
A fic��o de Jos� Eduardo Gon�alves transbordou. Ap�s duas d�cadas represadas pela dedica��o do autor � edi��o de produtos editoriais e curadoria de eventos liter�rios, as hist�rias imaginadas pelo jornalista e editor de 65 anos emergem em “Pistas falsas”, um extenso comp�ndio de narrativas breves. Nos momentos de excel�ncia, o livro alcan�a impacto id�ntico ao provocado por alguns dos grandes contos da literatura: o s�bito e surpreendente desalinho do que parecia estar sob controle. “O que est� por vir � o imprevis�vel – o caos, o drama, a perplexidade”, anuncia uma das passagens do lan�amento da editora Patu�, com aut�grafos �s 11h deste s�bado (3/6) na Livraria Jenipapo, em Belo Horizonte. E o an�ncio, quase sempre, se concretiza.
Agrupadas em seis se��es - “Vidas em desalinho”, “S� garotos”, “O tigre e outros bichos”, “Espantos”, “Nocautes” e “Pistas falsas” -, as hist�rias s�o costuradas por uma linha do “mundo em desarmonia, em permanente desalinho”, afirma Jos� Eduardo Gon�alves ao Estado de Minas. Com ele concorda Milton Hatoum, que destaca na apresenta��o: “O que fascina o leitor � a densidade das rela��es humanas, narradas com brevidade, precis�o e, quase sempre, com assombro, surpresa e (auto)ironia.”
Se o t�tulo se apropria de uma das imagens mais chamativas da m�sica “Luz e mist�rio”, parceria de Beto Guedes e Caetano Veloso, � na pr�pria literatura que “Pistas falsas” encontra o seu espelho. Mas as assumidas influ�ncias, algumas nominalmente citadas (Clarice, Borges, Hemingway), n�o chegam a eclipsar a voz do autor ao narrar hist�rias de fam�lias disfuncionais e amantes sofridos (dos quais sobrou apenas “a mem�ria de nossos corpos”, gente pequena que testemunha crime e gente grande de “cora��o inquieto”, personagens constitu�dos “de ossos, v�sceras e sentimentos enviesados” (“O perd�o”). O que aparenta ser um “itiner�rio de lembran�as”, devido �s “pistas falsas” assumidas na capa e em dois contos, �, na verdade, produto da a��o da lucidez, em trabalho meticuloso de revela��o de emo��es e oculta��o de excessos. Como no final devastador, “entre l�grimas e gritos”, de “Davi”.
Alguns contos, na tradi��o de Murilo Rubi�o e Jos� J. Veiga, saltam do prosaico ao extraordin�rio em um piscar de olhos. E, se as hist�rias de algumas se��es provocam maior impacto do que outras, em nenhum momento o livro resvala na banalidade. O personagem que intitula “O ca�ador” define assim o seu of�cio: “Enxergo o que os outros n�o enxergam”. Assim tamb�m s�o os contos de “Pistas falsas”, “um daqueles livros que ficam te olhando e te pedindo para entrar” (“Praia”). Tudo por causa da excel�ncia da “arquitetura do arremate”, para usar a express�o de outra hist�ria, “A formiga e a on�a”. Leitura conclu�da, resta a certeza de que, ao voltar para a “monotonia da realidade”, atravessamos “algo que, em sua ess�ncia, n�o fomos capazes de ver”.
A seguir, leia a entrevista do Pensar com Jos� Eduardo Gon�alves.
Como surgiram os contos de “Pistas falsas”? Quais os mais antigos e os mais recentes? Qual o hor�rio que eles foram escritos?
N�o publico fic��o h� 20 anos, mas jamais deixei de escrever, ainda que sem perspectiva de tornar p�blico este material. A partir de 2016 comecei a amadurecer a ideia de um livro, motivado por uma oficina de escrita com o professor Luiz Antonio de Assis Brasil, na AML. Durante a pandemia aprofundei o processo de escrita e ao final de 2021 j� tinha reunido quase todos os contos que julgava public�veis. O texto mais antigo est� inclu�do na s�rie “Pistas falsas”, mas o bloco “S� garotos” foi finalizado primeiro. A s�rie “O tigre e outros bichos” � a mais recente. Minha escrita inicial � quase sempre noturna, mas s�o sempre muitas vers�es, ent�o, depois da primeira, eu reescrevo em momentos diversos. Alguns contos sofreram ajustes mesmo depois da primeira prova impressa. O editor Eduardo Lacerda, da Patu�, foi bem generoso comigo.
