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Estado de Minas PENSAR

'A vida descal�o', de Alan Pauls, ganha nova edi��o no Brasil

Reedi��o de livro lan�ado em 2006 mant�m a mesma tradu��o e se alterna entre mini romance de forma��o e ensaio


24/02/2023 04:00 - atualizado 24/02/2023 00:04

Alan Pauls
Alan Pauls, nascido em Buenos Aires em 1959, atualmente mora em Berlim (foto: Ricardo B Labastier/Divulgacao)

 

Gra�a Ramos

especial para o EM

 

No pequeno e provocador “Trance: un gloss�rio”, o escritor argentino Alan Pauls pergunta “qual � o limite de uma leitura?”. A d�vida pontua o verbete “abuso” e foi a ele que retornei ap�s reler “A vida descal�o”, livro do autor que acaba de ganhar nova edi��o no Brasil. A interpreta��o de Pauls para a paisagem-experi�ncia chamada praia pode ser classificada, segundo o dicion�rio do autor, como abusiva, no sentido de desestabilizadora. 

 
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Escute-o: “A praia � ao mesmo tempo o que esteve antes e o que veio depois, o princ�pio e o fim, o ainda intacto e o j� arrasado, a promessa e a nostalgia”. Vivida e compreendida como local prop�cio � amplia��o do imagin�rio, em que o tradicional e o comum – o corpo sexualizado, por exemplo – sucumbem a ondas de nega��es, a praia se converte em espa�o para as mais finas especula��es. “Sonha-se muito na praia”, diz a abertura do livro, uma “frase-droga” – outro conceito criado por Pauls – que narcotiza e arrasta o leitor para a imprevis�vel viagem entre a mem�ria afetiva e a hist�ria social e cultural. 

 
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Lan�ado originalmente na Argentina em 2006, na cole��o de ensaios In situ, somente em 2013 o livro foi publicado no Brasil pela extinta CosacNaify, em primorosa edi��o. Retorna agora ao mercado pelo selo Companhia das Letras. A tradu��o � a mesma, feita por Josely Vianna Baptista, profissional que, com maestria, j� verteu v�rios livros de Pauls. Na prova digital, constam as fotografias pessoais do autor presentes nas edi��es anteriores, que, em preto e branco, retratam sua vida de menino na praia.

 

S�o tra�os dessa inf�ncia que embaralham a narrativa. As reflex�es alternam-se entre a ternura, o humor e a ironia. O movimento transversal e din�mico resulta em livro de g�nero ainda indefinido mesmo tantos anos depois de sua apari��o. A escritora argentina Pola Oloixarac o chamou de ensaio cultural. Em artigo publicado � �poca da primeira edi��o brasileira, a escritora Ana Maria Marques chegou a consider�-lo esp�cie de mini romance de forma��o.

 

Durante mais de quinze ver�es, portanto, em boa parte da inf�ncia e juventude, o autor frequentou a praia de Villa Gesell, ao sul de Buenos Aires. � a partir dessa experi�ncia que o fio especulativo se tece. Outras paisagens, como as de Cabo Polonio, no Uruguai, e as de Copacabana, no Rio de Janeiro, colaboram para o encadeamento dessa sofisticada fenomenologia da praia. Futebol, pol�tica, m�sica, doen�as, moda, guerras. S�o muitas as quest�es examinadas.  

 

Visitadas pessoalmente, ou apresentadas pelo cinema e pelos livros, as muitas praias de Pauls se tornam apenas uma. A palavra passa a adquirir a dupla fun��o de figura-fundo, a propiciar descobertas que deixar�o tantas marcas quanto as do sol na pele muito branca do narrador. A literatura de Julio Cort�zar e Marcel Proust, o cinema de Fran�ois Ozon e Eric Rohmer, o sabor do sil�ncio e as possibilidades nutritivas da sosinhez. Essas viv�ncias gozosas constituintes da forma��o do escritor se sobrep�em � difundida utopia praiana dos tr�s esses – sol, sal, sexo – ou, como prefere o narrador, �s “mitologias er�ticas”, que ele diz nunca ter subscrito, embora seja um devoto da praia.

 

Todo o percurso aproxima o livro � forma de um breve romance de forma��o. Mas prefiro v�-lo como um ensaio-d�ptico. Livro dobrado em dois. Um duplo feito com as palavras, os textos verbais que o comp�em, e por aquele tecido pelas imagens fotogr�ficas, que nos apresenta a imagem de outro personagem-menino, quase certo ser o irm�o do autor. Ambos os textos descosem literalidades e projetam incertezas. Lemos no enunciado: “As praias mais puras nunca s�o mais puras que a areia que as constitui”, para em seguida, ser alertados que “a areia pode ser qualquer coisa, menos pura”. E � continua��o surge a po�tica argumenta��o: “Est� repleta de res�duos: restos de rochas, recifes, corais, ossos, conchas, valvas, carac�is, peixes, pl�ncton”.

