(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas PENSAR

Musical 'Cabar� Coragem' � mais um ponto alto na trajet�ria do Grupo Galp�o

Divertido e contundente, espet�culo se apropria de personagem de Brecht e une can��es com acrobacias


21/07/2023 04:00 - atualizado 20/07/2023 23:27
671

Mais recente montagem do grupo mineiro Galpão, 'Cabaré Coragem' teve estreia nacional em junho em Belo Horizonte
Mais recente montagem do grupo mineiro Galp�o, "Cabar� Coragem" teve estreia nacional em junho em Belo Horizonte (foto: Mateus Lustosa/Divulga��o)

 

Teodoro Renn� Assun��o *

Especial para o EM

 

Prefiro come�ar esta breve resenha cr�tica delineando a composi��o do texto de “Cabar� Coragem” como uma colagem de cita��es e apropria��es livres fragmentadas (mas tamb�m com v�rias atualiza��es e inser��es externas de textos e can��es que n�o s�o de Brecht, �s vezes acompanhados de n�meros de acrobacias ou de coreografia) sobretudo das pe�as musicais ou operetas de Brecht com Kurt Weil (“A �pera dos tr�s vint�ns” e “A ascens�o e queda da cidade de Mahagonny”), mas tamb�m com a apropria��o da personagem de “M�e Coragem” da pe�a de Brecht “M�e Coragem e seus filhos,” assim como das m�ximas e f�bulas paradoxais do Sr. Keuner (reunidas no livro “Hist�rias do Sr. Keuner”). 

 

A impress�o � a de que aquilo que � representado no palco (ou narrado dramaticamente) � n�o exatamente uma hist�ria �nica (com seus antecedentes, epis�dios sequenciados e desfecho) e com personagens bem desenvolvidos, mas a de uma sucess�o de quadros musicais ou de breves recitais de frases ou piadas que t�m uma relativa autonomia e visam a uma explicita��o c�mico-cr�tica da mis�ria e injusti�a da atual sociedade brasileira, regida por uma l�gica b�sica cruel que continua a ser a do capitalismo contempor�neo (com suas guerras, viol�ncias e concentra��o crescente da riqueza na m�o de poucos), e a uma tomada de posi��o mais firme contra a explora��o (semelhante � do grupo de atores/cantores do “Cabar� Coragem” contra a M�e Coragem que os explora, mas que por sua vez seria explorada pelos verdadeiramente ricos, algo que a f�bula dos peixinhos e dos tubar�es sugere com clareza). Tal como resumidamente acabamos de o descrever, � j� evidente que a perspectiva engajada do teatro de Brecht (tamb�m retomada nesta miscel�nea musical do Galp�o) � marxista, mas, no entanto, n�o a de um marxismo f�cil e de cartilha, e sim o de uma sempre contundente e bem-humorada reinven��o dial�tica do marxismo.

 

E se nos pergunt�ssemos pela autoria do texto e do roteiro da pe�a – que, como vimos, � apenas uma mistura musical livre de v�rios fragmentos de Brecht com outros elementos variados n�o encontr�veis em suas pe�as –, n�o poder�amos indicar um nome individual, mesmo que a dire��o seja de J�lio Maciel e conte com a supervis�o  dramat�rgica de Vin�cius de Souza, pois esta autoria (como j� aconteceu tamb�m com outras pe�as recentes do Galp�o) � coletiva, envolvendo os atores da pe�a (al�m dos que exercem dire��es e supervis�o) e resultando de uma esp�cie de laborat�rio experimental pr�vio inspirado primeiramente pela leitura e apropria��es de Brecht, mas contando tamb�m com a inven��o de breves cenas ou quadros musicais pr�prios a um cabar� brasileiro mais escrachado e decadente. 

