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Estado de Minas

Martha Batalha: 'Saber escrever � uma arma valiosa'

Autora de 'A vida invis�vel de Eur�dice Gusm�o' lan�a o terceiro romance, 'Chuva de papel': '� a hist�ria do relacionamento entre pessoas bastante diferentes'


12/05/2023 04:00
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Martha Batalha
Martha Batalha (foto: companhiadasletras/divulga��o)

 

 Joel Nascimento, jornalista. Meio s�culo nas reda��es cariocas lidando com os dramas dos outros, especialista em transformar trag�dias cotidianas em relatos extraordin�rios, forjado na profiss�o no tempo em que “nem todas as hist�rias eram felizes, a maioria n�o era, mas os rep�rteres naquele momento eram”, testemunha de crimes e contraven��es, representante de uma gera��o que acredita ter for�ado o Rio de Janeiro a enxergar uma cidade nada maravilhosa, o principal personagem de “Chuva de papel”. 

 

Homem feito de jornalismo, que n�o enxerga diferen�a entre o que � o que faz, Joel Nascimento procura a forma mais eficiente de se matar. 

 

A informa��o n�o pode ser considerada um spoiler; est� na abertura do novo romance de Martha Batalha, autora do best seller “A vida invis�vel de Eur�dice Gusm�o” (2016) e de “Nunca houve um castelo” (2018). “Queria contar uma hist�ria sobre o relacionamento poss�vel entre pessoas bastante diferentes”, define Batalha, em entrevista ao Pensar.

 

Nascida no Recife, Martha Batalha cresceu no Rio, onde trabalhou em grandes jornais at� trocar o jornalismo pelo mercado editorial. Fundou a editora Desiderata antes de se mudar para Nova York. A autora passou as �ltimas semanas no Brasil para eventos de lan�amento em diversas capitais. A divulga��o presencial contribuiu para o primeiro feito de “Chuva de papel”, que chegou � primeira reimpress�o em menos de tr�s meses.

 

Com agilidade, gra�a e di�logos coloquiais, Martha Batalha imp�e o ritmo da narrativa de “Chuva de papel”. Sutis mudan�as de vozes narrativas, �s vezes dentro do mesmo par�grafo, permitem � autora expandir o universo em desencanto do rep�rter veterano para Gl�ria e Aracy, as figuras femininas que atravessam o caminho do protagonista ap�s a tentativa de suic�dio. A habilidade em tra�ar personagens emp�ticos novamente se destaca na prosa de Batalha, agora tamb�m em sintonia com fatos recentes, a exemplo do isolamento provocado pelo primeiro ano da pandemia, e o lamento com a degrada��o do Rio de Janeiro, descrito como “um pastiche de si mesmo” e t�o personagem do livro quanto Joel, Gl�ria e Aracy.    

 

“Joel s� existia quando contava uma hist�ria”, lembra o narrador de “Chuva de papel”. Martha Batalha contou a hist�ria de Joel, um de seus “amiguinhos imagin�rios”. Agora Joel existe nas p�ginas e, no futuro, nas telas. “O produtor Rodrigo Teixeira (RT Features) comprou os direitos mesmo antes de eu come�ar a escrever o livro”, conta a escritora, referindo-se ao mesmo respons�vel pela produ��o de “A vida invis�vel”, dirigido por Karim �inouz e vencedor da mostra “Um certo olhar” no Festival de Cannes de 2019. Leia, a seguir, outros trechos da entrevista da escritora ao Pensar:

 
 

“Escrever � saber lidar com uma parte da mente completamente racional, que vai se preocupar com senten�as, ritmo, narrativa, e com a outra parte, guardada no subconsciente, onde fica a percep��o de mundo.” 

