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Estado de Minas PENSAR

Escritor ga�cho Jos� Falero participa do relan�amento de 'Vila Sapo' em BH

Primeiro livro do autor ganha nova edi��o e traz sete contos de um Brasil real, repleto de oralidade e g�rias, com personagens que vivem em comunidade miser�vel


17/03/2023 04:00 - atualizado 16/03/2023 23:14

Falero
Falero: "As pessoas querem comentar como meus textos costumam incluir figuras omitidas ou mal-representadas na literatura" (foto: GLADYSTON RODRIGUES/EM/D.A.PRESS)

 

Uma voz para os exclu�dos da literatura, para os exclu�dos da sociedade pelo preconceito social e racial. � o que representam as obras do escritor ga�cho Jos� Falero, que lan�a nesta sexta-feira (17/3), em BH, seu livro “Vila Sapo”. Publicado originalmente em 2019 pela editora Venas Abiertas, � o primeiro livro do autor e volta agora ao mercado pela editora Todavia, que j� lan�ou seus dois seguintes – o romance “Os supridores” (2020) – finalista do pr�mio Jabuti, o principal da literatura brasileira – e as cr�nicas “Mas em que mundo tu vive?” (2021).

“Vila Sapo” cont�m sete contos repletos de oralidade e g�rias – t� ligado? – sem obriga��o com a l�ngua culta, um grito de outro Brasil real ainda ignorado na literatura brasileira em geral. S�o personagens pobres, pretos, trabalhadores, m�es, adolescentes, criminosos... de uma comunidade de Porto Alegre, uma reprodu��o das periferias pa�s afora, pessoas que, independentemente de ju�zo de valor ou da legalidade, tamb�m querem ser felizes e desfrutar os prazeres da vida, mas esbarram na barreira da discrimina��o.

 

“Os supridores” apresenta o cotidiano de Pedro, morador da periferia que trabalha num supermercado como supridor (repositor de mercadorias) explorado e oprimido pelo patr�o. Sem ter como sobreviver financeiramente, ele convence o amigo Marques a come�ar a vender maconha para ganhar muito dinheiro e melhorar de vida, enfrentando as arriscadas consequ�ncias dessa atividade. No fim das contas, ambos querem aproveitar os prazeres da vida, mesmo que para isso tenham que cair na criminalidade.

 

“Mas em que mundo tu vive” re�ne 58 cr�nicas, em que, mais uma vez, Falero escancara o Brasil “invis�vel” da periferia que come�a a ser reproduzido em “Vila Sapo”. Na cr�nica que d� nome e abre a obra, o protagonista, desempregado, vai trabalhar numa obra, servi�o bra�al pesado, para substituir o primo, que se sentia explorado e largou o emprego, depois que foi reclamar das condi��es de trabalho e ouviu do patr�o: “Mas em que mundo tu vive”. Ou seja, essa � a realidade, queria tratamento digno? Nesse terceiro livro, outro personagem desabafa em uma das cr�nicas: “Este pa�s sempre foi assim, rachado em dois, dividido entre os que chamam a pol�cia e os que fogem da pol�cia”. Ele conta como foi tratado in�meras vezes como “suspeito” pela pol�cia. N�o por ter cometido crimes, mas por causa de sua cor e sua origem.

 

Em “Vila Sapo”, a pol�cia � onipresente com seu “cheiro de morte”, como no conto “Atot�”: “Nada tem mais cheiro de morte do que os porco [pol�cia], ainda mais numa situa��o que nem aquela que n�s tava. Imagina: madrugada, favela, tr�s preto na rua, um deles espiando uma baia [na porta de vidro da vizinha], nenhuma testemunha para desmentir qualquer hist�ria que os porco inventasse depois. Porra, cheiro forte de morte!”

 

O medo, a desconfian�a alheia, principalmente da pol�cia, e o preconceito s�o rotina na vida dos personagens semiautobiogr�ficos de Falero, que sabe o que est� falando porque vivenciou tudo isso em sua comunidade em Porto Alegre. Essa experi�ncia e o talento liter�rio do autor culminam numa obra que tira ironia, humor e lirismo de uma dura realidade. No conto “Ot�rio com sorte”, por exemplo, est�o definidos com todas as letras os sentimentos de rejei��o e resigna��o: “O bonde t� vazio. Eu sento l� na cozinha, bem no meio. O cobrador me olha de tempos em tempos, pra ver se eu ainda n�o tirei uma pistola da cintura. Eu entendo ele. N�o condeno ele. � s�bado, t� tudo morto, n�o se v� pol�cia em lugar nenhum, eu subi na 12 do Pinheiro e n�o existe nenhuma diferen�a entre a maneira como eu me visto e maneira como se veste um ladr�o. Um ladr�o ou um traficante: � s� escolher. Eu s� n�o roubo nem trafico; tirando esses pequenos detalhes, eu sou um ladr�o ou um traficante. Eu entendo o cobrador, que n�o para de me olhar; eu entendo a pol�cia, que vive me dando pared�o; eu entendo as madames, que atravessam a rua bem ligeiro quando botam os olhos em mim”.

