
Apesar de dividirem o mesmo continente, Brasil e seus vizinhos nunca se deram exatamente muito bem em termos liter�rios. � exce��o de gigantes como os argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cort�zar, os chilenos Pablo Neruda e Roberto Bola�o, o colombiano Gabriel Garc�a M�rquez, o peruano Mario Vargas Llosa e o uruguaio Eduardo Galeano, pouco ou quase nada da literatura do resto da Am�rica Latina chegou ao pa�s. Pior: existia a sensa��o de que o Brasil estava de costas para o continente, enquanto eles se integravam e promoviam interc�mbios. Um pouco pela �bvia quest�o lingu�stica, outro tanto pela sensa��o de que a produ��o liter�ria brasileira - sendo t�o volumosa - se bastava. Felizmente, nos �ltimos anos, o cen�rio vem mudando, com editoras mais antenadas dedicando um olhar mais atencioso para o que os pa�ses est�o produzindo e a trazer escritores e, principalmente, escritoras para o pa�s.
Uma das respons�veis por essa invas�o "hermana" � a Peabiru, comandada pelo editor Ren� Duarte. O nome � indicativo da inten��o da editora, j� que os peabirus eram caminhos abertos pelos ind�genas na Am�rica do Sul antes da chegada dos colonizadores portugueses e espanh�is, ligando a Cordilheira dos Andes, dominada pelos incas, ao litoral do Oceano Atl�ntico, atravessando os atuais territ�rios de Brasil, Paraguai, Bol�via e Peru.
A semente da editora surgiu, segundo Duarte, do encontro de duas paix�es, que geraram uma terceira: literatura, Am�rica Latina e, portanto, a literatura latino-americana. Com pouco mais de um ano e meio de atua��o, a editora optou por deixar os cl�ssicos de lado e apostou em trazer para o portugu�s nomes contempor�neos, que est�o em plena efervesc�ncia criativa - principalmente mulheres. A opera��o � enxuta: al�m de editor, Ren� � o principal tradutor da Peabiru. � dele, por exemplo, as vers�es em portugu�s dos lan�amentos "Safari", do chileno Pablo Toro, "Tacur�" , da argentina Ernestina Perrens e "Uma nova esp�cie", da equatoriana Solange Rodr�gues Pappe. Em entrevista ao Pensar, ele detalha os processos da editora, as similaridades e diferen�as entre as literaturas brasileira e latino-americana e descarta a barreira do idioma como principal motivo para a nossa dist�ncia hist�rica da produ��o dos vizinhos.
Entrevista / Ren� Duarte
Por que o Brasil n�o se integra - de modo geral, e na literatura em particular - com os seus vizinhos? A l�ngua � a principal barreira?
� uma quest�o bastante complexa, mas me parece que o aspecto lingu�stico est� longe de ser o mais relevante. Nossas forma��es, como na��es, neste lado do mundo, sobretudo a do Brasil, t�m a Europa e os EUA (o tal Ocidente) como refer�ncias m�ximas, quase que absolutas, �nicas. � muito dif�cil abandonar essa l�gica em um lugar onde � t�o potente o famigerado complexo de vira-latas. A Peabiru tem alguns orgulhos. Um deles, de ser a editora que, desde que surgiu, no in�cio de 2022, mais publica literatura latino-americana no Brasil. Outro, de ser a editora que mais publica mulheres latino-americanas no Brasil.
Quais s�o as principais semelhan�as entre a literatura brasileira e a dos outros pa�ses latino-americanos? E as diferen�as?
Eu diria que, atualmente, todos seguimos, em alguma medida, as mesmas tend�ncias gerais, mas isso me parece que est� muito mais ligado ao poder de imposi��o dessas tend�ncias por parte de um mercado global, que se reproduzem sem muito filtro em escalas regionais e nacionais, do que a qualquer outra condi��o. De qualquer forma, h� alguns autores que acabaram oferecendo as bases de uma esp�cie de campo comum, na Am�rica Latina. Clarice Lispector, por exemplo. Hoje, a grande maioria das autoras - tanto as brasileiras quanto as vizinhas - tem a Clarice como uma refer�ncia muito marcante, o que implica em abordagens liter�rias bastante semelhantes.
