Sonho, par�dia e m�sica se entrela�am em �cido romance de J�ferson Assum��o
Em 'Trope��lia', escritor e membro do Minist�rio da Cultura narra o fracasso de uma banda, que tem uma "�ltima chance", em uma trama cheia de cr�ticas e s�tiras
J�ferson Assum��o cria uma narrativa permeada por s�tiras, reflex�es e par�dias, tendo como pano de fundo contextos hist�ricos do Brasil (foto: Tha�s Mallon/Divulga��o)
“Naquele 15 de outubro de 2016, de dentro do pub tem�tico em Liverpool, George afastou a cortina e enxergou de novo, do outro lado da rua, um decepcionante Cavern Club. Rodeado pelos pr�dios da Cook Street e da estreit�ssima Mathew Street, aquele lugar sagrado parecia-lhe muito menor do que imaginava. Ainda mais com o bando de turistas � sua frente, a tagarelar e fazer selfies. Uma coisa sem aura, sem autenticidade alguma. A pequena Disneyl�ndia de pessoas usando camisetas dos Beatles, algumas apertadas sobre casacos grossos, retirava dele qualquer resto de privil�gio ou de intimidade, qualquer tra�o de interioridade, qualquer amor. (...) O conjunto todo murchava aquele que tinha sido, para George e John, o lugar mais importante do mundo: o clube onde os Beatles nasceram.”
O trecho acima, carregado de tonalidades de nostalgia, saudosismo e azedume acumuladas pelo protagonista, George, se trata do in�cio da hist�ria de “Trope��lia” (Editora Taverna; 2022), segundo livro que integra o tr�ptico “O inferno dos sentidos” – a primeira obra da trinca � “Ber�o de Judas” (2019), e a vindoura e �ltima, a priori, dever� se chamar “Mata-cachorros” –, de J�ferson Assum��o, escritor ga�cho e diretor do departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do Minist�rio da Cultura. Logo de cara, voc� poder� supor que os nomes ali citados, George e John (dois irm�os na trama, ali�s), fazem refer�ncia a dois integrantes dos Beatles, os finados George Harrison (1943-2001) e John Lennon (1940-1980), e que o t�tulo, “Trope��lia”, alude � Tropic�lia, movimento brasileiro nascido na segunda metade da d�cada de 1960, com novas linguagens art�sticas, e que tinha em seu efervescente n�cleo (ou que transitavam pelo citoplasma daquela manifesta��o cultural) figuras como os m�sicos Caetano Veloso e Gilberto Gil, a banda Os Mutantes, o cineasta Glauber Rocha e o ilustrador e compositor Rog�rio Duarte. Sim, voc� est� certo! S� que essas escolhas do autor n�o foram brotadas da leviandade ou carregam simples homenagens.
O nome Trope��lia � sim uma alus�o � Tropic�lia, mas, de forma patente ou latente, a critica e a parodia. E se entrela�a tamb�m � palavra “trope�o”, aos trope�os com que cada personagem do livro convive e aos tr�picos (ou, em mais uma par�dia utilizada, aos “tropicos”, aos “trope��es”) – neste caso, se refere ao Cone Sul e, de maneira mais cir�rgica, ao Rio Grande do Sul, cen�rio onde grande parte da hist�ria se passa, em um romance que mistura per�odos da hist�ria do Brasil dentro de uma narrativa fict�cia. O estado, assim como todo o pa�s, vivenciou d�cadas de Ditadura Militar (1964-1985) e o �xodo rural dos anos 1960 e 1970, com milh�es de brasileiros indo parar nas periferias das grandes cidades. Caso da fam�lia de John e George em Canoas (RS), cidade onde a dupla, juntamente com outros integrantes, no fim dos anos 1980, criou a banda Blackbirds – refer�ncia � m�sica “Blackbird”, dos Beatles, presente no “White album”, de 1968 – e que seria o embri�o da Trope��lia.