As hist�rias est�o agrupadas nas se��es “Vidas em desalinho”, “S� garotos”, “O tigre e outros bichos”, “Espantos”, “Nocautes” e “Pistas falsas”. Como a sua experi�ncia de editor o ajudou a estabelecer essa divis�o? Poderia explicar o que levou em conta na divis�o?
Em primeiro lugar, creio que existe uma linha que costura as hist�rias. No geral, eu falo de um mundo em desarmonia, em permanente desalinho. O tema do fracasso ronda as rela��es entre casais, pais e filhos, vizinhos, e mesmo entre animais que falam, pensam e tomam decis�es � luz de uma pretensa racionalidade. Aos poucos, eu identifiquei a estrutura de blocos, criando um percurso narrativo para o leitor. Como editor, considero a forma de apresenta��o indissoci�vel do conte�do, ambos precisam dialogar. O objetivo final � alcan�ar o leitor. Algumas s�ries surgiram de forma clara, como as hist�rias envolvendo crian�as. J� a s�rie que encerra o livro, Pistas falsas, convoca a um tom mais memorial�stico, s�o todas na primeira pessoa, mas como o pr�prio t�tulo sugere, cuidado com o que parece verdade.
Por que a decis�o de, ap�s tantos projetos e edi��es de textos de outros autores, “viver outras guerras”, como a da fic��o, como escreve em “O cors�rio”?
Porque a fic��o � a grande chama que aquece e incendeia a literatura, e a literatura me interessa profundamente. Como leitor, como escritor, a literatura � parte essencial da minha vida, ainda que nada seja t�o importante como a pr�pria vida. Talvez nenhuma outra forma de arte permita ao seu criador uma investiga��o t�o profunda sobre ele mesmo. Pode n�o parecer, mas sou de natureza introspectiva e a fic��o me permite vadiar por outros ambientes, imaginar roteiros obscuros, inventar hist�rias de amor e desamor. Olha, convivendo com tantos autores, acabei com uma inveja danada de todos eles, essa � a verdade.
No conto “A armadilha”, voc� aponta “o problema dos enredos que nos escapam ao controle: personagens ganham autonomia pr�pria, hist�rias desandam, imprevis�veis”. Isso aconteceu em alguma hist�ria ou todas sa�ram como foram imaginadas?
Nenhuma das hist�rias foi imaginada como um todo – princ�pio, meio e fim. Eu parto de uma frase, quase sempre, ou mesmo de uma imagem. A frase me provoca a escrita, me incita, for�a a passagem, mas a coisa s� acontece na pr�pria escrita. Sei o que escrevo apenas enquanto escrevo, e talvez nem depois eu saiba. O imprevis�vel � parte do meu of�cio. Mas existe um trabalho rigoroso de composi��o, o texto n�o � uma entidade que baixa sobre voc�. � o caso do desfecho das hist�rias. Eu entendo que, em um conto, a primeira e a �ltima frase t�m de ser potentes. Eu crio intencionalmente a tens�o capaz de conduzir a um final surpreendente. Que eu n�o sei qual �. Acredite, eu serei sempre o primeiro a se surpreender.
Qual a mat�ria-prima mais presente em seus contos? Inven��o, observa��o ou mem�ria?
Inven��o, sem d�vida. Rezo no credo da imagina��o, como diria o Milton Hatoum. Mas o que �, de fato, a inven��o? At� onde ela � embebida pela mem�ria e pelas experi�ncias vividas? A mem�ria nos constitui, mas ela, em parte, � tamb�m inven��o. Um acontecimento que serve de mat�ria prima a um conto ser� sempre algo novo ao ser reaproveitado, ser� moldado pela fic��o. A mem�ria � tamb�m uma edi��o, n�o somos como Funes, o personagem borgeano que tudo guardava. H� muito de mim e de outros personagens reais nessas pistas que deixo aos leitores, mas o que escrevo n�o tem compromisso com a verdade. A frase final do livro, j� destacada pelo pr�prio Milton na 4ª capa, alude a esta faceta do fazer liter�rio.
