
O processo de descoberta n�o foi f�cil, principalmente quando se leva em considera��o o fato de Kobabe ter nascido no final da d�cada de 1980 e passado sua juventude entre os anos 2000 e 2010, per�odo em que discuss�es a respeito de identidade de g�nero eram praticamente inexistentes - mesmo nos EUA, onde debates sobre esse tema avan�aram de maneira muito mais r�pida do que no Brasil.
Os percal�os - e foram muitos - de Kobabe nesse processo de autoconhecimento e autodescoberta s�o o tema da HQ “G�nero queer - Mem�rias”, que chega ao Brasil agora em junho pela editora Tinta da China.
Lan�ado originalmente em 2019, com uma tiragem t�mida para os padr�es editoriais - foram 5 mil c�pias -, “G�nero queer - Mem�rias” passaria despercebido, n�o fosse uma a��o orquestrada de autoridades do Partido Republicano, em 2021, na Carolina do Norte, Carolina do Sul, Texas e Virg�nia solicitando a proibi��o da HQ nas bibliotecas escolares por ela ser “pornogr�fica”.
Como dezenas de escola obedeceram os parlamentares, antes mesmo que qualquer debate fosse feito ou mesmo que decis�es jur�dicas a respeito do tema fossem tomadas, criou-se um mal-estar entre progressistas e liberais, dando um car�ter ainda mais pol�tico a uma discuss�o ins�lita, baseada na seguinte quest�o: quem deve decidir os t�tulos que integram os acervos das bibliotecas escolares?
A resposta deveria ser �bvia: bibliotec�rios e profissionais especializados na educa��o escolar. Contudo, em mais um epis�dio de polariza��o pol�tica, personalidades influentes da direita e da esquerda norte-americana tomaram as r�deas do debate, de modo que Kababe se viu em meio ao fogo cruzado, tendo sua obra questionada.
Muitas escolas, por medo de boicotes ou repres�lia de pais de alunos, acabaram por acatar a intimida��o travestida de sugest�o dos parlamentares republicanos e retiraram “G�nero queer - Mem�rias” de seus acervos. Detalhe: em nenhuma escola a leitura era obrigat�ria, a HQ apenas integrava o acervo da biblioteca.
O debate atingiu propor��es t�o grandes, que, de acordo com a Associa��o Americana de Bibliotecas e com a PEN America, organiza��o que defende a liberdade de express�o nos EUA, “G�nero queer - Mem�rias” se tornou o livro mais contestado no pa�s em 2021.
Conforme mostrou o "The New York Times", as pessoas que pressionaram pela retirada do livro dos acervos escolares reclamavam do conte�do sexual que h� na HQ. � �poca, o debate ganhou for�a, porque se discutia nos EUA direitos dos trang�neros, ap�s autoridades republicanas de diversos estados terem apresentado projetos de lei que criminalizavam a aplica��o de tratamentos m�dicos a crian�as transg�nero e que proibiam a discuss�o sobre identidade de g�nero nas escolas.
Mas “G�nero queer - Mem�rias” �, de fato, uma obra pornogr�fica?
A resposta � n�o. As pessoas se esquecem que, por defini��o, a pornografia vai al�m da exposi��o da pr�tica sexual, tendo como objetivo estimular a excita��o sexual.
H�, sim, em “G�nero queer - Mem�rias”, cenas que remetem � pr�ticas sexuais - sendo uma �nica representa��o de sexo expl�cito -, no entanto, s�o cenas fundamentais para o desenvolvimento e entendimento da hist�ria. N�o est� ali o sexo pelo sexo, de maneira vulgar e indecente.
Assim, pedir o boicote da HQ seria equivalente a pedir a censura de "Cama francesa" (1646), de Rembrandt; e "O jardim das del�cias terrenas" (1504), de Bosch, telas constantemente exploradas em aulas de hist�ria da arte.
