
N�o � exagero dizer que o poeta � a pimenta do planeta. O olhar sens�vel, sentido e transmitido por meio de palavras apimentadas, comp�e os principais aspectos que caracterizam aqueles que veem a vida sob uma perspetiva po�tica e as expressam brilhantemente.
Dentro dessa linha, est� a nova obra liter�ria “Amarrar o corpo na lua”, do escritor mineiro Lucas Guimaraens, 43 anos. O s�timo livro dele, que conta com pref�cio de Marcio Borges e capa que reproduz pintura do artista Fernando Pacheco, � composto por 46 poemas, constru�dos de forma coloquial, com conota��o surrealista, divididos em tr�s se��es.
A primeira parte se chama “Lugar”, e � inspirada por espa�os reais e imagin�rios pelos quais Guimaraens passou. A segunda � “N�s”, a primeira pessoa do plural, para expressar a rela��o de afetividade com o outro. Por �ltimo est� “Linguagens”, o que une a primeira parte com a segunda, colocando sentido, cor e completude para a obra.
“trivial
como toda travessia
desencontrado
como toda despedida
alado
como toda vontade contida
quebrado
como toda queda e suas fraturas.”
(Trecho do poema “Em torno daquele lago”)
Ao longo das 114 p�ginas, o leitor sorve, em doses sens�veis, poemas que refletem sobre vida, encontros e desencontros, sonhos, amizades, desejos e saudade. “� a partir da linguagem que a gente consegue se conectar consigo mesmo, com os outros e com o mundo”, avalia Guimaraens.
Os textos v�o em uma linha crescente. A sensa��o, ao embarcar nos poemas, � um pouco como entrar em uma piscina: primeiro molhando os p�s, na parte rasa, e, aos poucos, se entregando at� alcan�ar o lado mais fundo. De forma lenta e gradual, os poemas se tornam mais densos e profundos.
A obra nasceu diante um per�odo complicado de sa�de da vida do autor, em que ele buscou nas palavras uma forma de enxergar a vida sob nova perspectiva. “A literatura n�o � uma novidade pra mim. Nem como escrita ou leitura. No entanto, esse livro teve um car�ter especial. Ele veio exatamente pela necessidade de ver a dan�a da vida novamente. H� situa��es em que voc� precisa de um novo olhar, para respirar de novo”, conta o escritor.
“H� uma l�grima
sobre cada palavra.
Ela nos liberta
sendo quase nada.”
(Trecho do poema “Quase nada”)
A sensibilidade da poesia est� no sangue de Lucas Guimaraens h� gera��es. A heran�a po�tica familiar v�m forte com os ancestrais Bernardo Guimar�es, Alphonsus de Guimaraens, Alphonsus de Guimaraens Filho e Afonso Henriques Neto.
Inclusive, o novo livro de poemas � uma tentativa de um olhar diferente em rela��o � lua sonhadora e distante que escreveu Alphonsus de Guimaraens – seu bisav� – e veio da necessidade de se comunicar diante do que cresceu acompanhando e admirando.
“As coisas de mem�ria
formam nossa hist�ria.”
(Trecho do poema “Memento”)
Envolvente e f�cil de ler, “Amarrar o corpo na lua” est� no grupo de livros que podem ser devorados em uma tarde. As palavras dan�am nas p�ginas, trazendo ritmo para cada poema. Sem um tempo liter�rio definido, a obra flutua entre passado, presente e futuro. Cada poema retrata uma tem�tica, tem uma diagrama��o pr�pria e uma singularidade. Como bem definiu Milton Nascimento, no texto da contracapa do livro: “A pena de Lucas Guimaraens nos leva para o del�rio real, o sonho concretizado, a certeza de que outro mundo dentro de nosso pr�prio universo � poss�vel. Poesia de palavras e cores. Caminhos de verdade, de abrigo, de tudo que soa, o que poder� trazer o que merecemos”.
Lan�amento em BH
Lucas Guimaraens assinar� c�pias do livro no lan�amento neste s�bado (05/08), de 11h �s 14h, na livraria Quixote. O evento faz parte da programa��o de 20 anos da livraria e tamb�m vai contar com interpreta��es po�ticas com a companhia teatral do projeto Palavra Viva e interven��es musicais com o Coro Novo, dirigido pelo maestro Daniel Rezende.
