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Estado de Minas PENSAR

Romance do Nobel Patrick Modiano, 'Um circo passa' chega ao Brasil

Livro do escritor franc�s foi lan�ado em 1992 e s� agora chega ao mercado nacional, com tradu��o de Bernardo Ajzenberg


19/05/2023 04:00 - atualizado 18/05/2023 23:52
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Abertura um circo passa
Wilker Sousa
Especial para o EM
 
Embora tenha publicado dezenas de livros desde a estreia em 1968, � como se Patrick Modiano escrevesse apenas um. Suas obras orbitam em torno de um conjunto de motivos autobiogr�ficos que, retomados e transfigurados � exaust�o, resultam numa po�tica de embaralhamento de vivido e inventado. O principal deles � a Ocupa��o nazista em Paris, per�odo em que seus pais, um judeu franc�s e uma atriz belga, se conheceram e o conceberam. Tempo em que falsear a identidade podia despistar os nazistas, mas tamb�m desperceber liga��es com eles. O casal usou pseud�nimos e a motiva��o, no caso do pai, que usou v�rios, foi amb�gua. 

Entre 1942 e 1943, chegou a ser capturado duas vezes pela Gestapo francesa. Na primeira, fugiu e, na segunda, foi solto supostamente gra�as a um amigo colaboracionista. Teria compactuado com o regime ou, para sobreviver, restou se aproximar de pessoas de �ndole duvidosa? Em que medida v�tima ou culpado? Quem eram afinal ele e outras tantas pessoas sob essas m�scaras naqueles anos sombrios? Por for�a disso, mais que cen�rio, a Ocupa��o � um mito de origem obsessivamente revisitado pelo autor e cuja marca maior � a incerteza identit�ria. 

O entrecho de “Um circo passa”, romance de 1992 e agora traduzido pela primeira vez no Brasil por Bernardo Ajzenberg, em lan�amento da editora Carambaia, � ambientado na Paris dos anos 1960, quando o narrador Jean, aos dezoito, se apaixona pela intrigante Gis�le, tr�s anos mais velha. A essa camada temporal somam-se duas: o momento do qual o narrador, j� maduro, revisita a hist�ria com Gis�le e os anos 1940, a malfadada heran�a paterna que ele pena para expurgar. 

Para al�m da figura do pai, h� outros pontos de encontro com a biografia do autor, cujo nome de batismo � Jean Patrick Modiano e que passou a juventude em Paris na d�cada de 1960. Mas, a come�ar por Gis�le, o n�cleo principal da trama � composto de personagens inventados. Estamos, portanto, no terreno da fic��o. 

Ainda que mais distante no tempo e aludida apenas vez ou outra no desenrolar policialesco dos acontecimentos, a Ocupa��o � o estrato temporal de maior relev�ncia narrativa. � uma �poca eterna da qual as outras n�o passam de repeti��es, simulacros, engenhoso mecanismo modianiano que aparece, entre outras obras, no romance “Vila Triste”, de 1975, no qual a Paris ocupada subjaz a guerra da Arg�lia.

A for�a do trauma


A for�a desse trauma original � materializada sobretudo no apartamento do cais Conti. Jean o divide com Grabley, um velho faz-tudo de seu pai nos neg�cios. O pai fugiu h� pouco para a Su��a, mas permanece como assunto de conversas e como passado nebuloso impregnado na casa. Quando, metido em apuros, Jean observa da janela a paisagem deserta, identifica o mesmo sil�ncio que o pai “certamente conhecera durante as noites da Ocupa��o, atr�s da mesma janela”. Conclui, tamb�m assertivo, que o homem de sobretudo marrom com quem se encontrou num caf� e agora o persegue � o sujeito encarregado de encontrar judeus clandestinos que vinte anos atr�s bateu � porta do apartamento e continuar� a repetir sua miss�o “por toda a eternidade”. 