Mas h� diferen�as, claro. A literatura brasileira me parece mais dogm�tica, talvez por conta do tamanho diminuto (e das peculiaridades) da nossa bolha leitora. H� uma ideia geral, aqui, de que temas sociais s�o artisticamente inferiores a subjetividades, de que qualquer cr�tica �s elites ou elogio ao que � popular resulta em obras "esquem�ticas" ou "manique�stas". Isso �, evidentemente, um mecanismo de controle sobre a produ��o liter�ria, uma narrativa ideol�gica vestida de an�lise t�cnica, e � tipicamente brasileiro. Embora haja esse mesmo tipo de cr�tica em outros pa�ses da regi�o, n�o � algo t�o determinante como aqui. A literatura brasileira, at� em fun��o disso, prefere uma certa docilidade no tratamento, h� mesmo uma certa cordialidade, mesmo no relato de circunst�ncias mais dram�ticas ou opressivas, como se escancarar a realidade fosse ofensivo - quando, na verdade, a realidade em si � que seria ofensiva. Esse, digamos, excesso de zelo, n�o � uma regra t�o intransigente nos demais pa�ses da regi�o, onde parece vigorar uma liberdade de cria��o mais efetiva.
Podemos, ali�s, falar em literatura latino-americana, de modo geral, ou as caracter�sticas de cada pa�s se sobressaem?
Existem particularidades, mas as manifesta��es mais vigorosas, a meu ver, se deram a partir de uma percep��o mais geral a respeito do que somos. Tanto o boom do realismo m�gico, quanto o fen�meno atual, que vem sendo, inclusive, chamado de novo boom, e que � encabe�ado sobretudo por escritoras mulheres, se manifestam e s�o vistos como fen�menos da cultura latino-americana e n�o de um ou outro pa�s. No chamado novo g�tico latino-americano, por exemplo, temos autoras equatorianas, bolivianas, argentinas, mexicanas, brasileiras. Com as gera��es anteriores foi a mesma coisa, eram autores de todas as partes da Am�rica Latina escrevendo dentro de certos par�metros mais ou menos comuns.
Como � feita a curadoria dos autores?
Consideramos a curadoria um procedimento fundamental, at� porque somos uma editora pequena e, portanto, distante da possibilidade de trazer as obras mais �bvias - e mais caras - para c�. Ent�o, esse nosso trabalho envolve uma busca minuciosa e constante - em sites estrangeiros de editoras, livrarias, portais de m�dia especializada, de institui��es que concedem pr�mios liter�rios - por livros que ao mesmo tempo possam ser interessantes ao p�blico, que correspondam ao nosso projeto editorial (basicamente: literatura latino-americana que trate da Am�rica Latina) e que estejam dentro das nossas possibilidades financeiras.
Fala-se muito, atualmente, em bibliodiversidade. � evidente que uma editora que tem o posicionamento da Peabiru vai publicar mulheres, vai dar destaque para quest�es LGBTQIAPN+, vai atr�s de autores negros, vai lutar pelas causas ind�genas; mas vai, da mesma forma, buscar ir al�m dos modismos. Quando certas ondas passarem, o que garante que essas vozes continuar�o tendo espa�o? Por isso, tamb�m, a import�ncia de uma identidade editorial, da criticidade, de n�o simplesmente replicar de modo autom�tico tudo o que o mercado estabelece. Como diz Everaldo Rodrigues, escritor, n�o d� pra achar que o mercado n�o vai ser mercado...
O foco da Peabiru tem sido, principalmente, autores contempor�neos. Pretende apostar tamb�m nos cl�ssicos que nunca chegaram aqui, em algum momento?
Sim, h� esse projeto. Preferimos n�o dar nomes, por enquanto, mas vale dizer que � imposs�vel entender a realidade latino-americana sem conhecer seu passado. Logo, a literatura, como express�o sociocultural de um tempo e lugar, �, sem d�vida, um instrumento importante nesse sentido.
Os pre�os da Peabiru s�o bem razo�veis, e abaixo do que grandes editoras est�o cobrando pelo livro no momento. � uma preocupa��o manter o pre�o acess�vel?
Sim, � o compromisso maior da Peabiru.
Entendemos que o Brasil precisa urgentemente repensar o pre�o final do livro, porque a amplia��o do acesso � literatura � primordial para qualquer sociedade que sonha em aprimorar sua democracia. Nenhum outro aspecto da cadeia editorial deveria ser mais relevante, nesse pa�s, onde ler � um privil�gio, do que garantir o direito - de fato - ao livro. H� um festival de lan�amentos a mais de cem reais, hoje, no Brasil. Quem pode pagar por isso? E praticamente n�o se fala nada a respeito, � um tema banido, proibido. Poder tratar disso num jornal do tamanho de o Estado de Minas � de uma import�ncia incomensur�vel. A Peabiru escolheu ser uma voz dissonante. Porque n�o � nada razo�vel que haja uma oligarquia que trate como um feudo a cultura de um pa�s extraordinariamente plural como o nosso.