 
Como nasce “Chuva de papel”? 
Queria contar uma hist�ria sobre o relacionamento poss�vel entre pessoas bastante diferentes. Joel, o protagonista, � um rep�rter de pol�cia amargurado e que n�o v� muito mais sentido em estar no mundo. Gl�ria � a dona de casa que o abriga depois de uma peculiar e hil�ria tentativa de suic�dio. Se pudessem, eles n�o escolheriam a companhia um do outro, e t�m que aprender a conviver.  
Acho que este livro tamb�m nasce de um desejo de elaborar minha experi�ncia como rep�rter dos principais jornais cariocas. Devo muito a esses anos de trabalho intenso. Como rep�rter tive acesso a partes da cidade e dramas que n�o conheceria de outra forma, desenvolvi empatia e entendi melhor o Rio e seus habitantes. N�o � uma profiss�o f�cil, demanda preparo f�sico, mental e psicol�gico, e sempre achei fascinante como alguns rep�rteres mais velhos foram capazes de passar d�cadas nas reda��es. Eram os anos 1990, e uma amiga da �poca definiu bem o que foi a experi�ncia para n�s: tivemos acesso a um portal onde, atrav�s desses velhos rep�rteres, fomos apresentadas a um Rio complexo e por vezes antigo. Joel � fruto dessa experi�ncia. Hoje as reda��es s�o diferentes, menores, e o Rio com esses rep�rteres j� n�o existe.  
 
“A mat�ria dos rep�rteres de pol�cia era a imperman�ncia”, diz uma das passagens do livro. Como tornar permanente um personagem que trabalha com a imperman�ncia? O que a atraiu a desenvolver uma narrativa protagonizada por um veterano rep�rter de pol�cia, um profissional que “s� existia quando contava uma hist�ria”?
A literatura faz isso bem. Ela consolida nas p�ginas os personagens, e para que se tornem memor�veis, ou permanentes, � preciso criar personagens sejam �nicos, imperfeitos e contradit�rios, como n�s. Se n�o for assim o que vai para a p�gina ser� o clich� de um personagem, e neste caso ele se enfraquece e ser� facilmente esquecido. Joel � ao mesmo tempo cretino e fascinante, um homem que sabia tudo sobre o Rio e foi ferido pela intensidade dos assuntos que reportou. Tentei despertar empatia por esta figura que viveu para mostrar a cidade aos seus habitantes e s� se sentia vivo e completo nas reda��es. O livro �, de certa forma, a tentativa do protagonista de encontrar sentido fora das reda��es e na conviv�ncia com esta dona de casa, a Gl�ria e, mais adiante, com a Aracy. 

Acredita que os escritores, como os rep�rteres, tamb�m “lidam com o absurdo e o acaso”?
O mundo da fic��o � muito mais seguro. A gente pode inventar o que quiser e tem total controle da narrativa. Mas se voc� est� se referindo ao processo de escrita, eu acredito, sim, no acaso. Ou, mais especificamente, no papel do subconsciente na hora de criar. Escrever � saber lidar com uma parte da mente completamente racional, que vai se preocupar com senten�as, ritmo, narrativa, e com a outra parte, guardada no subconsciente, onde fica a percep��o de mundo.

Como as atividades jornal�stica e editorial, por voc� j� desempenhadas, influenciam na sua produ��o liter�ria e, especificamente, contribu�ram para “Chuva de papel”?
Na reportagem eu aprendi a escrever r�pido e sob press�o, a cumprir prazos, a identificar o que � o mais importante na narrativa e o que devo colocar ou tirar de um texto. Na edi��o eu aprendi a ver um texto em blocos, para mover para frente o principal, tirar os excessos, refazer outras partes. S�o conhecimentos valiosos que me ajudam na escrita e a me colocar no mundo. Ali�s, saber escrever � uma arma valiosa para qualquer pessoa. No meu caso, tudo foi feito com repeti��o. Anos e anos de pr�tica, milhares de horas de escrita e de edi��o. Eu treinei meus olhos e mente. Hoje, quando estou lendo um livro e descubro algum par�grafo ou palavra desnecess�ria, minha m�o se co�a para eu pegar um l�pis e rasurar. 

O Rio de Janeiro que aparece no livro � habitado por pessoas que carregam “as marcas de uma tristeza coletiva”. Acredita que “Chuva de papel” traz uma vis�o desencantada da cidade onde voc� foi criada? Esta � a sua vis�o?
Na parte que voc� cita o narrador do livro est� falando sobre as cariocas. Para o narrador, h� nas cariocas as marcas de uma tristeza coletiva, que elas tentam disfar�ar – at� delas mesmas – com roupas estampadas e bijuterias imensas. As cariocas s�o exageradas no jeito de se falar e vestir. Para o narrador � uma forma positiva de lidar e replicar os exageros da cidade, e como rea��o ao que h� de ruim. O Rio � intenso e complexo. Foi a �nica cidade das Am�ricas que fez as vezes de capital europeia ao receber a fam�lia real portuguesa. Foi capital do Brasil at� os anos 1960. Desde ent�o a cidade vem se esvaziando, empobrecendo, e a viol�ncia se intensificando. Recentemente o estado teve cinco ex-governadores presos e um afastado do cargo por corrup��o. Pessoalmente, acho que existe no Rio encanto e desencanto, e n�o posso reduzir em poucas frases o entendimento dessa cidade t�o complexa. 

