
Gra�a Ramos
especial para o EM
No pequeno e provocador “Trance: un gloss�rio”, o escritor argentino Alan Pauls pergunta “qual � o limite de uma leitura?”. A d�vida pontua o verbete “abuso” e foi a ele que retornei ap�s reler “A vida descal�o”, livro do autor que acaba de ganhar nova edi��o no Brasil. A interpreta��o de Pauls para a paisagem-experi�ncia chamada praia pode ser classificada, segundo o dicion�rio do autor, como abusiva, no sentido de desestabilizadora.
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Escute-o: “A praia � ao mesmo tempo o que esteve antes e o que veio depois, o princ�pio e o fim, o ainda intacto e o j� arrasado, a promessa e a nostalgia”. Vivida e compreendida como local prop�cio � amplia��o do imagin�rio, em que o tradicional e o comum – o corpo sexualizado, por exemplo – sucumbem a ondas de nega��es, a praia se converte em espa�o para as mais finas especula��es. “Sonha-se muito na praia”, diz a abertura do livro, uma “frase-droga” – outro conceito criado por Pauls – que narcotiza e arrasta o leitor para a imprevis�vel viagem entre a mem�ria afetiva e a hist�ria social e cultural.
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Lan�ado originalmente na Argentina em 2006, na cole��o de ensaios In situ, somente em 2013 o livro foi publicado no Brasil pela extinta CosacNaify, em primorosa edi��o. Retorna agora ao mercado pelo selo Companhia das Letras. A tradu��o � a mesma, feita por Josely Vianna Baptista, profissional que, com maestria, j� verteu v�rios livros de Pauls. Na prova digital, constam as fotografias pessoais do autor presentes nas edi��es anteriores, que, em preto e branco, retratam sua vida de menino na praia.
S�o tra�os dessa inf�ncia que embaralham a narrativa. As reflex�es alternam-se entre a ternura, o humor e a ironia. O movimento transversal e din�mico resulta em livro de g�nero ainda indefinido mesmo tantos anos depois de sua apari��o. A escritora argentina Pola Oloixarac o chamou de ensaio cultural. Em artigo publicado � �poca da primeira edi��o brasileira, a escritora Ana Maria Marques chegou a consider�-lo esp�cie de mini romance de forma��o.
Durante mais de quinze ver�es, portanto, em boa parte da inf�ncia e juventude, o autor frequentou a praia de Villa Gesell, ao sul de Buenos Aires. � a partir dessa experi�ncia que o fio especulativo se tece. Outras paisagens, como as de Cabo Polonio, no Uruguai, e as de Copacabana, no Rio de Janeiro, colaboram para o encadeamento dessa sofisticada fenomenologia da praia. Futebol, pol�tica, m�sica, doen�as, moda, guerras. S�o muitas as quest�es examinadas.
Visitadas pessoalmente, ou apresentadas pelo cinema e pelos livros, as muitas praias de Pauls se tornam apenas uma. A palavra passa a adquirir a dupla fun��o de figura-fundo, a propiciar descobertas que deixar�o tantas marcas quanto as do sol na pele muito branca do narrador. A literatura de Julio Cort�zar e Marcel Proust, o cinema de Fran�ois Ozon e Eric Rohmer, o sabor do sil�ncio e as possibilidades nutritivas da sosinhez. Essas viv�ncias gozosas constituintes da forma��o do escritor se sobrep�em � difundida utopia praiana dos tr�s esses – sol, sal, sexo – ou, como prefere o narrador, �s “mitologias er�ticas”, que ele diz nunca ter subscrito, embora seja um devoto da praia.
Todo o percurso aproxima o livro � forma de um breve romance de forma��o. Mas prefiro v�-lo como um ensaio-d�ptico. Livro dobrado em dois. Um duplo feito com as palavras, os textos verbais que o comp�em, e por aquele tecido pelas imagens fotogr�ficas, que nos apresenta a imagem de outro personagem-menino, quase certo ser o irm�o do autor. Ambos os textos descosem literalidades e projetam incertezas. Lemos no enunciado: “As praias mais puras nunca s�o mais puras que a areia que as constitui”, para em seguida, ser alertados que “a areia pode ser qualquer coisa, menos pura”. E � continua��o surge a po�tica argumenta��o: “Est� repleta de res�duos: restos de rochas, recifes, corais, ossos, conchas, valvas, carac�is, peixes, pl�ncton”.