 

Mas seria preciso observar tamb�m, como um dado sens�vel desde o in�cio, a mistura, na parte em frente ao palco com suas mesas como as de um cabar� (sendo que um “bar” externo � sala de espet�culos continua aberto e vendendo bebidas no come�o do espet�culo e durante o intervalo), entre os atores e os espectadores que s�o �s vezes interrogados por aqueles e participam da pe�a tanto com suas respostas individuais quanto com seus aplausos e vozes acompanhando as can��es. Mas, ainda assim, fisicamente um palco continua a existir (n�o sendo ocupado por nenhum espectador durante a pe�a) e os atores se distinguem tanto por seu vestu�rio mais extravagante quanto por posturas mais din�micas (�s vezes coreogr�ficas) do que as dos espectadores que est�o apenas sentados. Os atores (que, no intervalo, tamb�m se aproximam e se dirigem diretamente � plateia em pontos mais afastados do palco) �s vezes conversam diretamente com o p�blico (num procedimento j� presente na par�base do teatro grego, no pr�logo e no ep�logo do teatro elizabetano ou na Comedia dell’Arte), como se indicando ou revelando explicitamente por sua atitude (e �s vezes tamb�m pelo conte�do do que dizem) que toda esta experi�ncia n�o passa de um teatro (como j� o antecipa a primeira can��o: “Teatro, no fundo �s puro teatro,/ falsidade ensaiada,/ estudado simulacro”), no qual o p�blico n�o deve imergir de todo, justamente para – bem consciente do fen�meno mesmo da representa��o – poder pensar melhor sobre o que est� sendo representado. 

 

E assim como o p�blico deve perceber bem n�o s� a personagem representada pelo ator, mas tamb�m o pr�prio ato da representa��o teatral, distanciando-se da personagem, ele (o p�blico) deve tamb�m se distanciar de uma identifica��o ou empatia direta com a personagem (ou her�i tr�gico/c�mico) para perceber melhor a sua fragilidade e mis�ria socialmente determinadas e o quanto elas poderiam ser modificadas por uma a��o pol�tica esclarecida. O pr�prio Brecht (que conheceu pessoalmente e foi inspirado nisso pelo russo Meyerhold) chamou, em suas teoriza��es, este efeito de “estranhamento” ou “distanciamento” (Verfremdung), reconhecendo nele uma virtude eminentemente did�tica e pol�tica, e denominou este tipo de teatro narrativo como “�pico”. Esta virtude did�tica e pol�tica – a partir da extrapola��o do espet�culo teatral para o que chamamos de “realidade” (com sua b�sica dimens�o social) – foi muito bem descrita assim por Roberto Schwarz: “Ao sublinhar a parte do fingimento na conduta teatral, a parte da coisa feita, Brecht quer ensinar que tamb�m as condutas da vida comum t�m algo de representa��o, ou por outra, que tamb�m fora do teatro os pap�is e a pe�a poderiam ser diferentes. Trata-se de entender (...) que na realidade como no teatro os funcionamentos s�o sociais e, portanto, mud�veis.” (“Altos e baixos da atualidade de Brecht” no livro “Sequ�ncias brasileiras”).

 

 

As apar�ncias enganam

 

A produ��o deste efeito de estranhamento no p�blico (tanto no que se refere � pr�pria representa��o teatral quanto � opressiva realidade ordin�ria em que ele tamb�m se encontraria) � j� bem-marcada pela primeira grande fala de Singapura (In�s Peixoto) diretamente para o p�blico, com uma �nfase final na import�ncia da a��o pol�tica: “Mas mantenham os olhos sempre abertos. As apar�ncias enganam, senhores e senhoras! Desconfiem de tudo que parece est�tico demais e analisem sobretudo aquilo que parece habitual. Nada � imposs�vel de mudar!” No entanto, logo depois, a personagem se torna reflexiva e auto-ir�nica, com um toque de escracho ao adotar latino-americanamente o espanhol, ainda que lembrando tamb�m da sua mis�ria presente: “Ay, estoy pol�tica, estoy confusa, estoy tantas cosas… Tengo hambre! Fome!”. E, como uma esp�cie de enquadramento para o conjunto da pe�a, uma fala muito parecida de Singapura (In�s Peixoto) para o p�blico, com uma advert�ncia dial�tica sobre o car�ter ilus�rio das apar�ncias e a fundamental instabilidade das coisas (e uma frase final que ecoa algo de Guimar�es Rosa), conclui a pe�a (abrindo-se para uma “realidade” que desafiadoramente continua ap�s o seu t�rmino): “Mas mantenham os olhos bem abertos. As apar�ncias enganam, senhoras e senhores! O que � seguro n�o � seguro e assim como est� n�o permanece. Nada es lo que parece. E n�o se esque�am que viver neste mundo � sempre muito perigoso!” 