Nada disso tem car�ter pornogr�fico. Em termos etimol�gicos, pornografia vem do grego “p�rne” (prostituta), e “p�rnos” (que se prostitui), al�m de “pornographos” (autor de escritos sobre a prostitui��o). Todos esses termos, portanto, remetem a uma ideia de neg�cio, compra e venda, justamente o contr�rio do que pretendia Rembrandt, Bosch e, agora, Kobabe.
Com “G�nero queer - Mem�rias”, Kobabe pretende mostrar aos n�o-bin�rios qual a condi��o deles e o que, ou a quem essas pessoas podem recorrer para n�o sofrerem o que sofreu e que foi narrado no livro.
Na HQ, Maia Kobabe se exp�e sem pudores e de maneira corajosa. No in�cio do livro, revela que n�o tinha o menor interesse em escrever uma autobiografia. S� o fez porque estava fazendo um mestrado em quadrinhos e uma das disciplinas exigia dos alunos uma produ��o em graphic novel da pr�pria vida.
“Uma boa forma de come�ar � fazer uma lista com os seus maiores segredos - pelo menos um deles pode render uma hist�ria”, disse a professora. “Nunca”, respondeu Kobabe mentalmente. “Ningu�m mexe nos meus segredos. Eles s�o meus!”, completou.
Kobabe, no entanto, foi se rendendo � proposta da professora. Colocou no papel seu processo de descoberta como pessoa de g�nero n�o-bin�rio. Para isso, lembrou desde os tempos de inf�ncia, quando n�o percebia diferen�as que tinha com vizinho e melhor amigo, Galen.
Na escola, tinha comportamentos tido como de meninos, o que confundia seus coleguinhas. “Afinal, voc� � menino ou menina?”, era a pergunta que Kobabe mais ouvia. No entanto, n�o desagradava. Essa d�vida dava uma sensa��o de bem-estar.
A adolesc�ncia, no entanto, foi um dos per�odos mais dif�ceis. A come�ar pela primeira menstrua��o, seguida das c�licas, insuport�veis. Quando chegou na �poca em que os amigos come�aram a namorar, Kobabe n�o sentia atra��o por meninos nem por meninas. Tinha vontade de ter um corpo masculino, mas n�o de se relacionar com uma mulher. N�o entendia onde se encaixava.
Tentou at� engatar dois relacionamentos, um heterossexual e outro homossexual, mas n�o havia libido e nem mesmo interesse em manter um namoro.
Os t�rminos, narrados sem constrangimentos por Kobabe, foram frios e secos - ambos foram por telefone -, de modo que, por muito tempo, Kobabe alimentou a ideia de que seria uma pessoa fleum�tica.
Quando fez o primeiro exame papanicolau, experimentou pela primeira vez uma penetra��o. “Senti como se tivesse sido esfaqueada no corpo inteiro e com isso veio uma onda de completo horror”, escreveu. “O que meu corpo me contou ali foi que essa invas�o do meu interior f�sico pelo mundo exterior era uma coisa errada num n�vel profundo demais para ser posto em palavras”, continuou.
O trauma aumentou em Kobabe a avers�o ao pr�prio corpo e deu a certeza de que fazer as pazes com ele seria algo imposs�vel. S� descobriu que existia pessoas de g�nero n�o-bin�rio quando teve contato com o livro “Tocando o nervo: o eu no c�rebro”, da fil�sofa anal�tica Patricia Churchland.
Com Churchland, Kobabe aprendeu de maneira biol�gica como que era poss�vel ter um �rg�o sexual feminino, mas o c�rebro masculinizado. Aprofundou os estudos sobre o tema e descobriu o g�nero neutro (com os pronomes “elu” e “ile”), justamente o que procurava para se definir.
Kobabe se encontrou e, finalmente, achou quem compartilhasse experi�ncias e dramas semelhantes devido a uma falta de identidade. Para essas pessoas, "G�nero queer - Mem�rias” � um importante guia para a autodescoberta. J� para quem se enquadra na heteronormatividade, a HQ � um importante manual para quebrar preconceitos.
“G�NERO QUEER”
- Maia Kobabe
- Clara Rellstab
- Tinta da China
- 240 p�ginas
- R$ 99