
Faustino Rodrigues *
Seria interessante um conhecimento maior sobre figuras importantes da hist�ria brasileira. � curioso deparar com o nome Rebou�as em bairros, avenidas etc, de algumas das principais cidades do pa�s e sabermos t�o pouco sobre esse personagem. Digo isso porque em meus tempos de escola, enquanto estudava pr�ximo ao t�nel Rebou�as, no Rio de Janeiro, n�o me lembro de ningu�m falando sobre ele. Definitivamente, essa omiss�o nos tira qualquer ideia sobre o que realmente era, em meu caso, a capital do pa�s nos anos anteriores.
Geralmente, em pleno s�culo 19, a destreza t�cnica de um Andr� Rebou�as era associada a uma vis�o modernizante – essencial para um pa�s muito pr�ximo de um passado colonial. O engenheiro nascido em Cachoeira, na Bahia, em 1838, filho de um conselheiro do imperador Pedro I, preocupava-se, por exemplo, com saneamento b�sico e a forma como se daria a circula��o das pessoas em um ambiente cujo agrarismo vinha perdendo protagonismo. O seu of�cio, sumamente urbano, n�o o impediu de ter uma vis�o global do pa�s, sobretudo em algo que lhe tocava diretamente: o destino dos negros.
Recentemente, a Ch�o Editora publicou o primeiro volume de um conjunto de cartas de Andr� Rebou�as, escritas durante uma viagem contornando o litoral da �frica, iniciada pouco depois da assinatura da Lei �urea e da Proclama��o da Rep�blica. O belo trabalho editorial conta com a organiza��o de Hebe Mattos, professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que assina tamb�m o posf�cio da obra. “Cartas da �frica - Registro de correspond�ncia, 1891-1893” �, sem d�vidas, um �timo documento para se conhecer a relev�ncia desse personagem da Hist�ria do Brasil. Entre os correspondentes de Andr� est�o figuras como Joaquim Nabuco, Visconde de Taunay e, at� mesmo, o pr�prio imperador D. Pedro II, que testemunham as impress�es dessas personalidades do imagin�rio p�blico brasileiro em torno dos mais diversos temas, sobretudo aqueles ligados � pol�tica.
Para al�m dos feitos de engenharia, Andr� Rebou�as tinha um pensamento pol�tico refinado, bastante coerente com sua trajet�ria de engenheiro negro em um pa�s escravocrata. Abolicionista, a sua preocupa��o maior, a causa do negro, n�o findava com a assinatura da Lei �urea, encontrando amparo nas consequ�ncias que o processo todo teria, a depender de como seria feito. Por certo, uma perspectiva muito � frente de seu tempo.
“Cartas da �frica” demonstra como o racismo � uma marca na constitui��o da personalidade de Andr� Rebou�as, mesmo sendo ele um homem de grande import�ncia para o Imp�rio. As diversas correspond�ncias trazem a lume o orgulho do “Negro Andr�”, como ele mesmo se autodenominava, “em corpo e alma, meio africano, meio brasileiro” (p�gina 293), apenas para exemplificar com as suas pr�prias palavras.
ABOLI��O DE “TODAS AS MIS�RIAS HUMANAS”
O Brasil de “Cartas da �frica” era o de 1891 a 1893. Poucos antes, a monarquia brasileira assinava o documento que libertava os escravos sem dar direito a qualquer indeniza��o aos antigos senhores, majoritariamente fazendeiros – economicamente poderosos em um pa�s agr�rio a insistir em seguir o rumo de seu passado colonial. A conquista estava a�. Bastaria? N�o para Rebou�as, cuja aboli��o deveria ser “de todas as mis�rias humanas” (p�gina 279).
Andr� estava preocupado quanto ao destino desse negro que, agora, deveria se inserir em um mercado de trabalho rudimentar sem qualquer tipo de preparo ou garantias de subsist�ncia. Uma vez expulsos das fazendas, para onde iriam sem quaisquer recursos? O Negro Andr� estava atento ao bols�o de mis�ria que poderia ser criado com isso. Apesar da relev�ncia, a Lei �urea n�o bastava.
Os fazendeiros revanchistas, economicamente poderosos, sentiam-se injusti�ados, tra�dos por dom. Pedro II. Assim � que retiram todo o apoio � monarquia e, num golpe, proclamam a Rep�blica em 15 de novembro de 1891. Basicamente, estava ali a sanha pela propriedade sobre o negro e tudo o que haveria de mais intr�pido no Brasil Col�nia. Rebou�as, sempre envolvido com a vida pol�tica, defensor da fam�lia real por seu compromisso com o fim da escravid�o, sente o baque da expuls�o de seu monarca, fugindo do pa�s junto com ele, na mesma embarca��o, para a Europa, dois dias depois do golpe – nunca mais retornando a sua terra natal, tendo morrido em 1898, em Funchal, em Portugal.
