
Ainda pequena, escrevia pequenos contos e enviava para o suplemento infantil que o jornal Di�rio de Pernambuco mantinha na �poca. Aos 9 anos, escreveu “Pobre menina rica”, sua primeira pe�a de teatro, que, por vergonha, escondeu atr�s de um dos m�veis de casa e acabou perdendo.
Tamb�m figurou por muito tempo no cora��o da escritora o per�odo que estudou no Col�gio Hebraico Brasileiro. “Aquele meu col�gio, alugado dentro de um dos parques da cidade, tinha o maior campo de recreio que j� vi. Era t�o bonito para mim como seria para um esquilo ou um cavalo. Tinha �rvores espalhadas, longas descidas e subidas e estendida relva. N�o acabava nunca”, conforme contou na noveleta “Travessuras de uma menina II”, publicada em 1970.
�, portanto, essa rela��o de Clarice Lispector com Recife que pretende mostrar o volume “Pedra d’�gua”, lan�ado recentemente pela Cepe Editora. Com texto de Clarice Hoffmann e ilustra��es de Greg, o livro joga luz a esse elo afetivo entre escritora e cidade por meio do ponto de vista de uma terceira pessoa: Esther, personagem criada por Hoffmann.
A g�nese criativa do livro partiu da pr�pria editora, em 2020. A ideia era fazer um material em quadrinhos que mostrasse a inf�ncia da escritora na capital de Pernambuco. Como Hoffman havia publicado no ano anterior a HQ “O obscuro fich�rio dos artistas mundanos: 1934-1958”, a Cepe decidiu que ela seria a melhor pessoa para desenvolver o novo projeto.
O que a editora n�o contava � que, a n�o ser pelo nome, Hoffmann n�o tinha nada em comum com a autora de “A hora da estrela”. Havia lido um livro ou dois, mas n�o era nenhuma f�, ou mesmo leitora fiel de Clarice Lispector.
"Quando chegou o convite, � claro que eu aceitei, porque n�o dava para negar. Mas confesso que entrei em p�nico”, brinca Hoffmann.
Com pouco material em casa, ela recorreu aos sebos, livrarias e aos amigos, acreditando que teria apenas o per�odo do carnaval para mergulhar na obra de sua xar�. Contudo, em 11 de mar�o, poucos dias ap�s o final da festa momesca, a Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS) decretou estado de pandemia em rela��o ao novo coronav�rus.
“Ficou tudo muito incerto”, lembra Hoffmann. “Acabou que o projeto tamb�m ficou um pouco incerto”.
Hoffmann aproveitou o per�odo de lockdown para mergulhar de cabe�a na obra de Clarice. Ao conhecer mais a fundo a produ��o da escritora, decidiu que n�o queria fazer uma HQ autobiogr�fica, que trouxesse Clarice crian�a, brincando com as amigas na escola e ensaiando sua voca��o liter�ria. Era um universo que a quadrinista n�o saberia abordar.
Ela at� cogitou adaptar algum texto que se passa no Recife ou que faz refer�ncias � capital pernambucana, mas logo descartou a ideia. “Ela tem muitas cr�nicas que tratam do per�odo em que ela viveu no Recife. S�o textos profundos e que n�o seguem uma linha (cronol�gica) de narrativa, eles flutuam muito pelas mem�rias dela. Ficaria dif�cil adaptar. Ent�o, resolvi n�o me atrever”, diz Hoffmann.
De s�bito veio a ideia: “Vou fazer uma personagem, pesquisadora, que, assim como eu, est� em busca dessa presen�a de Clarice pela aus�ncia dela no Recife”, revela a quadrinista.
Assim a hist�ria segue. A primeira frase da HQ j� d� uma dimens�o de quem � Esther, a personagem criada por Hoffmann: “Pensava mais em Clarice do que em sua pr�pria vida”.
Esther vaga pela cidade no intuito de encontrar os lugares que a escritora deixou registrados em sua obra. O Recife de Esther, contudo, � outro, modificado pelo tempo. As ac�cias amarelas e os palacetes com seus jardins repletos de rosas aveludadas sumiram. “Tombaram? Desapareceram? Ru�ram?”, pergunta a personagem.
Ela passa pela sinagoga da antiga Judaria da Boa Vista, observa os efeitos do tempo e continua sua caminhada em dire��o ao sobrado onde Clarice morou com a fam�lia. Cruza com outras pessoas que passam seguindo rumo ignorado e troca poucas palavras com quem a aborda.
“A senhora quer mais alguma coisa”, pergunta a gar�onete da lanchonete onde Esther entra para tomar um caf�. “Eu quero ser o outro”, responde para si mesma a protagonista.
Nessa busca pelo outro – no caso, por Clarice –, Esther descobre que jamais conseguir� encontrar a escritora no Recife do passado por um motivo muito simples: � imposs�vel retornar � capital pernambucana das d�cadas de 1920 e 1930.
Feita essa constata��o, ela come�a a enxergar o Recife de hoje com os olhos de Clarice, dando aten��o especial �s injusti�as sociais. S� assim, Esther consegue, finalmente, encontrar quem ela tanto procura. Como se chegasse a um nirvana, ela se transforma em um centauro e retorna aos lugares por onde passou, mas, dessa vez, observando-os por outra perspectiva.
Ainda que on�rico – e confuso em alguns momentos –, “Pedra d’�gua” � repleto de refer�ncias � obras de Clarice Lispector, que um leitor mais familiarizado com a autora identifica sem muita dificuldade.
Assim como em “A hora da estrela”, a HQ come�a sendo narrada em terceira pessoa e, na sequ�ncia, muda para a primeira. O conto “Mineirinho”, por sua vez, serviu de refer�ncia para cena na qual Esther se revolta com a morte de um jovem sentenciado como bandido pela opini�o p�blica sem comprova��o dos fatos. E, por fim, a transfigura��o de Esther num centauro � uma alus�o ao romance “Perto do cora��o selvagem”, no qual Clarice escreveu que, ao morrer, desejaria renascer como um cavalo.
“PEDRA D’�GUA”
- Clarice Hoffmann e Greg
- Cepe Editora
- 111 p�ginas
- R$ 70