S� que os momentos de psicod�lica e lis�rgica felicidade (voc� vai entender mais durante a leitura da obra) deram lugar ao fim da banda e a uma frustra��o instaurada no cerne dos m�sicos e do produtor e jornalista Jey Jey, que tanto apostou na Trope��lia e viu ruir, n�o somente o grupo, como sua carreira na imprensa, al�m de ter sido testemunha de um drama vivido por John. Diferentemente de George, �nico a seguir uma carreira musical de reconhecimento como guitarrista de artistas renomados, John trilhou um caminho pavimentado pelo v�cio das drogas – e, em meio a d�vidas e interna��es em clinicas de reabilita��o, percorreu d�cadas alimentando a esperan�a em ver o irm�o retomar a banda. E o regresso dela realmente ocorre, embora o motivo principal, para George, n�o tenha sido o de necessariamente ajudar o irm�o ou tentar fechar antigas feridas com seus velhos colegas de Trope��lia. J� com mais de 40 anos de idade, o guitarrista se viu “prensado na parede”, ao ouvir Paulo Banjiro, um dos m�sicos para o qual trabalha, contestar seu modo de tocar: “Bota mais samba a�, meu rei. Voc� toca bem pra caralho, mas anda faltando no teu som o Brasil que est� no teu sangue”.
(foto: Tha�s Mallon/Divulga��o)
Na mente de George, seria por meio de uma nova experi�ncia – incluindo um “ritual” – com seu antigo grupo que ele “recuperaria” aquilo que se perdeu durante uma trajet�ria na qual se tornou um sofisticado guitarrista (de �tima “m�o esquerda”, como dizem), mas que carecia de “brasilidade”, tanto no ritmo (na “m�o direita”), quanto na alma. Essa jornada que acompanha os irm�os, desde os tempos de crian�a (ou at� antes, quando o pai deles, o Negra, ex-motorista de carro de combate em 1964, viria, por necessidade, a se tornar camel�) rumo ao regresso da Trope��lia � cimentada por dramas pessoais, tendo como pano de fundo mazelas da sociedade (vide racismo, LGBTfobia e machismo, entre outras), problemas socioecon�micos e cr�ticas a momentos pol�ticos vividos no Brasil (al�m da Ditatura Militar, 2016, ano do impeachment da presidente Dilma Rousseff, � alvo de J�ferson Assum��o). Dentre os m�ritos do escritor ga�cho est�o a acidez de cada s�tira, par�dia e alfinetada que emergem, a narrativa visceral e por vezes ardilosa e as camadas inseridas nas subtramas e na hist�ria principal.
No fim das contas, e sem dar spoiler, a linha t�nue entre a utopia e a possibilidade de reconstru��o do lema “o sonho n�o acabou” se torna alimento para todos aqueles personagens do livro que um dia se apaixonaram com a m�sica dos Beatles e nutriam tantos sonhos.
Livro-disco
“Trope��lia” � uma experi�ncia imersiva. Ao folhear a obra, o leitor vai se deparar com um QR Code que o transporta para o canal no YouTube da banda Trope��lia. L� est�o as m�sicas citadas no livro, que formam um disco de pouco mais de 40 minutos e s�o executadas por uma banda a qual J�ferson Assum��o faz parte e que foi rebatizada com o nome do fict�cio grupo da trama.
“Essa ideia surgiu enquanto eu escrevia a primeira vers�o do livro, que se chamava ‘Os Beatles Negros’. No meio da escrita, me veio o nome ‘Trope��lia’, trocadilho com a Tropic�lia, e depois a ideia de criar n�o apenas um romance, mas um romance-disco, com uma banda que sai do livro para tocar de verdade”, relata o escritor ga�cho. “Eu j� tinha uma banda em Bras�lia, com m�sicas pr�prias. Expliquei o projeto para o grupo, passamos anos como ‘Trope��lia’ e a ensaiar para gravar as 12 m�sicas do romance-disco. Para o livro, criei esse grupo de periferia, que fazia uma vers�o subtropical da Tropic�lia. Uma banda de Canoas, na Regi�o Metropolitana de Porto Alegre, com um som entre Itamar Assump��o e J�piter Ma��, um pouco de vanguarda e um pouco indie, digamos assim. Paralelo � escrita do livro, gravamos as 12 m�sicas da banda.”