Ali�s, a rela��o com o imperador � de extrema devo��o. Pela leitura da obra, essa admira��o pode ser diretamente associada n�o apenas a uma quest�o pessoal, das credenciais que a monarquia brasileira conferiu a toda a fam�lia de Andr�. Mas, fundamentalmente, diante da configura��o pol�tica assumida pelo Brasil, por se encontrar ali a maior e mais eficaz barreira ao revanchismo dos fazendeiros.
Para “Negro Andr�”, dom Pedro II emerge como her�i. As palavras das �ltimas correspond�ncias trocadas, pouco antes da morte do monarca, comovem ao descrev�-lo como “Meu mestre e meu imperador”. Com o seu adoecimento e sua morte, o Brasil fica “arrastado pela fatalidade expiat�ria do tristessecular crime de escraviza��o e reescraviza��o � rebeldia” (p�gina 64). Nota-se, por este fragmento, entre muitos outros, o seu temor quanto ao retorno institucionalizado do cativeiro. Ou seja, n�o � somente a aboli��o.
Se n�o � somente a aboli��o, tampouco � apenas a forma de governo. N�o bastaria a implementa��o de uma Rep�blica no Brasil para garantir a necess�ria igualdade. N�o era poss�vel esperar o cuidado com a coisa p�blica de pessoas que desejavam ser donas de tudo. Por isso, os atores envolvidos devem ser considerados como fundamentais para o jogo pol�tico. A manuten��o da monarquia, neste caso, funcionaria como um instrumento de resist�ncia para a garantia de um Brasil cuja modernidade estava condicionada � inser��o justa do negro no interior da sociedade.
No entendimento de Andr� Rebou�as, se o Brasil assinou a liberta��o dos escravos com a Lei �urea, assinou o seu v�nculo com o passado atrav�s da Proclama��o da Rep�blica, da maneira como foi feita. O poderio dos fazendeiros escravocratas n�o mais estaria limitado ao campo econ�mico. Abria-se as portas para a desenfreada explora��o, criticada por ele, inclusive, quando menciona o tratamento dado aos imigrantes europeus rec�m-chegados �s fazendas de caf�.
NUNCA MAIS O BRASIL
Ao abandonar o pa�s, Andr� Rebou�as atestava a sua descren�a no projeto, ou falta dele, que era instalado no Brasil. Em sua experi�ncia na �frica fica ainda mais evidente a preocupa��o com o negro no interior da sociedade brasileira. Diferentemente de autores como o evolucionista Nina Rodrigues que, naquele momento, academicamente, assinalavam a mesti�agem das ra�as como um obst�culo para o desenvolvimento do pa�s, Rebou�as apontava para a necess�ria integra��o, tomando-a como inevit�vel. Um dos artif�cios para o seu sucesso seria a pequena propriedade que, conforme sublinha, beneficiaria os negros.
No entendimento de Rebou�as, n�o haveria degraus de desenvolvimento entre as diferentes civiliza��es – algo claramente demarcado pelas constantes acusa��es feitas ao colonialismo europeu, continente no qual fez grande parte de sua forma��o. Ele percebia o fato ineg�vel do Brasil: um pa�s de diferentes culturas que, a despeito disso, teria de caminhar em dire��o ao moderno.
� �timo ver como Andr� Rebou�as, naquele tempo, deixa claro o seu entendimento de que a mis�ria no continente africano n�o decorria de uma inferioridade biol�gica, evolutiva. Em sua sobriedade, eles eram v�timas de uma explora��o secular a atestar a domina��o. Uma vis�o coerente � de um homem defensor de reforma sanit�ria no Rio de Janeiro, da pequena propriedade privada, conforme observado em “Cartas da �frica”, que desnuda a “s�ntese da hedionda explora��o de escravagismo, de monop�lio territorial e de 'landlordismo' [grandes propriedades de terra], que agora p�em em crise toda a �frica Oriental portuguesa, desde Mo�ambique at� Louren�o Marques [atualmente, Maputo]” (p�gina 163).
Obviedades? Com certeza. Necess�rias? Sim. Isso porque recentemente vimos a contesta��o da ci�ncia no instante em que representava a �nica alternativa segura para que in�meras vidas fossem salvas – e isso com toda a tecnologia de informa��o dispon�vel na atualidade. Vimos tamb�m como pessoas t�m sido sujeitadas a condi��es de trabalho an�logas � escravid�o por institui��es que detinham consider�vel prest�gio em nossa sociedade. N�o me admiraria ver algu�m justificando iniciativas como essa sob o pretexto da necessidade de produ��o. Que falta voc� faz, Negro Andr�!
* Faustino Rodrigues � psicanalista e professor de sociologia na Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg)
“Cartas da �frica - Registro de correspond�ncia, 1891-1893”
- Andr� Rebou�as
- 464 p�ginas
- Ch�o Editora
- R$ 69,27