Em seu quarto h� uma velha estante com livros deixados por um locat�rio anterior a seu pai, um escritor em cuja obra “A ca�ada” narra mem�rias, algumas vividas ali. Trata-se de uma refer�ncia indireta a Maurice Sachs, pseud�nimo de Maurice Ettinghausen, judeu franc�s colaboracionista que praticava neg�cios escusos durante a Segunda Guerra, elementos que o aproximam ora de Jean, aspirante a escritor, ora de seu pai, judeu envolvido com atividades suspeitas e sobre quem paira o fantasma do colaboracionismo. � como se pai e filho, porque moradores do apartamento, fossem atravessados � revelia pelo espectro de Sachs, por uma hist�ria nefasta que neles repercute com varia��es sutis.

Mesmo fora do cais Conti, Jean � ref�m dessa tormenta. Em uma delegacia conhece Gis�le, onde ambos dep�em. Ela diz ter comparecido na condi��o de testemunha, ele afirma desconhecer as pessoas citadas pelo investigador, mas ambos n�o inspiram confian�a. Mais que a beleza, arrebatam-no a aura enigm�tica e o comportamento erradio da jovem. Tudo o que vem dela, at� mesmo o nome, pronunciado apenas no segundo encontro, lhe soa incerto e o deixa com “a sensa��o de que jamais conseguiria ret�-la”. 

Ainda assim, ou qui�� por for�a disso, se deixa levar por Gis�le em uma rede de contatos suspeitos, como Ansart, cujo restaurante parece servir de fachada para uma suposta – e antiga – atua��o na clandestinidade. A ambiguidade dessas figuras, os encontros noturnos, a semiescurid�o dos ambientes, o suspense, as fugas, os delitos, tudo isso remete ao romance noir franc�s, subg�nero policial que nasceu justamente nos anos 1940 sob influ�ncia da atmosfera sombria da Ocupa��o. Mesmo vinte anos depois, Jean est�, portanto, enredado nessa atmosfera. 

Na imin�ncia de fugir com Gis�le para Roma, ele � tomado por uma euforia libertadora e passa a considerar irreal tudo ao redor – o apartamento do cais Conti, o n�cleo familiar, as pessoas com quem cruzou nos �ltimos dias, at� o sagu�o de um restaurante lhe parece “um desses lugares que frequent�ramos havia muito tempo e que revisitamos agora em sonho”. Afora si, considera reais apenas Gis�le e a vida que come�ariam do zero longe dali. A fuga �, portanto, redentora, “um salto para o futuro”. 

Cativo, por�m, desse pesadelo em que os rel�gios pararam na Ocupa��o, Jean fala qui�� de um salto para o presente, para um presente que n�o seja o arremedo de um passado nefasto, um presente em que ele se sinta um eu e n�o a proje��o de outrem. Do apartamento, pretende levar apenas os livros deixados pelo escritor antigo locat�rio do cais Conti. Sua companhia � Gis�le. Se fugir, saltar� mesmo para fora desse tempo? Quer saltar?

Wilker Sousa � jornalista, escritor e mestre em Teoria Liter�ria
 

Projeto gr�fico

Capa do livro Um circo passa
O projeto gr�fico da edi��o da Carambaia do livro de Modiano, idealizado por Ana Santiago e Asad Pervaiz, do est�dio Index, foi inspirado na circularidade do romance e na ideia do circo que passa pela capital francesa. A capa de hoje do Pensar, de J�lio Moreira e Paulo Miranda, foi criada com o mesmo conceito.
 

Sobre o autor

Apresentado, � �poca do an�ncio do pr�mio Nobel de Literatura, em 2014, como “Proust de nosso tempo”, Patrick Modiano nasceu no sub�rbio de Paris em 1945. Tem mais de 20 livros publicados e trabalhou tamb�m no cinema, com o argumento do longa-metragem “Lacombe Lucien” (1974), de Louis Malle. Ao aceitar o Nobel, o escritor lembrou as caminhadas que fazia pela capital francesa quando era crian�a. “Me tornei um prisioneiro da minha mem�ria de Paris”, comparou. 
 


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