'Tempo inexor�vel'
O escritor Luiz Antonio de Assis Brasil, que assina o texto da contracapa do livro, aponta que “Trope��lia” � mais do que “uma bela pe�a liter�ria”: “Nos alerta para o tempo que passa, t�o inexor�vel quanto nossa vida pessoal, e que o desejo de reviver antigas utopias, em sua face est�tica, n�o ter� sentido se n�o entendermos esse fen�meno”.
“De certa forma, isso (consci�ncia sobre a passagem do tempo que permeia o livro) � algo que se busca com o amadurecimento pessoal, a consci�ncia de que somos feitos disso, do que vivemos, do que passou e do que ainda projetamos como vontade para o futuro. Nesse sentido, tem um pouco de existencialismo, ou pr�-existencialismo de sabor orteguiano (refer�ncia ao escritor espanhol Jos� Ortega y Gasset – 1883-1955). N�o sou um autor de interesse apenas social, mas existencial, ou, no caso do que acontece com quem vive nas periferias e � um leitor de filosofia, de literatura e ama a arte, de um ‘subexistencialismo’, como diz George no livro. Eles (personagens da trama) talvez n�o devessem mesmo se meter com algo que n�o era deles, amar o que n�o se pode possuir totalmente. Em vez de passear com Cort�zar pelas ruas frias do Quartier Latin, em Paris, ou sentar ao lado de Borges num banco de pra�a em Genebra, eles estavam enfiados no barro frio do bairro Mathias Velho dos anos 1980 e 1990”, comenta Assum��o.
Com rela��o � ideologia da obra, o autor ressalta que “Trope��lia” “traz este clima de que as personagens est�o vivendo n�o apenas aquele conjunto de ideias fora do lugar, como diria Roberto Schwarz, mas ideias tamb�m fora do seu tempo. As drogas que libertavam agora escravizam, o sexo livre detona com as rela��es na banda, o imagin�rio hippie, quase ing�nuo, � corrompido pela realidade sombria, pelo p�s-punk e pelo p�s-rock. Neste sentido, ‘Trope��lia’ � um livro p�s-power-flower e p�s-Beatles, tamb�m”.
Curadoria
Al�m dos Beatles, v�rios artistas s�o citados ao longo da obra, dos mais distintos segmentos musicais, tanto nacionais (como Caetano, Gil, Alceu Valen�a, Novos Baianos, Casa das M�quinas, Made in Brazil, Os Mutantes, Som Nosso de Cada Dia, A Barca do Sol, O Peso, Joelho de Porco, O Ter�o), quanto internacionais (Malmsteen, Cacophony, Jethro Tull, Janis Joplin, Stones, Jackson Five, Frank Zappa, Emerson, Lake & Palmer, Focus, Genesis, King Crimson, Metallica). Com tantas men��es, Assum��o n�o recha�a a ideia de que, sem presun��o, “Trope��lia” tamb�m sirva de curadoria para seus leitores.
“Acredito que um livro pode servir tamb�m para trazer repert�rios art�sticos e refer�ncias, sejam elas filos�ficas, liter�rias ou musicais. Em ‘Trope��lia’, quis trazer esse universo da banda e sua f� num rock que h� muito se perdeu. Tanto a f�, como o rock. Na minha �poca, de 16, 17 anos, em Canoas, viv�amos muito desse universo e busc�vamos aprender sobre a vida com esses artistas. Era uma coisa de hippie-tardio, j� com o p� na maravilhosa vanguarda paulista dos anos 80. Quis colocar no livro esse efeito na vida de qualquer jovem, que � a educa��o sentimental e filos�fica que temos por meio da m�sica. Explorei isso com essas refer�ncias mais antigas, o que d� um certo ar vintage que eles vivem”, destaca.