 

E para ilustrar a oralidade e a indigna��o em suas obras, Falero e seus personagens t�m sempre na ponta da l�ngua a trilha sonora dos seus desabafos: o rap do Racionais MC's, liderado por Mano Brown, j� citado na terceira linha do primeiro conto de “Vila Sapo” com o disco “Sobrevivendo no inferno”. E vai uma pala: “Cada lugar uma lei, eu t� ligado/No extremo sul da zona sul t� tudo errado/Aqui vale muito pouco a sua vida/Nossa lei � falha, violenta e suicida/Se diz que me diz que n�o se revela/Par�grafo primeiro na lei da favela/Assustador � quando se descobre/Que tudo deu em nada, e que s� morre o pobre/A gente vive se matando irm�o, por qu�?/N�o me olhe assim, eu sou igual a voc�/Descanse o seu gatilho, descanse o seu gatilho/Entre no trem da malandragem, o meu rap � o trilho”.

 

ENTREVISTA / JOS� FALERO                               
“Eu n�o sou um lobo solit�rio”

 

“Vila Sapo”, “Os supridores” e “Mas em que mundo tudo vive?”. Com linguagem bem peculiar, os seus tr�s livros rompem com o elitismo e o racismo na literatura brasileira, d�o voz � periferia, a pobres, pretos e tamb�m a criminosos. Sem ju�zo de valor ou de lei, todos querem ser felizes e curtir a vida como qualquer pessoa. Voc� tem algum retorno dos leitores e do mercado editorial em geral em torno dessa import�ncia em suas obras? 

Eu recebo muitos feedbacks, de variados tipos, sobretudo dos leitores. E a maioria desses feedbacks gira em torno justamente disso. Todos os dias pelo menos uma d�zia de pessoas entra em contato comigo nas redes sociais, e quase sempre elas querem comentar sobre como os meus textos costumam incluir figuras tradicionalmente omitidas ou mal representadas na literatura brasileira. Eu fico muito feliz, tomo isso como um elogio, mas fa�o sempre quest�o de lembrar que esses aspectos do meu trabalho n�o s�o exatamente virtudes minhas. Para in�cio de conversa, eu n�o sou um lobo solit�rio: h� todo um movimento de escritores contempor�neos cujas produ��es contribuem para a diversifica��o dos discursos, para a diversifica��o das tem�ticas, para a diversifica��o das elabora��es est�ticas, enfim, para tornar a literatura brasileira como um todo mais diversa e, por isso, melhor. E eu tenho certeza que o meu trabalho � fortemente influenciado por esse movimento, por esses escritores, por esse contexto hist�rico da literatura brasileira; em outras palavras, muito do que as pessoas enxergam como virtudes do meu trabalho em particular s�o, na verdade, virtudes coletivas, compartilhadas entre muitos dos escritores deste tempo. E �s vezes acontece, inclusive, de essas virtudes coletivas serem compartilhadas n�o apenas por escritores contempor�neos, mas tamb�m por pessoas que nem sequer escrevem ou leem. � o que sinto quando algu�m elogia aspectos da oralidade, que com frequ�ncia eu tento trabalhar nos meus textos. Uma das coisas que j� me disseram, por exemplo, � que “a linguagem dos personagens � muito inteligente, expressiva, divertida”, e me disseram isso como se eu tivesse inventado aquela linguagem. Bom, n�o inventei. Aquela linguagem, de fato inteligente, expressiva e divertida, � compartilhada por toda a minha comunidade, por todas as pessoas que t�m a mesma origem e experi�ncia social que eu, portanto n�o seria justo que eu recebesse o cr�dito sozinho. E, da mesma forma que eu me sinto influenciado e estimulado por toda essa gente, entre escritores e n�o escritores, gosto de pensar que talvez o meu trabalho tamb�m contribua nesse sentido, influenciando e estimulando outros escritores ou mesmo pessoas que n�o s�o do mundo liter�rio.

