Em 'As primas', Aurora Venturini relata brutais hist�rias familiares
Romance de estreia da escritora argentina foi lan�ado quando ela tinha 85 anos, em 2007, e finalmente ganha vers�o em portugu�s
24/03/2023 04:00
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atualizado 24/03/2023 10:42
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Nascida em La Plata, Aurora Venturini estreou oficialmente na literatura somente aos 85 anos (foto: F�sforo/Divulga��o)
Stefania Chiarelli *
Especial para o EM
De origem latina, idem significa o mesmo, da mesma forma, igualmente. � palavra recorrente em “As primas”, de Aurora Venturini: sempre entre par�nteses, o voc�bulo surge como uma esp�cie de mote, a indicar as sucessivas tentativas e fracassos da protagonista de relatar sua hist�ria e dar conta das situa��es bizarras que lhe sucedem. No romance, acompanhamos o mon�logo de Yuna Riglos, jovem de origem humilde na La Plata, Argentina, no in�cio dos anos 1940.
Sua fam�lia est� marcada por casamentos consangu�neos, defici�ncias e limita��es f�sicas de toda ordem: nela convivem a m�e, uma simples professora da escola local, a irm� Betina, presa a uma cadeira de rodas, e Nen�, tia virgem, apesar de separada e rodeada de pretendentes. A esse n�cleo se soma tia Ingrazia, que vive com o marido (e primo) Danielito, pais de Carina, jovem com seis dedos, e sua irm� Petra, uma an� que desde a adolesc�ncia se prostitui com homens da cidade.
“Minha fam�lia era muito monstruosa. � o que conhe�o”, declarou a autora em entrevista sobre a pr�pria obra, desde sempre povoada por tipos estranhos e deslocados. Em “As primas”, Venturini recupera passagens biogr�ficas de sua inf�ncia na prov�ncia argentina. Sem meias palavras, em tom muitas vezes debochado, relata um universo frequentado por gente esquisita, a come�ar por si mesma. Ciente de sua limitada capacidade cognitiva, Yuna � dotada de extrema sensibilidade, pintando desde crian�a toda sorte de pap�is e papel�es que cruzam seu caminho. Neles, conta as brutais hist�rias familiares - um “circo extravagante” - com tinta e pincel. Por suas cria��es, passa a obter reconhecimento, e aos 18 anos consegue vender alguns quadros, com o apoio de um professor que a convence a estudar belas-artes e se interessa desde o in�cio pelos trabalhos.
Uma das incont�veis belezas do romance se situa na proposital confus�o entre polos, que alternam sem transi��o dor e gl�ria, riso e l�grima. Yuna retrata em min�cias as defici�ncias da irm�, olhando sem medo a fisicalidade dos corpos. Sangue, tripas e excrementos est�o por toda parte nessa tragicom�dia. Dirigindo-se ao leitor, explicita na escrita a grande dificuldade de express�o que enfrenta, causando sensa��o de vertigem na leitura de um texto quase desprovido de pontua��o:Vou tratar de aprender e p�r v�rgulas e pontos porque tudo o que escrevo desmorona como se virasse em cima de mim um prato cheio de macarr�o sopa de letrinhas e talvez o leitor sinta o mesmo mas n�o dou conta de tudo de uma vez e tamb�m tenho que aprender a quest�o das mai�sculas e acentua��es eu terminei o sexto ano e gra�as � minha capacidade art�stica agora frequento concertos, reuni�es de artistas e j� ganhei v�rios pr�mios de pintura.
A cada tanto, explica que o uso de determinada palavra � decorr�ncia da consulta ao dicion�rio, espa�o em que colhe avidamente os sentidos que lhe escapam. Uma coisa � se expressar com o l�xico da oralidade; outra, domesticar a linguagem por escrito. Yuna se espanta por n�o saber o sentido dos “voc�bulos finos” e se lan�a de peito aberto na tentativa de transmutar em texto as palavras faladas que lhe saltam da boca. O resultado � uma saborosa mistura entre os dois registros. Como sustenta a escritora Mariana Enriquez no pref�cio da edi��o brasileira, ela escreve “contra a linguagem, contra as conven��es da escrita, com o que lhe resta de uma oralidade prec�ria”.