Ficha t�cnica: "Trope��lia"
J�ferson Assum��o
Editora Taverna
272 p�ginas
R$ 65
(foto: Reprodu��o capa)
Quem � J�ferson Assum��o
Nascido em Santa Maria (RS) em 1970, � autor de mais de 20 livros, dentre eles “Ber�o de Judas” e “Trope��lia”. Doutor em filosofia pela Universidade de Le�n, na Espanha, tem p�s-doutorado em Literatura na UnB. Atualmente � diretor do departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do Minist�rio da Cultura.
Entrevista com J�ferson Assum��o
Como e de onde surgiu a ideia para o livro “Trope��lia”? Por mais que fa�a parte da trinca “O inferno dos sentidos”, quando surgiram as ideias e como foi o processo de constru��o e finaliza��o da obra?
Surgiu enquanto eu escrevia a primeira vers�o do livro, que se chamava “Os Beatles Negros”. No meio da escrita, me veio o nome “Trope��lia”, trocadilho com a Tropic�lia, e depois a ideia de criar n�o apenas um romance, mas um romance-disco, com uma banda que sai do livro para tocar de verdade. Eu j� tinha uma banda em Bras�lia, com m�sicas pr�prias. Expliquei o projeto para o grupo, passamos a nos chamar “Trope��lia” e a ensaiar para gravar as 12 m�sicas do romance-disco. Para o livro, criei este grupo de periferia, que fazia uma vers�o subtropical da Tropic�lia. Uma banda de Canoas, na Regi�o Metropolitana de Porto Alegre, com um som entre Itamar Assump��o e J�piter Ma��, um pouco de vanguarda e um pouco indie, digamos assim. Paralelo � escrita do livro, gravamos as 12 m�sicas da banda, que est�o acess�veis por um QR Code impresso no in�cio do livro.
O t�tulo do livro chama aten��o por fazer refer�ncia ou alus�o � Tropic�lia e tamb�m se confunde ou alude aos tr�picos, ao Cone Sul, ao Rio Grande do Sul e � palavra ‘trope�o’. Enfim, tem todo um significado. Mas queria que voc� nos dissecasse um pouco desse termo e como ele se estende ao conte�do do livro, �s inspira��es e aos sonhos das personagens no sentido de buscarem um ideal, e esse ideal ir mudando para cada um ao longo das p�ginas.
Sempre achei o Tropicalismo cheio de um otimismo at� certo ponto injustific�vel, se pensarmos no Brasil como um todo, em suas distintas realidades sociais, regionais, econ�micas e mesmo clim�ticas. � fundamental para o Brasil contempor�neo, claro, mas o chamado p�s-Tropicalismo, do pr�prio Caetano, de Jards Macal�, S�rgio Sampaio, Gal Costa, e seus frutos vanguardistas dos anos 80, como Itamar Assump��o, Arrigo, Os Mulheres Negras, sempre me pegaram mais. Nesse sentido, brinco que a banda Trope��lia e o livro s�o “neo-p�s-tropicalistas”. No livro, a Trope��lia nasceu em Canoas no fim dos anos 80, e seus integrantes veem o movimento tropicalista com desejo, mas tamb�m com distanciamento cultural, social e econ�mico. Aos poucos, v�o percebendo que aquilo n�o � “deles”, mas de um Brasil muito long�nquo, para quem vive numa periferia ou vem do Pampa, no interior do Rio Grande do Sul. As personagens, John, George, Lena e Deco, come�am com um sonho em comum, a forma��o da banda, mas aos poucos os trope�os da vida amorosa e dos percal�os pela falta de dinheiro, ambi��es e perspectivas est�ticas e filos�ficas v�o fragmentando a banda. Cada um segue seu rumo, mas, como s�o suburbanos, carregam o que eu vejo como um amor meio religioso que os mais pobres, como � minha origem tamb�m, acabam tendo em rela��o � arte, no caso de se sentirem “salvos” por ela. � uma perspectiva est�tica e de classe distinta da classe m�dia, e isso o protagonista George e o produtor Jey Jey enxergam melhor que todo mundo. Assim, “Trope��lia” � uma hist�ria de amor � arte e � m�sica, um desejo de participar de algo a que as personagens n�o foram convidadas e n�o t�m for�a para entrar. A n�o ser George, o guitarrista eg�latra e ensimesmado, o �nico que deu certo porque n�o caiu no sentimentalismo populista em que os outros vivem.