Ca�ada humana em tr�s tempos
A ideia de um saf�ri humano � popular na cultura pop. Obras como a s�rie de livros e de filmes "Jogos vorazes" e o filme "Bacurau", de Kleber Mendon�a Filho e Juliano Dornelles - para ficar em exemplos mais recentes - abordam a ideia de pessoas ca�ando e abatendo outras pessoas em uma ca�ada. Por isso, conseguir se distanciar um pouco do tema e conseguir trazer algo novo e alguma profundidade para o tema � uma proeza que o escritor chileno Pablo Toro consegue executar em "Safari" (Paebiru), vencedor do pr�mio de Melhores Obras Liter�rias Publicadas do minist�rio da Cultura do Chile, de 2022.
Talvez por estar imerso no mundo da televis�o - al�m de escritor, ele tamb�m se divide como jornalista e roteirista de TV -, dominado por reality shows de todos os tipos e formas, Toro come�ou a se perguntar como seria um mundo em que a ca�a de outros seres humanos fosse n�o s� legalizada e aceita, como transmitida em tempo real para diversos espectadores. Surgia assim a semente que gerou "Safari", que possui tr�s blocos de narrativas distintos, que poderiam at� ser lidos em separado, mas se conectam pelo relacionamento de dois rapazes, Villanueva e Guti�rrez.
Cronologicamente, "Safari" se inicia pela narrativa do meio, batizada de "As elei��es", o trecho mais abertamente pol�tico do livro. Enquanto o Chile acompanha em suspense a convalesc�ncia final do ex-ditador Augusto Pinochet (1915-2006), que comandou a sanguin�ria e violenta ditadura militar no pa�s entre 1973 e 1990, um col�gio de elite brit�nico de Santiago se envolve em uma disputa pelo controle do gr�mio estudantil. A polariza��o que o estado de sa�de de Pinochet causa na sociedade logo transborda para dentro do espa�o educacional, com jovens que refletem o pensamento de seus pais celebrando a morte iminente do ex-ditador ou lamentando-a, e jurando defender seu legado.
A situa��o soa terrivelmente atual, j� que diversos pa�ses da Am�rica do Sul tiveram que, recentemente, encarar elei��es contra candidatos - como no caso do pr�prio Chile - ou at� governos, como foi o caso do Brasil, que demonstraram algum tipo de simpatia e apre�o pelo per�odo autorit�rio que assolou o continente na segunda metade do s�culo 20. Aqui, Villanueva e Guti�rrez t�m 17 anos, imersos no mundo ao mesmo tempo tedioso e intenso da adolesc�ncia, experimentando drogas, relacionamentos e heavy metal, principalmente Sepultura, enquanto escondem segredos um do outro.
"A noite do camelo", que abre o livro, mas � a segunda em termos cronol�gicos, � uma cr�tica fort�ssima ao relato realista e brutal da invas�o americana do Iraque (2003-2011). Est�o l� a altern�ncia entre o t�dio total das bases militares na chamada Zona Verde de Bagd� e os combates sangrentos e inesperados entre as for�as de ocupa��o e fac��es insurgentes na periferia da capital iraquiana. Agora mercen�rios, Villanueva e Guti�rrez recebem a grotesca miss�o de capturar um dromed�rio - camelo de uma corcova s� - para alimentar o impulso animalesco de um sargento do ex�rcito dos EUA.
A terceira e �ltima parte, "Safari", que divide o nome com o livro, � a mais experimental. Nela, Toro se dedica � fic��o especulativa, tamb�m chamada de fic��o cient�fica, para criar sua vers�o sobre o mundo em que a ca�ada humana existe e criticar a aliena��o que as telas causam na sociedade. Em uma cidade imensa e altamente vigiada, os saf�ris s�o comandados por redes televisivas, que disputam a audi�ncia do p�blico. Por isso, elas criam hist�rias, como um reality show de baixo or�amento: as presas s�o criminosos condenados e se voluntariam para participar do saf�ri. Eles devem incorporar personagens que maltrataram os ca�adores, o que, em tese, daria o impulso extra para que eles completem o assassinato. O ca�ado que sobreviver por tr�s dias de programa reconquista sua liberdade e ganha um terreno fora da cidade, onde pode viver em paz. Villanueva �, neste mundo, um dos volunt�rios, enquanto Guti�rrez � o diretor do setor respons�vel pela ca�ada.
