S�rgio de S�
especial para o EM
“A metade fantasma”, de Alan Pauls, conta a hist�ria de um homem de meia idade, Savoy, que se debate para sobreviver em meio � tempestade contempor�nea de tecnologia. Para isso, o autor argentino separa a vida do protagonista em partes enfatizadas (e enfeiti�adas) por h�bitos compulsivos. Ainda em modo, digamos, anal�gico, Savoy se dedica inicialmente a visitar apartamentos anunciados para alugar. Mas ele cumpre os p�riplos por Buenos Aires apenas para bisbilhotar. N�o pretende locar nada. Embalados pela frase t�o tortuosa quanto limpa de Pauls, adentramos a vida alheia e seus detalhes.
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Na segunda parte, Savoy passa a comprar produtos pela internet, dando in�cio a novo mergulho pessoal. Com uma diferen�a extempor�nea e crucial: vai buscar os produtos pessoalmente. Mais uma vez, recorre � presen�a, � necessidade transitiva e intransitiva de estar com. A literatura de Pauls mant�m o leitor agarrado na experi�ncia de mobilidade, em longas senten�as l�cidas.
O livro, ent�o, volta-se � hist�ria de amor entre Savoy e Carla, uma n�made globalizada que se dedica a tomar conta de lares enquanto seus moradores est�o em viagem. A personagem feminina quase imaterial � a metade quim�rica do t�tulo da obra, uma mostra de como o discurso amoroso tenta se adaptar �s tramas de contatos por telas e redes.
Um dos segredos da fic��o de Alan Pauls est� numa atualiza��o sofisticad�ssima de um mecanismo t�pico de Manuel Puig, a imita��o proposital de processos de meios de comunica��o, aliada a uma leitura semiol�gica da realidade que nunca abandona a liberdade do ensaio cr�tico. As resson�ncias devotas de Roland Barthes aparecem.
Ao comentar “El col�quio” – de 1990, nunca publicado aqui –, Beatriz Sarlo lembrou o contraste que Hannah Arendt estabelece entre o que permanece e o que desaparece. A arte seria aquilo que fica ou finca, justamente porque n�o tem qualquer “fun��o”. O objeto que se permite ser “consumido” (n�o dura, portanto) pertence a outro campo est�tico.
Assim, a cr�tica chama o segundo romance do autor de “relato tragic�mico inconsum�vel”. E essa parece ser uma vontade permanente de Alan Pauls que se repete agora: manter-se no tempo por meio de uma narrativa de dif�cil absor��o que, ao mesmo tempo, n�o se furta a olhar para o �bvio ao redor, pelo contr�rio.
O aprendizado de prazer no texto do escritor argentino est� no encontro lento entre autor e leitor dado por infinitas camadas liter�rias, que fazem da leitura uma experi�ncia entre a vida superficial l� fora (inclusive nas telas) e a vida poss�vel dentro de uma sintaxe elegante e densa.
Em “A metade fantasma”, h� um retorno sintom�tico e curioso ao primeiro romance de Pauls, “O pudor do porn�grafo”, de 1984. O meio de comunica��o ali eram as cartas. O bombardeio de informa��es j� estava dado com a ind�stria cultural e os meios de massa. Era necess�ria uma rea��o liter�ria.
Ap�s a estreia e o segundo volume, vieram “Wasabi” (1994) e “O passado”, que ganhou o Pr�mio Herralde em 2003 e virou filme dirigido por Hector Babenco. Depois, a trilogia dedicada aos anos 1970: “Hist�ria do pranto” (2007), “Hist�ria do cabelo” (2010) e “Hist�ria do dinheiro” (2013). Publicado em 2021 na Argentina e ano passado no Brasil, o recente romance vem � tona ap�s hiato de oito anos.
A obra acontece entre perspectivas humanas e rob�ticas, aus�ncias e contatos, sil�ncios e dizeres. Ocorre entre a secura de aparelhos (tomada, bateria, energia) e a delicadeza molhada dos toques humanos. A piscina e o ato de nadar aparecem de modo recorrente, como a comunicar ao leitor a import�ncia de prestar aten��o em tudo, para n�o se afogar. “A metade fantasma” � uma leitura de alerta.
Mesmo na monotonia dos ladrilhos existe diferen�a. O cloro excessivo faz mal � sa�de. Os �culos de nata��o permitem ver, mas tamb�m distorcem. O tipo de sunga afeta o desempenho ao deslizar. O humor do dia, idem, pode estragar o relaxamento. Os companheiros de raia devem manter-se em estado de civiliza��o para que pernadas e bra�adas se prolonguem sem esbarr�es.
A �gua turva ou esclarece a vida. Pode chover dentro da imagina��o digital. Nas p�ginas finais, a piscina portenha vira lago na Alemanha. Outra paisagem, outra l�ngua, e o mesmo estranhamento de Savoy sobre a amada que sempre lhe escapa mundo afora. E n�o escutar com efetividade o que o outro tem de fato a dizer � falta grave na arte da perman�ncia da paix�o e do amor: pode por tudo a perder.
S�rgio de S� � doutor em Estudos Liter�rios pela UFMG e professor de Jornalismo na UnB.
“A metade fantasma”
- Alan Pauls
- Tradu��o de Josely Vianna Baptista
- Companhia das Letras
- 328 p�ginas
- R$ 89,90