Luiz Antonio de Assis Brasil, que assina o texto da contracapa do livro, diz: “Este romance � mais do que uma bela pe�a liter�ria: ele nos alerta para o tempo que passa, t�o inexor�vel quanto nossa vida pessoal, e que o desejo de reviver antigas utopias, em sua face est�tica, n�o ter� sentido se n�o entendermos esse fen�meno”. Queria que voc� falasse a respeito deste coment�rio. E o qu�o positivo e negativo pode ser a quest�o do tempo para “o desejo de reviver antigas utopias”.
Pois �. Ao tentar voltar com a banda, 20 anos depois e com tantas camadas culturais, econ�micas, sentimentais e sociais formadas entre eles, temos a sensa��o do tanto que a passagem do tempo carrega e nos forma, o quanto o tempo nos consubstancia. O Assis me disse que h� uma consci�ncia sobre a passagem do tempo que permeia o livro, e de certa forma isso � algo que se busca com o amadurecimento pessoal, a consci�ncia de que somos feitos disso, do que vivemos, do que passou e do que ainda projetamos como vontade para o futuro. Nesse sentido, tem um pouco de existencialismo, ou pr�-existencialismo de sabor orteguiano. N�o sou um autor de interesse apenas social, mas existencial, ou no caso do que acontece com quem vive nas periferias e � um leitor de filosofia, de literatura e ama a arte, de um “subexistencialismo”, como diz George no livro. Eles talvez n�o devessem mesmo se meter com algo que n�o era deles, amar o que n�o se pode possuir totalmente. Em vez de passear com Cort�zar pelas ruas frias do Quartier Latin, em Paris, ou sentar ao lado de Borges num banco de pra�a em Genebra, eles estavam enfiados no barro frio do bairro Mathias Velho dos anos 80, 90. Em rela��o � ideologia, “Trope��lia” traz este clima de que as personagens est�o vivendo n�o apenas aquele conjunto de ideias fora do lugar, como diria Roberto Schwarz, mas ideias tamb�m fora do seu tempo. As drogas que libertavam agora escravizam, o sexo livre detona com as rela��es na banda, o imagin�rio hippie, quase ing�nuo, � corrompido pela realidade sombria, p�s-punk e p�s-rock. Neste sentido, “Trope��lia” � um livro p�s-power-flower e p�s-Beatles, tamb�m.
Nem mesmo a Tropic�lia e os Beatles saem imunes diante das boas doses de sarcasmo do autor ga�cho (foto: Tha�s Mallon/Divulga��o)
Em meio ao livro, h� cr�ticas a contextos hist�ricos, de forma patente ou latente, casos da Ditadura Militar e o ano de 2016, quando Temer assume o poder ap�s o impeachment de Dilma Rousseff, mesmo sem voc� citar nomes. E h� tamb�m v�rias cr�ticas sociais, tendo como cen�rio v�rias cidades do Rio Grande do Sul.