 

Mas � preciso indicar, al�m disso, o quanto � importante tamb�m neste teatro engajado e pol�tico (e, a seu modo, reflexivo e filos�fico) o prazer ou o divertimento (tanto para a plateia quanto para os pr�prios atores) que vem de um espet�culo musical ao vivo (aqui com arranjos e trilha sonora de Luiz Rocha, que tamb�m � um dos atores), uma vez que os atores do Galp�o – segundo uma tradi��o que vem de longa data – se tornam tamb�m instrumentistas e bons cantores e eventualmente bons dan�arinos, dando ao conjunto da pe�a um ritmo bem mais leve do que aquele que seria composto apenas por di�logos entre as personagens. Pois, como diz o pr�prio Brecht em uma das “Indica��es para os atores” cujo t�tulo � “Ser agrad�vel” (usando no texto mesmo do aforisma o singular): “Ele [o ator] deve representar tudo com prazer, especialmente o horr�vel, e mostrar o prazer que tira disso. Quem n�o ensina divertindo e n�o diverte ensinando n�o tem nada o que fazer no teatro.” (No livro “Sobre a profiss�o do ator”).

 

Darei agora dois exemplos ou desdobramentos (que se destacam no conjunto da pe�a) do que acabou de ser sugerido no par�grafo anterior sobre o espet�culo prazeroso: 1) as acrobacias e malabarismos incrivelmente �geis e eficazes de Eduardo (Moreira) e Toninho (Ant�nio �dson) e 2) a conversa muito bem representada do Ventr�loquo (Eduardo Moreira) com a Bonequinha (In�s Peixoto). No caso das acrobacias e malabarismos �geis com objetos de Toninho com o suporte perfeito de Eduardo, n�s ter�amos um ou dois n�meros que fazem parte de uma tradi��o maior do music-hall, e que poderiam ser interpretados como uma apresenta��o c�nica do pr�prio trabalho em ato, sugerindo n�o s� a sua condi��o de atores pagos para supostamente desempenhar bem os seus pap�is (confirmando a fala ir�nica e jocosa da Bonequinha quando diz: “ador�vel p�blico pagante”), mas tamb�m – e de maneira mais expl�cita do que no caso de meras falas de personagens, j� que eles representam assim o papel dos ginastas que eles devem na pr�pria realidade exatamente ser ou executar – a terr�vel possibilidade ao vivo do erro (ou fracasso).

 

No caso do Ventr�loquo e da Bonequinha, um n�mero t�pico de circo e/ou de espet�culo para crian�as, apesar de a Bonequinha ser representada por uma atriz (In�s Peixoto), o Ventr�loquo (representado por Eduardo Moreira) imita os movimentos de boca t�picos de um Ventr�loquo quando o seu ou a sua boneca/o fala por meio dele, representando assim a cena que poderia ser vista nesse tipo de espet�culo. Mas o que est� sendo representado pelo conte�do do di�logo nesta cena � precisamente a aus�ncia de autonomia ou vida pr�pria da Bonequinha e, portanto, a manipula��o (pelo Ventr�loquo) das falas dela, at� que – a partir da escolha da f�bula do Sr. Keuner (escrita por Bertolt Brecht, como � explicitado pelo Ventr�loquo) sobre os peixinhos e os tubar�es, que � interpretada como a da hist�ria humana da luta de classes e da explora��o violenta de muitos fracos por poucos fortes – a Bonequinha enfim consegue miraculosamente assumir a autonomia da sua pr�pria fala, enquanto o Ventr�loquo come�a a perder o controle da dele e a assumir a reivindica��o da revolta ou revolu��o (jocosamente em espanhol, l�ngua majorit�ria dos “subdesenvolvidos” da Am�rica Latina e tamb�m da revolu��o cubana) sugerida pela Bonequinha. 