Acredita que as hist�rias reunidas em “Pistas falsas” se filiam � tradi��o de contistas brasileiros, entre eles os mineiros? Quais os seus contistas favoritos?
N�o sei se me filio a alguma tradi��o, mas o certo � que Minas � uma terra de contistas excepcionais, entre os quais destaco Otto Lara Resende, Murilo Rubi�o e Guimar�es Rosa. O Brasil � uma terra de contistas admir�veis, como Clarice, Dalton Trevisan, Jo�o Gilberto Noll, S�rgio Sant’Anna, Rubem Fonseca e Lygia Fagundes Telles. Tenho uma predile��o pelos contistas de l�ngua inglesa, como Raymond Carver, Hemingway, Flannery O’Connor, John Cheever, Katherine Mansfield e o James Joyce dos Dublinenses, espetacular. Mas eu n�o seria nada sem Cort�zar e Kafka, autores da minha vida inteira.
Quais os maiores espantos que a literatura o proporcionou?
Kafka foi o maior deles. Conservo ainda uma edi��o portuguesa de seus contos, adquirida na ag�ncia de livros e jornais de S�o Jo�o del Rei. A leitura de Kafka foi um soco que me despertou. Ent�o este homem que se metamorfoseia em inseto � literatura? Aquilo me impressionou vivamente, eu tinha 16 anos e nunca mais fui o mesmo. Disparei a escrever como um doido, nunca mais parei. Quase na mesma �poca li “Besti�rio”, do Cort�zar, outro espanto que nunca me abandonou. E depois Faulkner, Virginia Woolf, essa turma que paira acima dos mortais. Mas, a rigor, eu n�o poderia deixar de dizer que sem a poesia n�o existiria a minha escrita. Sou leitor di�rio de Bandeira, Drummond, Hilda Hilst, Pessoa, Emily Dickinson, Cec�lia, Syzmborska e tantos outros, como a espetacular Ana Martins Marques. A poesia � um espanto cotidiano.
Voc� tamb�m olha a vida por meio dos livros que l�, como o personagem de “A ferida”?
Os livros contribu�ram para formar a ideia que tenho do mundo: vasto, indecifr�vel, imperfeito, fascinante. A leitura do conto “As neves do Kilimanjaro”, do Hemingway, realmente me levou a atentar para uma ferida � qual eu ignorara, at� ent�o. Mas, convenhamos: os livros oferecem tantas leituras, trilhas, camadas, que seria uma enorme confus�o ser pautado por eles. Os livros ajudaram a educar o meu olhar, mas n�o substituem o aprendizado da pr�pria vida.
Voc� � o idealizador, produtor e apresentador do “Letra em cena”. O que tem sido mais marcante na realiza��o do evento? Poderia citar dois encontros que foram particularmente inesquec�veis?
O mais incr�vel � a possibilidade de abrir portas para adentrar a obra de alguns autores. Um grande autor est� sempre aberto a releituras, uma grande obra nunca se fecha, � sempre inspiradora de novos achados. Isso me fascina no projeto. Os dois eventos que abriram o projeto s�o inesquec�veis: Jos� Miguel Wisnik brilhou ao abordar “Macuna�ma”, com leitura do Arildo de Barros, e o querido professor Ant�nio S�rgio Bueno nos emocionou com a interpreta��o cr�tica de “Grande Sert�o: Veredas”, ao lado do sempre arrasador Odilon Esteves.
Poderia comentar o seu trabalho na edi��o da cole��o “BH: a cidade de cada um”? Qual � a Belo Horizonte que voc� carrega nas lembran�as? E na revista “Olympio”, o que mais o marcou at� agora?