Ao contar a vida de George e dos integrantes da Trope��lia, a hist�ria perpassa cerca de 50 anos da vida pol�tica brasileira. Influenciado pelo produtor Jey Jey na juventude, George come�a a ter certa consci�ncia pol�tica e a refletir sobre o mundo ao redor dele, desde o fato de o pai, o Negra, ter sido motorista de carro de combate no ano de 1964, ou seja, de ter estado do lado “de l�”, por uma mistura de elementos, a idade, os 19 anos e as circunst�ncias pol�ticas e sociais, porque afinal quase que apenas os mais pobres servem o ex�rcito como soldados. Foi o caso do Negra, mas tamb�m talvez interesse a forma como aquela ideologia dos militares permanece no pai de George e John, mesmo tantos anos depois e com todos os trope�os econ�micos da vida dele. O Negra perdeu o emprego no in�cio dos anos 80, quando quebra o projeto desenvolvimentista dos militares, teve que virar camel�, mas continuava a defender o capitalismo, queda ap�s queda, e a justificar a luta dos militares contra o comunismo. Essas consequ�ncias pol�ticas s�o as mesmas que se pode observar numa massa de pessoas simples de todo o Brasil, cujas respostas simplistas e falsas dadas por pol�ticos de ultradireita manipulam velhos medos inventados pelos militares l� atr�s. Sobre isso, tamb�m tem a decad�ncia de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, que do F�rum Social Mundial e das exitosas administra��es petistas v�o decaindo at� a explos�o da viol�ncia em 2016. Este � um ano emblem�tico, para Porto Alegre e o Brasil, com o golpe contra a presidente Dilma, e no livro aparece como ponto de coagula��o de consci�ncia de que se deixou h� d�cadas um mundo de constru��o de alternativas pol�ticas, da qual Porto Alegre e depois os governos Lula e Dilma s�o exemplos. � a consci�ncia para as personagens, principalmente para Jey Jey, de que estamos num mundo p�s-rock, p�s-Beatles, p�s-tropicalista e que os coloca num papel de certa ingenuidade sonhadora tamb�m. De certa maneira, George � a consubstancia��o disso. Ele vive o sonho que ningu�m entre seus amigos conseguiu, virando um m�sico internacional de jazz.
E em meio a v�rias outras quest�es abordadas, fala-se de v�cios, problemas de fam�lias, la�os de amigos, bandas, escolas, v�rios c�rculos sociais, problemas com drogas, quest�es relacionadas a racismo, LGBTQIA+ etc. Como foi incluir tantos temas � narrativa e esses temas estarem t�o bem encaixados a essa narrativa?
A passagem do tempo suscita a entrada em cena de todos esses temas. O mundo mudou para as personagens e a n�s. No caso da banda, a mobilidade social de George, sua ascens�o vertiginosa, esgar�a as rela��es com os outros amigos. Os conflitos familiares e com os amigos se acentuam, mas o mais forte s�o os trope�os de John com o crack, a desestrutura��o do irm�o e da fam�lia dele. S�o todos temas de nosso tempo, e uma narrativa contempor�nea n�o pode passar � margem deles.
Sob outro prisma, v�rios artistas s�o citados, tanto nacionais (vide Caetano, Gil, Alceu Valen�a, Novos Baianos, Casa das M�quinas, Made in Brazil, Mutantes, Som Nosso de Cada Dia, A Barca do Sol, O Peso, Joelho de Porco, O Ter�o), quanto internacionais (Malmsteen, Cacophony, Jethro Tull, Janis Joplin, Beatles, Stones, Jackson Five, Frank Zappa, Emerson, Lake & Palmer, Focus, Genesis, King Crimson, Metallica). Quando li achei muito interessante, n�o apenas por ser um livro que tem uma veia musical, como tamb�m no aspecto, penso eu, de funcionar como uma curadoria. Acredita que h� pessoas que possam descobrir alguns desses artistas lendo o livro? Foi algo intencional ou n�o?
Sim, acredito que um livro pode servir tamb�m para trazer repert�rios art�sticos e refer�ncias, sejam elas filos�ficas, liter�rias ou musicais. Em “Trope��lia”, quis trazer este universo da banda e sua f� num rock que h� muito se perdeu. Tanto a f�, como o rock. Na minha �poca, de 16, 17 anos, em Canoas, viv�amos muito desse universo e busc�vamos aprender sobre a vida com esses artistas. Era uma coisa de hippie-tardio, j� com o p� na maravilhosa vanguarda paulista dos anos 80. Quis colocar no livro esse efeito na vida de qualquer jovem, que � a educa��o sentimental e filos�fica que temos por meio da m�sica. Explorei isso com essas refer�ncias mais antigas, o que d� um certo ar vintage que eles vivem.