Enredamentos tamb�m s�o levantadas pelas imagens. Desde a primeira e long�nqua leitura, guardo d�vidas sobre o fio que sai das m�os do menino deliciosamente sentado � beira das ondas: um filete de �gua, o cord�o do short ou risco produzido pela ilumina��o? Na mais recente edi��o, ao ver a fotografia, recordei o pequeno narrador de outro livro do escritor, “Hist�ria do pranto” (2008), sobre a ditadura argentina. O garoto de “A vida descal�o” parece ter alimentado aquela crian�a que n�o testemunhou os terr�veis acontecimentos hist�ricos, por�m muito disse sobre eles. Mais uma vez vejo a obra de Pauls como consistente corpo org�nico. A cada novo t�tulo – romance ou ensaio – vest�gios de narrativas anteriores surpreendem, crescem, � maneira das conchas que se encorpam no esfor�o de aconchegar, ser ref�gio para tantas outras vidas (textos).
Em “A vida descal�o”, com a eleg�ncia de uma escrita autoir�nica, o texto de Pauls desenha exerc�cio reflexivo quase espiralado, mas o discurso enunciado n�o cristaliza ref�gios para certezas. Ao contr�rio, � campo aberto para revolver concep��es at� mesmo de uma leitora nascida em terra de n�ufragos, �s portas do inclemente Delta do Parna�ba, para quem a palavra-paisagem praia permanece arraigada meton�mia de hedonismo.
Montaigne, o pai do ensaio, sabia que nesse g�nero “a fala � metade o que fala e metade o que escuta”. O escritor Jean Starobinski, ensa�sta premiado, demonstrou as dificuldades de definir o ensaio. Segundo ele, dizer ensaio “� ao mesmo que dizer ‘pesagem exigente’, ‘exame atento’, mas tamb�m o ‘enxame verbal cujo impulso liberamos’. De vertente subjetiva, o g�nero, segundo ele, pede que o “ensa�sta” ensaie a si mesmo.
Pauls ensaia-se duas vezes, no texto verbal e no visual. Ao reinventar a crian�a que lhe habita, permite que recriemos a nossa e prop�e novas percep��es para o espa�o chamado praia. As nost�lgicas imagens em p&b tamb�m podem levar leitoras e leitores a reconfigura��es, em especial, sobre a dimens�o temporal. As fotografias exp�em o quanto o menino, ele ou qualquer outro, pode delietar-se entre a areia, o vento e as ondas. Em gozo � maneira da poeta mais apaixonada pelo mar que conhe�o, Sophia de Mello Breyner Andresen, para quem a praia era onde “o tempo apaixonadamente/encontra a pr�pria liberdade”. Ao permitir esse diverso, talvez abusivo, olhar interpretativo, “A vida descal�o” refor�a outra caracter�stica do g�nero ensaio: incita o desejo de r�plica. No caso, o de se contar outra hist�ria da praia.
Gra�a Ramos � doutora em Hist�ria da Arte
Sobre o autor
Nascido em Buenos Aires em 1959, Alan Pauls � escritor, roteirista e cr�tico de cinema. Foi professor de Teoria Liter�ria na Universidade de Buenos Aires, docente visitante em Harvard e fundador da revista Leituras Cr�ticas. Entre seus principais livros se destacam “Wasabi” (1994), “O fator Borges” (2000), a trilogia “Hist�ria do pranto” (2007), “Hist�ria do cabelo” (2010) e “Hist�ria do dinheiro” (2013) e o mais recente, “A metade fantasma” (2021). Seu romance mais conhecido � “O passado”, de 2003, vencedor do pr�mio Herralde, adaptado para o cinema por Hector Babenco e estrelado por Gael Garc�a Bernal.
Pauls vive em Berlim.
“A vida descal�o”
- Alan Pauls
- Tradu��o de Josely Vianna Baptista
- Companhia das Letras
- 104 p�ginas
- R$ 64,90
Resenha/ “A metade fantasma”
Secos e molhados digitais
“A metade fantasma”
- Alan Pauls
- Tradu��o de Josely Vianna Baptista
- Companhia das Letras
- 328 p�ginas
- R$ 89,90