 

Mas a liberdade quase transgressiva na composi��o desta pe�a est� presente tamb�m na utiliza��o de can��es brasileiras muito conhecidas e melodram�ticas como “Cora��o materno” de Vicente Celestino ou “Perigosa” de Rita Lee, Roberto de Carvalho e Nelson Motta (que se tornou famosa na interpreta��o das Fren�ticas), cujo exagero meio brega, bem apropriado a um cabar� meio fuleiro, torna poss�vel uma maior e mais imediata aproxima��o com o p�blico. E (o que � mais decisivo) o que poderia ser chamado de uma “atualiza��o”, na qual o p�blico reconhecer� sem dificuldade o seu mundo contempor�neo (algo caracter�stico do “teatro �pico” de Brecht), est� presente tamb�m de modo bem marcado em refer�ncias travestidas, mas facilmente reconhec�veis, a figuras contempor�neas que se alinharam � extrema-direita no nefasto governo do �ltimo presidente do Brasil como uma excelente atriz de cinema e TV que, primeiro nomeada como “Margarida”, � transformada pela hipnose de Fantasus e pela “imbecilidade das redes sociais” em “Patr�cia Kiss”, uma “mulher monstro das fam�lias de bem”, apresentando “um comportamento irasc�vel” e tornando-se “intolerante e agressiva”. Mas o modo como o seu comportamento � ent�o descrito ir� tamb�m aludir a um epis�dio de corrup��o conhecido e bem recente envolvendo a tamb�m anticomunista ex-primeira-dama (o que causa um grande impacto c�mico, mas tamb�m de indigna��o, sobre o p�blico): “Nesses momentos de crise, o �nico dispositivo capaz de acalm�-la s�o joias e colares de pedras preciosas. Ela n�o suporta a palavra arte, tem horror ao cheiro dos pobres, e apresenta uma estranha ojeriza a toda e qualquer tonalidade da cor vermelha.”

 

Ora, estas duas refer�ncias facilmente reconhec�veis a duas mulheres midi�ticas (assimiladas aqui ficcionalmente em uma �nica) de extrema-direita e totalmente alinhadas ao destruidor ex-presidente brasileiro indicam inequivocamente o alvo primeiro da cr�tica pol�tica de “Cabar� Coragem”. Poder�amos, no entanto, verossimilmente suspeitar de que esta cr�tica pol�tica seria desnecess�ria para um p�blico j� bem consciente dos horrores do �ltimo governo brasileiro. Mas como a terr�vel amea�a hoje global de retorno da extrema-direita (tendo em vista os governos mais ou menos recentes de Boris Johnson, Donald Trump, Benjamin Netanyahu, Viktor Orb�n e Jair Bolsonaro) continua bem presente, o que poderia parecer uma mera evid�ncia para o p�blico entusiasmado que lotava o Galp�o Cine Horto n�o deixa de ser um oportuno convite (mesmo que jamais formulado assim explicitamente) a uma a��o pol�tica mais efetiva e empenhada para a manuten��o ao menos do atual governo federal brasileiro. E, concluindo, talvez convenha frisar que n�o existe em todo o musical “Cabar� Coragem” do Galp�o nenhuma proposta pol�tica expl�cita para o presente e o futuro imediato do Brasil, o que permite evitar qualquer panfletarismo grosseiro, pois o foco est� sempre na cr�tica social e pol�tica – que a seu modo tamb�m � “de costumes” e se coaduna perfeita e tradicionalmente com o g�nero c�mico – e no conhecimento e prazer que podem advir da�.

 

 

* Teodoro Renn� Assun��o � professor associado na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) 


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)