Ainda nessa toada, h� a hist�ria dos irm�os John e George tomando gosto pela m�sica gra�as a uma fitinha dos Beatles, que um amigo, Ivan, os presenteia, “The Beatles: os reis do i�-i�-i�”. Creio que muita gente pode ter se lembrado do primeiro contato com rock e os Beatles. Como a nostalgia est� no ar de alguma forma, chegou a ser nost�lgico para voc� rememorar por exemplo seu primeiro contato com Beatles e outras bandas que admira? E como foi seu primeiro contato com seus artistas favoritos e a m�sica deles?
Sim, talvez a velocidade das transforma��es tecnol�gicas e culturais de nosso tempo nos traga de vez tamb�m uma necessidade de nostalgia, de passado, de alguma coagula��o no mundo l�quido. Na nossa velocidade atual, o passado tem talvez mais encanto. � como se estiv�ssemos vivendo o passado muito presente, pois com o avan�o digital temos muitas imagens dispon�veis sobre ele. � um encanto maior do que num tempo em que t�nhamos imagens quase que exclusivamente do tempo presente, quando est�vamos presos � televis�o. Hoje o passado � presente, via YouTube etc. Para muitos jovens que conhe�o e gostam de m�sica, a descoberta no Spotify ou YouTube do disco “Stand Up” (1969), do Jethro Tull, vale tanto quanto o mais novo lan�amento de uma banda atual. � um tra�o de nosso tempo, este que a tecnologia nos permite mergulhar tanto no passado quanto viver o futuro: a conquista da ubiquidade no tempo. Meu primeiro contato com os Beatles foi com uma fitinha, como a descrita no livro. Quando fui camel�, por muitos anos em meados de 80 at� in�cio dos 90, muita coisa chegava a mim e meu irm�o de refer�ncias em discos, fitas ou algu�m tocando viol�o na pra�a. Da mesma maneira que George e John e na mesma pra�a da Bandeira. O professor de literatura Igor Graciano, em artigo sobre “Trope��lia”, chama isso n�o de autofic��o, mas de “ru�do biogr�fico”.
Enquanto alguns personagens clamam por brasilidade, George se distancia dela (ou pelo menos esta � a cr�tica que muitas pessoas ao seu redor fazem a ele). Gostaria que falasse a respeito disso, porque, me parece (me corrija se eu estiver errado) que h� uma cr�tica ali em termos musicais, mas tamb�m dessa quest�o de nacional x internacional.
Sim, um dos conflitos culturais � exatamente o de George ir se interessando cada vez mais pelo cl�ssico e certo jazz supert�cnico e cerebral e deixar para tr�s um som r�tmico e brasileiro. Sua m�o esquerda se desenvolve mais que a direita, o que ele se d� conta com a cr�tica de Paulo Banjiro, no in�cio do livro. Aquilo desencadeia tamb�m seu mergulho no passado, em busca de corrigir esse elemento que o est� prejudicando profissionalmente. O ego�sta George est� preocupado com isso e n�o com a banda, mas acha que o retorno a certo ritual de adolesc�ncia deles pode consertar tanto esse problema quanto algo central em sua vida. O livro inicia com George acompanhando Paulo Banjiro numa pequena turn� por Fran�a e Inglaterra e j� o mostra tomado por um certo ar de m�sica internacional. Incomoda-o um (som) nacional meio ing�nuo e at� falso, instrumentalmente vivido pelos outros integrantes da banda, de Banjiro e de seu antigo grupo.