O livro n�o deixa claro, mas � poss�vel especular - ou at� mesmo deduzir - que tanto "A noite do camelo" quanto "Safari" talvez sejam del�rios ou frutos da imagina��o das vers�es adolescentes de Villanueva e Guti�rrez, lidando cada um ao seu modo com o desentendimento brutal que eles enfrentam no fim de "A elei��o". Para al�m das cr�ticas ao militarismo, ao autoritarismo e � aliena��o causada pela tecnologia, "Safari" funciona como um excelente cart�o de visitas para o que de melhor vem sendo produzido na Am�rica Latina.

Pablo Toro
Tradu��o: Ren� Duarte
Editora Peabiru
282 p�ginas
R$ 49
Entrevista // Pablo Toro
Como chegou �s tr�s narrativas? Cogitou ampliar alguma delas para lan�ar como um romance? Ou elas sempre estavam integradas?
O impulso inicial de "Safari" foi uma pergunta espec�fica: o que teria que acontecer para que a ca�a humana fosse aceita pela maioria? Isso poderia ter sido um romance em si, mas percebi que a distopia, por si s�, n�o me satisfazia. Eu a integrei com hist�rias contempor�neas, que enra�zam os fatos e permitem sugerir uma origem para aquela sociedade futura. Tanto a hist�ria da guerra no Iraque quanto o relato colegial s�o uma base dram�tica e um referencial hist�rico para esse futuro insano.
O �ltimo trecho do livro entra na fic��o especulativa, �s vezes chamada fic��o cient�fica. No Brasil, n�o � comum que escritores contempor�neos sigam por este caminho. Como foi para voc� escrever algo t�o futurista?
Muito interessante e desafiador, porque a constru��o do mundo em uma narrativa futurista tem muitos aspectos inesperados: tive que inventar uma forma espec�fica de falar e pensar para os personagens, um sistema pol�tico e econ�mico, certas ideias filos�ficas, uma organiza��o social, novas formas de relacionamento entre pessoas. O que se descobre ao seguir esse caminho � que toda no��o de futuro deve ter resson�ncias do presente. O futuro sempre conta tanto o presente quanto o passado.
A polariza��o pol�tica que a morte de Pinochet causa no livro e causou na vida real � compar�vel � atual polariza��o que os outros pa�ses da Am�rica Latina, inclusive o Brasil, vem enfrentando nos �ltimos anos. Na sua opini�o, por que estamos nesse ponto de divis�o social?
Acredito que em pa�ses como Chile, Brasil e outros na Am�rica do Sul, h� uma divis�o social interna que vem desde os anos 70 e 80, a era das ditaduras militares. Isso ocorre porque n�o foi feito um trabalho adequado de reconhecimento, mem�ria e repara��o; n�o se chegou a certos consensos m�nimos sobre a viol�ncia pol�tica. Al�m disso, h� o surgimento de novas gera��es que n�o enxergam o horror do passado recente da mesma forma, pois, em muitos casos, n�o o conhecem em sua verdadeira dimens�o. A tudo isso, devemos acrescentar um fen�meno global que transcende nossos pa�ses: � evidente que a ordem social e pol�tica imposta pelas pot�ncias ocidentais ap�s a Segunda Guerra Mundial est� desmoronando e que a multipolaridade trar� divis�es e mudan�as ao longo deste s�culo. J� estamos vivendo isso.
Na fase adolescente, Villanueva e Guti�rrez s�o f�s de heavy metal, principalmente de Sepultura. Como um jornal da cidade natal da banda, somos obrigados a perguntar: voc� tamb�m � um f�? Como decidiu incluir a banda no gosto dos personagens?
Sou f� desde crian�a. Lembro-me perfeitamente de ter 13 anos e juntar dinheiro por meses para comprar o "Roots" em fita cassete. Para mim, naquela �poca, m�sicas como "Roots bloody roots", "Lookaway" ou "Ratamahatta" eram a trilha sonora do mundo. Havia uma vitalidade e uma escurid�o que sentia serem particularmente sul-americanas. Queria que meus personagens protagonistas tamb�m sentissem isso.
Busca pela verdade na Argentina rural
Com mais de 13 milh�es de habitantes, � natural que a cosmopolita Buenos Aires se apresente como o cen�rio da imensa maioria das hist�rias que se passam na Argentina - seja na literatura, seja no cinema, outra arte que eles dominam muito bem. Por isso, n�o deixa de ser intrigante a escolha da escritora Ernestina Perrens de situar "Tacur�" (Paebiru), seu primeiro romance, na regi�o rural do pa�s.