Este trabalho me absorve h� 20 anos, desde que criamos a cole��o, eu e S�lvia Rubi�o. Continuamos garimpando, � procura da pessoa certa para escrever sobre tal lugar. Editar � fazer escolhas. Respeito integralmente o estilo de cada autor, mas n�o abro m�o de agir como editor. A minha BH come�a na Pra�a Sete, pois morei ali, na esquina da Rio de Janeiro com Tupinamb�s, quando cheguei aqui, em 1976. J� a revista “Olympio” � um exerc�cio de edi��o coletiva, somos quatro editores, cada um com seu quinh�o de ideias. Nos une a paix�o pela literatura e o compromisso de oferecer material de alta qualidade. O que mais me marcou foi a entrevista com A�lton Krenak, um sujeito capaz de ampliar demais o nosso horizonte de apreens�o do mundo.
Voc� acompanhou – e participou – de diversas fases das atividades editorial e liter�ria em Minas Gerais. O que se destaca no atual momento e o que sente falta?
� um momento f�rtil, com boas editoras e projetos s�rios em curso. A Aut�ntica, por exemplo, faz um trabalho excepcional, no qual destaco a cole��o Contempor�nea. As livrarias de rua t�m feito bonito, apoiando as editoras menores e promovendo �timos encontros, mas o FLIR- Festival Livro na Rua precisa de apoio para se consolidar. O poder p�blico olha pouco para o segmento, a periodicidade claudicante do Suplemento Liter�rio de Minas Gerais � um exemplo vergonhoso.
Sinto falta de mais iniciativas com foco em literatura contempor�nea, j� que temos uma produ��o recente de alta qualidade. A onda � boa, o sucesso de uma autora como Carla Madeira � �timo para o mercado, os livreiros, os leitores e autores. Ganhamos todos quando um de n�s chega l� no alto, com reconhecimento e visibilidade.
Sobre o autor
Nascido em S�o Jo�o del-Rei em 1957, Jos� Eduardo Gon�alves � jornalista, editor e escritor. Autor dos livros “Cartas do para�so” (Mazza, 1998), “Vertigem” (Record, 2003) e “A cidade das mem�rias flutuantes” (Conceito, 2005), foi organizador do livro “Of�cio da Palavra” (Aut�ntica, 2014), premiado em 2015 como melhor livro te�rico do ano pela FNLIJ-Funda��o Nacional do Livro Infanto-Juvenil. Foi editor da revista de cultura “Palavra” (1999-2000) e � um dos editores da revista de arte e literatura “Olympio”.
“Pistas falsas”
- Jos� Eduardo Gon�alves
- Editora Patu�
- 172 p�ginas
- R$ 60
- Lan�amento presencial neste s�bado (03/06), de 11h �s 14h, na Livraria Jenipapo (Rua Fernandes Tourinho, 241, Belo Horizonte).

Duas hist�rias (Contos de “Pistas falsas”, de Jos� Eduardo Gon�alves)
A baleia
Nunca entendi muito bem as baleias. At� ser engolido por uma delas. Foi assim. Numa de minhas escapadas solit�rias, afastei-me da praia mais do que o habitual. Eu devia estar muito atordoado para n�o perceber que tinha ido longe demais. O barco foi destru�do em um temporal imprevisto, e eu, lan�ado ao mar sem qualquer esperan�a de sobreviv�ncia, tal a viol�ncia das ondas. Ela me salvou antes que eu afogasse. Agora n�o quero sair de Elo�. Aqui tenho tudo de que preciso, at� o carinho materno que sempre me faltara. Retribuo como posso. Retiro e devolvo ao mar todo o lixo que ela consome com ingenuidade – pl�sticos, tubos, seringas, embalagens, pneus, uma parafern�lia sem fim. Mantenho-a asseada, sem os entulhos indigestos. Alimento-me dos peixes que ela generosamente me oferta. N�o sei se um dia voltarei � terra firme. Em noites de lua, Elo� permite que eu v� at� a entrada de sua boca e admire o v�cuo escuro do c�u. Eu digo a ela: Querida, nunca entendi bem o universo.