 

Enredamentos tamb�m s�o levantadas pelas imagens. Desde a primeira e long�nqua leitura, guardo d�vidas sobre o fio que sai das m�os do menino deliciosamente sentado � beira das ondas: um filete de �gua, o cord�o do short ou risco produzido pela ilumina��o? Na mais recente edi��o, ao ver a fotografia, recordei o pequeno narrador de outro livro do escritor, “Hist�ria do pranto” (2008), sobre a ditadura argentina. O garoto de “A vida descal�o” parece ter alimentado aquela crian�a que n�o testemunhou os terr�veis acontecimentos hist�ricos, por�m muito disse sobre eles. Mais uma vez vejo a obra de Pauls como consistente corpo org�nico. A cada novo t�tulo – romance ou ensaio – vest�gios de narrativas anteriores surpreendem, crescem, � maneira das conchas que se encorpam no esfor�o de aconchegar, ser ref�gio para tantas outras vidas (textos).

 

Em “A vida descal�o”, com a eleg�ncia de uma escrita autoir�nica, o texto de Pauls desenha exerc�cio reflexivo quase espiralado, mas o discurso enunciado n�o cristaliza ref�gios para certezas. Ao contr�rio, � campo aberto para revolver concep��es at� mesmo de uma leitora nascida em terra de n�ufragos, �s portas do inclemente Delta do Parna�ba, para quem a palavra-paisagem praia permanece arraigada meton�mia de hedonismo. 

 

Montaigne, o pai do ensaio, sabia que nesse g�nero “a fala � metade o que fala e metade o que escuta”. O escritor Jean Starobinski, ensa�sta premiado, demonstrou as dificuldades de definir o ensaio. Segundo ele, dizer ensaio “� ao mesmo que dizer ‘pesagem exigente’, ‘exame atento’, mas tamb�m o ‘enxame verbal cujo impulso liberamos’. De vertente subjetiva, o g�nero, segundo ele, pede que o “ensa�sta” ensaie a si mesmo. 

 

Pauls ensaia-se duas vezes, no texto verbal e no visual. Ao reinventar a crian�a que lhe habita, permite que recriemos a nossa e prop�e novas percep��es para o espa�o chamado praia. As nost�lgicas imagens em p&b tamb�m podem levar leitoras e leitores a reconfigura��es, em especial, sobre a dimens�o temporal. As fotografias exp�em o quanto o menino, ele ou qualquer outro, pode delietar-se entre a areia, o vento e as ondas. Em gozo � maneira da poeta mais apaixonada pelo mar que conhe�o, Sophia de Mello Breyner Andresen, para quem a praia era onde “o tempo apaixonadamente/encontra a pr�pria liberdade”. Ao permitir esse diverso, talvez abusivo, olhar interpretativo, “A vida descal�o” refor�a outra caracter�stica do g�nero ensaio: incita o desejo de r�plica. No caso, o de se contar outra hist�ria da praia.

 

Gra�a Ramos � doutora em Hist�ria da Arte

 

Sobre o autor

 

Nascido em Buenos Aires em 1959, Alan Pauls � escritor, roteirista e cr�tico de cinema. Foi professor de Teoria Liter�ria na Universidade de Buenos Aires, docente visitante em Harvard e fundador da revista Leituras Cr�ticas. Entre seus principais livros se destacam “Wasabi” (1994), “O fator Borges” (2000), a trilogia “Hist�ria do pranto” (2007), “Hist�ria do cabelo” (2010) e “Hist�ria do dinheiro” (2013) e o mais recente, “A metade fantasma” (2021). Seu romance mais conhecido � “O passado”, de 2003, vencedor do pr�mio Herralde, adaptado para o cinema por Hector Babenco e estrelado por Gael Garc�a Bernal. 

Pauls vive em Berlim.

 

“A vida descal�o”

 

  • Alan Pauls
  • Tradu��o de Josely Vianna Baptista
  • Companhia das Letras
  • 104 p�ginas
  • R$ 64,90 
 

Resenha/ “A metade fantasma”
Secos e molhados digitais

 

 

S�rgio de S�

 

especial para o EM
 

 

“A metade fantasma”, de Alan Pauls, conta a hist�ria de um homem de meia idade, Savoy, que se debate para sobreviver em meio � tempestade contempor�nea de tecnologia. Para isso, o autor argentino separa a vida do protagonista em partes enfatizadas (e enfeiti�adas) por h�bitos compulsivos. Ainda em modo, digamos, anal�gico, Savoy se dedica inicialmente a visitar apartamentos anunciados para alugar. Mas ele cumpre os p�riplos por Buenos Aires apenas para bisbilhotar. N�o pretende locar nada. Embalados pela frase t�o tortuosa quanto limpa de Pauls, adentramos a vida alheia e seus detalhes.