Para deixar bem claro o estranhamento, logo na primeira linha vem o aviso, em primeira pessoa: "Esta terra n�o � minha". Ou seja, estamos adentrando em territ�rio hostil e desconhecido. A trama se passa na prov�ncia de Corrientes, onde o pampa se encontra com afluentes dos rios Paran� e Uruguai formando o Esteros, uma mistura de p�ntanos, lagoas e cursos d'�gua, semelhante ao Pantanal brasileiro. Violenta e amea�adora, a terra e seus moradores desconfiam quando a mulher chega da cidade, acompanhada de um namorado almofadinha, para assumir uma fazenda como heran�a.
Muito similares aos cupinzeiros que se alastram pelos pastos do Brasil, os formigueiros gigantes que d�o nome ao livro tamb�m funcionam como met�fora para vida rural que a protagonista - que n�o chega a ser nomeada - encontra: petrificada, inerte e com problemas que parecem insol�veis. A m�e, que ainda habita o antigo im�vel da fazenda, est� doente; os vizinhos esperam h� d�cadas a abertura de uma estrada pelo terreno da fazenda, e o antigo lepros�rio do outro lado de um rio, que era administrado pelo av� e surge como legado. O passado na institui��o de sa�de, inclusive, divide parte da narrativa do livro, mostrando o decl�nio e o inevit�vel fim do local.
Em parte autobiogr�fico - Ernestina tamb�m herdou uma fazenda do pai - e com uma narrativa poderosa e sucinta, sem excessos, "Tacur�" acaba sendo, em boa parte, sobre liberdade. O �pice do livro se d� justamente quando a personagem consegue se livrar tanto do legado que a oprime e instiga, quanto da situa��o atual, insatisfat�ria e insuficiente. Ao buscar as respostas para os seus questionamentos, revirar o passado e rejeitar o presente, a personagem acaba por promover um reencontro com si mesma - e assumir ser parte da terra que tanto renegou.

Ernestina Perrens
Tradu��o: Ren� Duarte
Editora Peabiru
120 p�ginas
R$ 49
Encontros fant�sticos com a morte
Muito premiada em seu pa�s, mas ainda pouqu�ssimo conhecida no Braisl, a equatoriana Solange Rodr�guez Pappe � herdeira do realismo fant�stico, g�nero que encontrou terreno f�rtil na Am�rica do Sul e tem, entre seus destaques, Jorge Luis Borges e o mineiro Murilo Rubi�o. Ela � fiel � tradi��o do estilo, que parece se encaixar melhor em contos e narrativas curtas do que em textos de f�lego. Em "Uma nova esp�cie" (Paebiru), Pappe re�ne 13 hist�rias que t�m como fio condutor a morte - o �ltimo dos mist�rios e, talvez por isso, um dos temas preferidos dos autores do realismo fant�stico.
Esta, por�m, � a �nica semelhan�a entre eles. Pappe cria mundos e cen�rios t�o diversos quanto profundos, o que tamb�m impede a tenta��o de leitores compulsivos de tentarem devorar o livro de uma sentada. Pular para o pr�ximo conto exige um certo tempo, necess�rio para a digest�o dos temas apresentados, antes de adentrar no universo seguinte, que pode ser t�o vasto quanto o espa�o sideral, ou t�o contido quanto um arm�rio.
O �pice do livro est� em "Companheiros de viagem", constru�do usando apenas di�logos. Na trama, os passageiros de um �nibus que passa por uma das estradas mais perigosas do Equador n�o conseguem se ver, pois � noite e a luz interna n�o funciona. Para passar o tempo, eles compartilham hist�rias sobre acidentes de tr�nsito e fantasmas, enquanto lamentam os atrasos e desvios at� o destino, que nunca chega. Pouco a pouco, eles passam a se questionar se ainda est�o vivos ou se s�o os protagonistas dos casos que contavam.
Outros pontos altos s�o o conto que batiza o livro, "Uma nova esp�cie" tem como narradora uma caverna, que atravessa milhares de anos e tenta atrair seres humanos para devorar, e "V�spera de Finados", em que os vivos devem preparar um banquete de carne crua e v�sceras de animais para alimentar os mortos, que se erguem dos cemit�rios uma vez por ano para o festim macabro.

Solange Rodr�gues Pappe
Tradu��o: Ren� Duarte
Editora Peabiru
192 p�ginas
R$ 49