H� tamb�m conflitos de gera��es. Quando George retorna a Porto Alegre para tentar retomar a banda, encontra dificuldades de conversar com jovens nos bares. Mesmo considerado antenado, ele v� que ningu�m liga para suas piadas de “tioz�o” e se surpreende com o papo de um grupo formado por cinco jovens.
Sim, na volta dele a Porto Alegre, ele se v� pela primeira vez mais velho do que imaginava. E isso pela forma como n�o se encaixa mais na cidade, entre os jovens que circulam pela Cidade Baixa ou os velhos roqueiros do Bom Fim. Ele � uma esp�cie de fantasma, a viver algo que j� morreu por ali. Algo muito forte que o carrega, como numa lufada para a consci�ncia de que est� ultrapassado, � um di�logo que ele escuta entre jovens que falam que ficar com homens ou mulheres tem, para eles, a ver n�o com g�nero, mas com uma quest�o de for�a muscular ou aspereza da pele ou dos pelos.
Outro trecho que gostaria de mencionar diz respeito novamente � pol�tica brasileira: “O Partido Progressista � conservador, o Podemos daqui � o oposto do da Espanha, o Partido Comunista n�o tem comunista nenhum, o da social-democracia � neoliberal, o dos trabalhadores t� assim de capitalista, nos Republicanos tem uns v�io monarquistas”. Queria que falasse a respeito desse cen�rio, em sua opini�o, e tamb�m o quanto isso est� presente na sociedade, da forma como voc� a enxerga.
A quest�o central no livro � a par�dia. Para Jey Jey, tudo � par�dia no Brasil. A pr�pria Trope��lia � uma par�dia da Tropic�lia. George e Jey Jey pensam que na pol�tica nossa par�dia ultrapassa muito dos limites do razo�vel. Acho que �s vezes as ideias fora do lugar atingem aqui propor��es e vers�es ainda maiores que em outros pa�ses, pela nossa capacidade de misturar e criar par�dias. At� de n�s mesmos.
O livro se estende ao �lbum que est� dispon�vel nas plataformas. Como foi fazer esses trabalhos de forma paralela e de forma entrela�ada, um completando o outro? E quais s�o suas maiores influ�ncias na m�sica?
Sim, o �lbum est� dispon�vel em diversas plataformas e agora tamb�m fisicamente, pelo menos quatro m�sicas em um vinil. Gosto muito de m�sica brasileira: Tom Z�, Jards Macal�, Mutantes, Os Mulheres Negras, Gal Costa, S�rgio Sampaio, os p�s-tropicalistas, mas escuto muito de groove-jazz, hard-bop, rock argentino... Adoro Andr�s Calamaro e Charly Garc�a.
E quais seus planos para o futuro? O que vir� pela frente? Algo que possa nos adiantar?
Agora estou de volta � gest�o de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, como diretor dessa �rea no Minist�rio da Cultura. Mesmo assim, tenho come�ado o terceiro volume de “O Inferno dos Sentidos”. Se n�o mudar de nome, vai se chamar “Mata-cachorros”.
Por fim, gostaria que deixasse uma mensagem para seus leitores e futuros leitores. E, dentro dessa mensagem, de que forma voc� apresentaria “Trope��lia” para algu�m que ainda n�o leu e quer ler o livro?
O Brasil � um pa�s vibrante e criativo, para muito al�m dos grandes centros urbanos. Um pa�s tropical, repleto de trope�os e possibilidades. “Trope��lia” � um livro sobre escrever e fazer m�sica neste pa�s vivo, mas muitas vezes devorador de nossas possibilidades. Isso j� est� em “Ber�o de Judas”, primeiro livro do tr�ptico “Inferno dos Sentidos”. Digo tr�ptico e n�o trilogia, porque s�o mais pain�is mesmo, ou seja, tr�s quadros unidos por uma moldura. A moldura � o �xodo rural. Gosto do di�logo com outras artes e em especial com as artes pl�sticas. No caso desses tr�s romances, o que est� em mente � o tr�ptico “O Carro de Feno”, de Hieronimus Bosh, claro que s� como inspira��o.