Na segunda parte, Savoy passa a comprar produtos pela internet, dando in�cio a novo mergulho pessoal. Com uma diferen�a extempor�nea e crucial: vai buscar os produtos pessoalmente. Mais uma vez, recorre � presen�a, � necessidade transitiva e intransitiva de estar com. A literatura de Pauls mant�m o leitor agarrado na experi�ncia de mobilidade, em longas senten�as l�cidas. 

O livro, ent�o, volta-se � hist�ria de amor entre Savoy e Carla, uma n�made globalizada que se dedica a tomar conta de lares enquanto seus moradores est�o em viagem. A personagem feminina quase imaterial � a metade quim�rica do t�tulo da obra, uma mostra de como o discurso amoroso tenta se adaptar �s tramas de contatos por telas e redes. 

Um dos segredos da fic��o de Alan Pauls est� numa atualiza��o sofisticad�ssima de um mecanismo t�pico de Manuel Puig, a imita��o proposital de processos de meios de comunica��o, aliada a uma leitura semiol�gica da realidade que nunca abandona a liberdade do ensaio cr�tico. As resson�ncias devotas de Roland Barthes aparecem.

Ao comentar “El col�quio” – de 1990, nunca publicado aqui –, Beatriz Sarlo lembrou o contraste que Hannah Arendt estabelece entre o que permanece e o que desaparece. A arte seria aquilo que fica ou finca, justamente porque n�o tem qualquer “fun��o”. O objeto que se permite ser “consumido” (n�o dura, portanto) pertence a outro campo est�tico. 

Assim, a cr�tica chama o segundo romance do autor de “relato tragic�mico inconsum�vel”. E essa parece ser uma vontade permanente de Alan Pauls que se repete agora: manter-se no tempo por meio de uma narrativa de dif�cil absor��o que, ao mesmo tempo, n�o se furta a olhar para o �bvio ao redor, pelo contr�rio. 

O aprendizado de prazer no texto do escritor argentino est� no encontro lento entre autor e leitor dado por infinitas camadas liter�rias, que fazem da leitura uma experi�ncia entre a vida superficial l� fora (inclusive nas telas) e a vida poss�vel dentro de uma sintaxe elegante e densa.  

Em “A metade fantasma”, h� um retorno sintom�tico e curioso ao primeiro romance de Pauls, “O pudor do porn�grafo”, de 1984. O meio de comunica��o ali eram as cartas. O bombardeio de informa��es j� estava dado com a ind�stria cultural e os meios de massa. Era necess�ria uma rea��o liter�ria.

Ap�s a estreia e o segundo volume, vieram “Wasabi” (1994) e “O passado”, que ganhou o Pr�mio Herralde em 2003 e virou filme dirigido por Hector Babenco. Depois, a trilogia dedicada aos anos 1970: “Hist�ria do pranto” (2007), “Hist�ria do cabelo” (2010) e “Hist�ria do dinheiro” (2013). Publicado em 2021 na Argentina e ano passado no Brasil, o recente romance vem � tona ap�s hiato de oito anos.

A obra acontece entre perspectivas humanas e rob�ticas, aus�ncias e contatos, sil�ncios e dizeres. Ocorre entre a secura de aparelhos (tomada, bateria, energia) e a delicadeza molhada dos toques humanos. A piscina e o ato de nadar aparecem de modo recorrente, como a comunicar ao leitor a import�ncia de prestar aten��o em tudo, para n�o se afogar. “A metade fantasma” � uma leitura de alerta. 

Mesmo na monotonia dos ladrilhos existe diferen�a. O cloro excessivo faz mal � sa�de. Os �culos de nata��o permitem ver, mas tamb�m distorcem. O tipo de sunga afeta o desempenho ao deslizar. O humor do dia, idem, pode estragar o relaxamento. Os companheiros de raia devem manter-se em estado de civiliza��o para que pernadas e bra�adas se prolonguem sem esbarr�es. 

A �gua turva ou esclarece a vida. Pode chover dentro da imagina��o digital. Nas p�ginas finais, a piscina portenha vira lago na Alemanha. Outra paisagem, outra l�ngua, e o mesmo estranhamento de Savoy sobre a amada que sempre lhe escapa mundo afora. E n�o escutar com efetividade o que o outro tem de fato a dizer � falta grave na arte da perman�ncia da paix�o e do amor: pode por tudo a perder.

S�rgio de S� � doutor em Estudos Liter�rios pela UFMG e professor de Jornalismo na UnB. 

 

 
 

 

“A metade fantasma”

  • Alan Pauls
  • Tradu��o de Josely Vianna Baptista
  • Companhia das Letras
  • 328 p�ginas
  • R$ 89,90

 

 

 


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