Dominar as palavras caminha em paralelo ao of�cio de pintar, modo de reagir a tudo que a sufoca. Assim como a narradora, buscamos f�lego para respirar dentro dessa sensa��o de quase claustrofobia, que em tudo se relaciona ao of�cio de narrar a casa monstruosa em que os genes “desengon�ados” espiam de dentro da aparente tranquilidade dom�stica. Hist�rias de assassinato, estupros, abortos e pedofilia se sucedem, homens abusadores v�m e v�o, maltratando essas mulheres na triste morada de sub�rbio. Eles carregam nomes autoexplicativos, como Jos� Camal�on e Cacho Carmelo Spichafoco.
Yuna pinta para n�o morrer, e a imagem de expelir algo faz todo sentido aqui: “pintei as sombras que n�o pude evitar pois carrego dentro de mim tantas sombras que quando me angustiam (idem) eu as expulso em cima das minhas pinturas”. Em uma passagem amarga do romance, a protagonista afirma ter consci�ncia de “se aperfei�oar ao m�ximo para sobreviver”. A pobreza, a secura do afeto materno e o machismo da vida provinciana contribuem para tornar mais miser�vel essa experi�ncia. Um pouco � semelhan�a da trajet�ria da pintora mexicana Frida Kahlo, Yuna enfrenta sua caminhada transformando as muitas dores em beleza, na sua forma de express�o mais radical. Uma arte urgente, diante das desgra�as que rodeiam essas mulheres. N�o � toa, um dos homens que a cerca amea�a cortar sua l�ngua com uma navalha sevilhana caso calunie a honra familiar.
Nascida em La Plata, Venturini estreou oficialmente na literatura somente aos 85 anos com “As primas”, pelo qual recebeu em 2007 o pr�mio Nueva Novela do jornal P�gina/12, obtendo dos jurados (dentre eles Alan Pauls e Rodrigo Fres�n) o reconhecimento por sua “originalidade desconcertante”. Tamb�m poeta, tradutora e professora, antes desse reconhecimento j� escrevera dezenas de livros, tendo se exilado depois do golpe de 1955 em Paris, cidade em que foi pr�xima de Violette Leduc e dos existencialistas. Na ocasi�o, Venturini assinou o livro sob o pseud�nimo de Beatriz Portinari, curiosa escolha para se identificar em uma obra que dialoga com as artes pl�sticas, ecoando o nome de nosso grande criador e seu contempor�neo. Em termos de produ��o liter�ria, a autora tinha como pares as irm�s Silvina e Victoria Ocampo, al�m de Sara Gallardo, grandes nomes da prosa de autoria feminina do s�culo 20, escritoras que nem sempre receberam o mesmo espa�o e reconhecimento dos conterr�neos Bioy Casares e Borges, para ficar em poucos nomes.
Dentro desse di�logo entre passado e futuro, talvez tenha sido imposs�vel para a escritora deixar Yuna Riglos para tr�s. Ent�o escolheu repetir o idem em outro sentido: foi preciso fazer de novo, mesmo que em diferen�a. Em 2020, Liliana Viola, sua herdeira liter�ria, publicou postumamente o romance “As amigas”. Nele, Venturini retoma a hist�ria da pintora, agora com 80 anos. O livro ainda n�o foi traduzido no Brasil, mas desde j� deixa �gua na boca, por imaginar como ser� o reencontro com essa ousada protagonista, tantas d�cadas depois. Em todo seu desamparo e desejo de ultrapassar o mundo hostil que a circunda, Yuna Riglos nos enfeiti�a. � bom prestar aten��o a uma mulher armada de palavras e pinc�is. (SC)
"As primas", de Aurora Venturini
Assim sendo me vieram inspira��es enormes e eu sonhava os acontecimentos vividos transformando-os em figuras cada vez mais coloridas e belas que dentro da minha imagina��o se moviam e conversavam comigo me obrigando a tir�-las de dentro e despej�-las nos papel�es e nas telas e eu era tipo um ser estranho e dependente das ordens que aquelas formas ou figuras mandavam tiranicamente e que se eu n�o respondesse elas mordiam meu c�rebro e meu cora��o com dentes de vidro quando a viv�ncia tinha algum significado e exigia ser vertida numa tela ou papel�o.
“As primas”
Aurora Venturini
Tradu��o de Mariana Sanchez
F�sforo Editora
154 p�ginas
R$ 69,90
* Professora e pesquisadora de literatura brasileira na UFF e autora do livro “Partilhar a l�ngua – leituras do contempor�neo” (7Letras, 2022).