalizada em ambas as abordagens, o que � particularmente complicado no caso da sociologia. Os textos podem nos ajudar a desnaturalizar e assim a qualificar a complexidade do contexto. A ideia de “reflexividade social” permite qualificar justamente o “e” que liga e separa de diferentes formas literatura e sociedade. Ela desloca o velho jogo entre idealismo e materialismo para uma nova vis�o din�mica e contingente de intersec��o entre literatura e sociedade. 

Qual � a import�ncia do Modernismo para compreender os fios entre a sociedade e os textos do Brasil de hoje?  
Se entendido como movimento cultural, o Modernismo nos ajuda a perceber que a cultura � um campo aberto de conflito pelo controle dos significados e afetos a partir dos quais a sociedade aprende, se organiza, (re)produz e modifica suas pr�ticas. Mudan�as demandam mobiliza��o e participa��o cont�nua para disputar cora��es e mentes no cotidiano, a m�dio e longo prazos. O Modernismo alterou as formas b�sicas por meio das quais a sociedade se compreende e que ainda s�o objeto de conflito: n�o s� valorizou o saber subalterno historicamente apagado pelo eurocentrismo das nossas elites, criando di�logos entre erudito e popular, mas tamb�m promoveu uma pol�tica de reconhecimento das multiplicidades da cultura como ponta de lan�a de um projeto plural e inclusivo de na��o. E isso numa sociedade t�o desigual e pouco democr�tica como a brasileira continua atual, central e nada trivial. 


A segunda parte do livro � dedicada a questionar a ideia de forma��o do sujeito na modernidade, a partir do conceito de Bildung. Poderiam falar um pouco mais sobre essa discuss�o?
Embora o tema da Bildung esteja explicitado no t�tulo da segunda parte do livro, ele indica uma preocupa��o mais geral que praticamente atravessa todos os cap�tulos: a forma��o de subjetividades. O ideal da Bildung foi um horizonte importante das elites letradas brasileiras, mas encontrava limites em uma sociedade perif�rica, em tantos sentidos diferente da europeia, a come�ar no que diz respeito � pr�pria forma de conceber o indiv�duo. Ao mesmo tempo, a Bildung tamb�m entrava em crise na Europa do entre-guerras, movimento que ser� capturado pelos nossos autores mais cosmopolitas. 


Quais s�o, ent�o, as formas de experimenta��o da subjetividade que emergem dessas tens�es?
Procuramos estudar a quest�o atrav�s de g�neros textuais muito distintos, tais como como cartas e livros de mem�ria, mas que conformam diferentes exerc�cios de cria��o de subjetividades. O caso do memorialismo mineiro nos � extremamente instigante nesse sentido, pois foi capaz de desenvolver formas muito sofisticadas, quase surpreendentes, de experimenta��o da subjetividade. 
 
 
 

Trechos:

“� certo que M�rio foi mesmo o modernista paulista que mais se ‘nacionalizou’, mas isso n�o significa apenas a expans�o geopol�tica de sua influ�ncia cultural e de pol�tica cultural sobre o diverso territ�rio nacional, mas tamb�m que ele se abriu �s diferen�as regionais e soube aprender com elas, ampliando seu campo de vis�o e seu modo de ver.”
(“A viagem de M�rio de Andrade � Amaz�nia: Entre ra�zes e rotas”)

“A justaposi��o de temporalidades dispersas, dimens�es de significado e relatos, j� o sabemos, � caracter�stica crucial das ‘Mem�rias’ de Pedro Nava, e que as distanciam de forma can�nica do g�nero memorial�stico at� ent�o praticado no Brasil, aproximando sua lite-  ratura do jogo intertextual nosso contempor�neo, t�o marcado por baralhamento de vozes, diversidade, hibridismo, negocia��o de identidades.”
(“A paix�o segundo Pedro Nava”)

“Desconstruir o eurocentrismo tamb�m n�o implica rejeitar ou descartar o pensamento europeu, posto que ele � a um s� tempo indispens�vel e inadequado, como lembram Silviano e Chakrabarty, para nos ajudar a entender as experi�ncias da mo- dernidade em pa�ses n�o ocidentais e perif�ricos. Envolve explorar o modo pelo qual esse pensamento – que agora � heran�a comum e afeta todos n�s – pode ser renovado a partir de e para as margens.”
(“Cosmopol�tica do entre-lugar”) 


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