 

No conto “Rosa-Beb�”, o mais tr�gico de “Vila Sapo”, o protagonista reflete: “A tecnologia � como uma atleta jovem e incans�vel correndo livre e desimpedida, sem parar, numa maratona sem fim, indo cada vez mais longe sob vigorosos aplausos e gritos e incentivo. A humanidade, coitada, n�o passa de uma senhora aposentada e enferma da qual ningu�m mais quer saber (…) que ningu�m em s� consci�ncia apostaria que possa chegar viva at� a pr�xima esquina”. Como consequ�ncia dessa contradi��o, o avan�o da tecnologia agrava mais ainda o abismo da injusti�a social e racial? Joga por terra o mito de quando surgiu a internet, de que ela democratizaria a sociedade?

Tem uma passagem de Baden-Baden sobre o “Acordo”, pe�a did�tica do Brecht, que eu gosto muito. � mais ou menos assim: 

 

“— Um de n�s atravessou o mar e descobriu um novo continente, mas muitos depois dele. L� constru�ram grandes cidades com muito esfor�o e intelig�ncia. — Nem por isso o p�o ficou mais barato. — Um de n�s construiu uma m�quina cujo vapor aciona uma roda, e essa foi a m�e de muitas outras m�quinas. — Nem por isso o p�o ficou mais barato. — Muitos de n�s meditaram sobre o movimento da Terra ao redor do Sol, sobre o mais �ntimo do homem, as leis gerais, a composi��o do ar e sobre os peixes abissais. E descobriram grandes coisas. — Nem por isso o p�o ficou mais barato. Pelo contr�rio, a mis�ria aumentou em nossas cidades, e j� h� muito tempo ningu�m sabe o que � um homem. Por exemplo: enquanto voc�s voavam, rastejava pelo ch�o algo semelhante a voc�s, n�o como um homem! — Ent�o o homem n�o ajuda o homem? — N�o!” 

 

Eu gosto muito dessa passagem porque explica bem o nosso problema, ou pelo menos assim me parece: as diretrizes da nossa sociedade n�o t�m interesse no desenvolvimento humanit�rio; esse interesse simplesmente n�o est� no DNA da nossa sociedade, tal como se originou, se imp�s, se estabeleceu e se desenvolveu. Isso significa que nada do que venha a ser inventado numa sociedade como a nossa ter� como efeito principal algum tipo de desenvolvimento humanit�rio, ainda que certos efeitos colaterais possam eventualmente sugerir o contr�rio. As redes sociais foram (mais um) exemplo disso. Se por um lado � poss�vel alegar uma consequ�ncia positiva das redes sociais aqui e outra ali, por outro lado n�o podemos esquecer as consequ�ncias negativas, que me parecem muito mais numerosas e mais significativas. Isso me lembra uma coisa. Certa vez algu�m fez uma foto hist�rica em Cuba: retratava um conjunto de jovens espantados ao redor de um dos primeiros aparelhos a funcionar com wi-fI na ilha, numa �poca em que todo o resto do mundo j� estava plenamente familiarizado com aquele tipo tecnologia. Vi essa foto num programa de televis�o, e os participantes do programa, incluindo o apresentador, comentaram sobre como consideravam aquilo uma tristeza, isto �, como consideravam triste que aquelas pessoas de Cuba estivessem acessando com tanto atraso um equipamento daquele tipo. Mas j� naquele tempo Cuba havia democratizado totalmente a sa�de e a educa��o. J� naquele tempo n�o havia uma �nica pessoa vivendo na rua ou morrendo de fome em Cuba. Enfim. Uma sociedade precisa saber o que quer. Precisa estabelecer prioridades. E receio que as prioridades da nossa sociedade n�o sejam as melhores.

 

Uma �tima e divertida surpresa em “Vila Sapo” � a pegadinha [sem spoiler aqui] no conto “Aconteceu amor”, com a hist�ria do garoto que vai buscar camisinha de gra�a no posto de sa�de para se encontrar com uma garota e � expulso pelo seguran�a. “Eu tinha prometido pra Marcinha que ia dar um jeito de arranjar as camisinhas”. Mas, no fim, n�o era o que o leitor tinha pensado. A brincadeira com preservativos e esse primeiro beijo juvenil s�o autobiogr�ficos?

O beijo n�o � autobiogr�fico, mas a brincadeira sim. Onde eu moro, era muito comum as crian�as fazerem esse tipo de brincadeira. E se fosse s� com �gua, as v�timas estavam no lucro. 

 

 

“vila Sapo”

 

  • Jos� Falero
  • Editora Todavia
  • 78 p�ginas
  • R$ 49,90 (impresso) 
  • R$ 34,90 (digital)
  • Lan�amento: nesta sexta-feira (17/3), �s 19h, na livraria do Cine Belas Artes (Rua Gon�alves Dias, 1.581, Lourdes, Belo Horizonte), com roda de conversa com o autor, seguida por aut�grafos 

 


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