*
A carta
Irene, querida, esta carta ser� a �ltima. Chega de lam�ria. Estou exausto com tudo isso. Sinto que chegamos ao momento que tanto tememos. Ao basta. Este amor sem freios, sem bordas onde segurar, nos levou longe demais. Fomos t�o ao fundo que n�o sei se conseguiremos voltar � superf�cie. Mas talvez haja uma chance – e � nela que me agarro. Esta � uma carta de despedida e tamb�m um convite. Salve-se tamb�m, se puder. O que resta de n�s depois de tanta entrega? O que foi a vida nos �ltimos anos sen�o o esgar�ar di�rio de todas as energias que acumulamos antes? Quando voc� se olha de corpo inteiro no espelho grande do quarto, o que voc� v�? Ainda � voc� que est� ali? Eu n�o consigo mais fazer o mesmo, me olhar de frente. Estou magro, Irene, magro e de olheiras t�o profundas que meus olhos precisam espernear para serem vistos. J� fui feliz ou me achava feliz, agora me acho apenas feio, castigado. Meu corpo exausto pede uma chance para viver. N�o lhe pedirei mais nada, eu juro. Desta vez saio mesmo de cena. L�cido, ou perto disso. Eu estava inebriado demais quando me juntei a voc�. �ramos perfeitos em nossa embriaguez. Por isso meu adeus � tamb�m triste. A sua fome desvairada de vida encontrou em mim a mesma avidez. A que nunca disse n�o �s minhas loucuras. A que atravessou madrugadas ao meu lado, catando gente na rua para uma temporada febril no inferno. Putas e travestis, garotas e garotos, n�o importa, valia qualquer um, qualquer coisa. Nas boates mais sofr�veis, em ruas silenciosas, pra�as abandonadas ou dentro do carro sob a luz b�bada de um poste, em uma cidade qualquer. E voc� dizia: sim. Nunca disse n�o, nem mesmo um talvez. Sempre sim sim sim. A minha Molly Bloom da sarjeta. Lux�ria, torpor, sangue e esperma, foram muitas as cicatrizes, os cheiros e as marcas que s� se reconhecia nas manh�s seguintes. Aquelas em que nos abra��vamos e chor�vamos, ou melhor, eu chorava em seus bra�os ainda cheirando a vodca e lavanda barata. Eu chorava porque aquilo tudo era eu – em minha vertigem. Cada vez mais fundo e sem nexo. Eu sempre flertei com o abismo, mas voc� me fez saltar nele. De m�os dadas. O par ideal para a insanidade. N�o haver� outra como voc�. Desde a primeira vez em que deslizou sua l�ngua no c�u de minha boca e depois, sorrindo, me pediu para que mordesse o bico de seu seio, e eu lhe pedi que fizesse o mesmo comigo, desde que os pedidos de um e outro come�aram a ser feitos sem que um e outro conseguissem recusar, entregando-nos a uma aventura brutal e sem limites, desde ent�o eu soube que este era um caminho sem volta. Porque era eu, eu em minha mais selvagem encarna��o. Eu idealizei uma vida assim, sem os adornos de sentimentos adocicados, crua, sem promessas de felicidade. Sexo sem qualquer exig�ncia de amor. Com um �nico detalhe: s� arriscamos tanto porque existia confian�a. T�nhamos um ao outro, de forma incondicional. � por essa confian�a, que nunca faltou entre n�s, que eu agrade�o e me despe�o. Estou faminto e despeda�ado. Preciso de sol. Salve-se tamb�m, Irene. O que fizemos est� feito, impresso de alguma forma na mem�ria de nossos corpos. Seria preciso morrer e nascer de novo para esquecer, pois s� a morte talvez n�o bastasse. E na verdade n�o quero esquecer nada, s� n�o quero viver tudo de novo. Hoje, temo a morte. Care�o de um outro tipo de coragem, a que me leva a tentar chegar at� a margem e escapar. E n�o olhar pra tr�s enquanto me cega a luz de um dia comum. Esta carta lhe dou de presente. Nem sei para onde mandar, mas ela ir� te encontrar. E quando ela chegar em suas m�os, acredite, eu estarei vivo.