“Os brasileiros t�m uma por��o de pessoas por dentro, v�m das novelas”, defende uma das personagens. Voc� tamb�m carrega uma por��o de pessoas em sua imagina��o?
Tenho muitos amiguinhos imagin�rios! Tem uma piada aqui nos Estados Unidos sobre bloqueio na hora de escrever, algo mais ou menos assim: Bloqueio da imagina��o (ou writer’s block) � quando seus amiguinhos imagin�rios n�o querem mais falar com voc�.  Sobre esse assunto gosto do conceito de “Frantum�glia” da Elena Ferrante, que � o conjunto de lembran�as, sensa��es, viv�ncias, tudo mesmo, que a gente experiencia. A tradu��o poderia ser algo como “murundu pessoal”, intransfer�vel, e que os escritores e os artistas, traduzem e elaboram no plano racional com sua arte. Ent�o sim, eu carrego muito na minha imagina��o. 

Como conseguir, em uma realidade cada vez mais dominada pela comunica��o fragmentada das redes sociais e outras fontes de distra��o, “o descolar do entorno para o mundo superior das ideias”?   
Ah, menino, � tirando da parede o cabo da internet e deixando o telefone no outro quarto. Escrevo de um computador sem internet. N�o tem erro. A musa chega rapidinho, a escrita sai que � uma beleza. 

Uma das partes do livro se passa no primeiro ano da pandemia e s�o citados fatos que ocorreram no Brasil. Como foi levar um tema ainda t�o atual para a literatura?
Foi um desafio. “Chuva de papel” n�o � um romance sobre a pandemia ou sobre o governo Bolsonaro. Mas era imposs�vel colocar personagens vivendo em 2020, no Brasil, sem ter suas vidas tocadas por estes temas. Mas o que aparece, creio eu, s�o pinceladas. 

Voc� acaba de fazer a divulga��o do livro em diferentes cidades do Brasil com bate-papos e aut�grafos. O que foi mais marcante nesses lan�amentos? Quais as diferen�as para os lan�amentos de livro que acompanha nos EUA?
Leitores s�o como o cosmo. A gente sabe que eles existem, mas n�o tem muita ideia de como s�o. Nesse tour eu tive contato direto com eles. Foi para mim uma experi�ncia memor�vel, emocionante, cheias de beijos e de abra�os, a primeira que tive na carreira. Eu n�o tinha ideia de como meus livros podiam tocar tanto as pessoas, e me senti muito realizada. Aqui nos Estados Unidos esse tipo de tour � muito comum, talvez com menos abra�os! 

O que une Joel Nascimento e Eur�dice Gusm�o?
A busca por uma vida poss�vel, e por contentamento, apesar de n�o terem se realizado como gostariam. Algo que acontece com todos n�s. 
 
 

“Chuva de papel”

  • De Martha Batalha.
  • Companhia das Letras.
  • 224 p�ginas.
  • R$ 64,90.  

Trecho


“� maio e � estranho. Joel conhecia as ruas vazias pela ronda na cidade durante as primeiras horas do ano, quando a explos�o de otimismo dos cariocas j� havia se dado e arrefecido, como os fogos de artif�cio espocando em cima do mar, as velas brancas apagando-se nos buracos na areia, as oferendas de rosas e palmas a Iemanj� sumindo ap�s a arrebenta��o. Mas � um dia da semana no meio da manh�. A cidade parece um cen�rio � espera do elenco. Lojas fechadas, cal�adas vazias, sinais vermelhos sem os meninos colocando os saquinhos de bala nos retrovisores. Um Rio numa constante primeira manh� do ano, o Rio de f�rias do Rio.” 


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