* Estagi�ria sob supervis�o do editor Jo�o Renato Faria
Amarrar o corpo na lua
- Lucas Guimaraens
- Editora 7 Letras
- 116 p�ginas
- R$ 49,00
Armaz�m
Prefiro armaz�ns
a supermercados
nas prateleiras
h� o insond�vel
invend�vel sonho
o derradeiro grito
o despejo expl�cito
o frango assado
o p�o que n�o comerei
as marcas de segunda linha
as mo�as e suas carruagens
de problemas �ntimos
a aus�ncia de creche
a viol�ncia da flecha
das paix�es que
nos deixam prenhas
o amor que nasce
do ato da carne
mais um tiro
bala achada
um suspiro
– sem a��car
sem afeto –
prefiro
os guetos
como quem
usa das veias
para um exame
de sangue
as manchas
na pele
como se fossem
nuvens vagantes
a falta como
o travesseiro
que n�o h�.
Prefiro gente
de calos a cantar
todos os dias
o sol da manh�
& suas ilus�es.
Queda
Fraturas do trabeculado �sseo
calc�neo
cuboide
base do quinto metatarso
bols�o infeccioso querendo romper no ligamento bifurcado
delgado tra�o de fratura do t�lus
medula �ssea
tend�es e mais ligamentos
o que fica � a certeza desse passado – esse hoje –
que d�i, mas passa. Com marcas.
O que fica � caminhada.
(e suas fraturas)
Desordem
Tudo ser� como antes
desordem
a casa cega empilhar�
livros ao ch�o
desordem
uma orqu�dea resistente
de cuidados floresce
no aparador
desordem
cheiro de sexo
a postular desejos
de cama e ch�o
desordem
tilintar de chaves
no pote ao lado da porta
e a vontade de fim de dia
desordem
o banho e a fac�nora
fome a devorar a comida –
qualquer comida – da medula
at� a boca (eventualmente
passando pelo est�mago)
desordem
l�bios fechados
como a cozinha sem
pratos limpos
caminhar sem trilhos
sem sinal fechado ou abismo
um fl�neur pousa no parapeito
e repete: nada mais
nada mais.
Desordenados venceremos.
Quase nada
Tudo � palavra
quando n�o � nada.
O vento que sopra as ideias
afugenta a palavra imperfeita.
Nada.
�s palavras devemos
a exist�ncia como
� tela dos sapatos
de Van Gogh
o cansa�o
a caminhada
a terra �mida
o gr�o brotando
o futuro incerto
ao trem-de-ferro
de Milton
as salinas
dos desprotegidos
uma can��o de trabalho
ao primeiro manuscrito
do criador.
Se o espelho
mira o desejo
contido
ou se a roupa
encobre o defeito
perfeito
assim v�m
as palavras.
Se ruas permeiam
seu esqueleto
sua rotina
seu lampejo
n�o se sustente
em palavras.
Troque-se
evoque
a amizade
perdida
para n�o
se perder.
H� uma l�grima
sobre cada palavra.
Ela nos liberta
sendo quase nada.
Entrevista / Lucas Guimaraens
Como foi o processo de cria��o dos poemas? O que te guiou na escrita?
Esse � o meu s�timo livro, entre poesia e filosofia, entre Fran�a e Brasil. Nesse caso, espec�fico, ele se deu muito por conta de um momento que eu estava vivendo. Comecei a ter problemas de sa�de mais s�rios, ent�o a obra veio numa tentativa de completude.
Eu me vi numa situa��o bastante semelhante � de um beb�. Ao longo da sua constru��o, no in�cio de 2018, eu tinha a sensa��o de estar me reconectando de uma forma diferente, de estar olhando para as coisas, para os detalhes, sob uma nova perspectiva.
O seu sobrenome tem muita hist�ria na poesia mineira. Voc� se inspira de algum modo nos seus antepassados?
N�o tem como eu me dissociar da minha origem. � imposs�vel, para todo mundo. Eu cresci cercado por literatura e poesia. O que me interessou de fato n�o foi muito romance, e nem foi os contos, mas, sim, a poesia. E ent�o eu comecei a entender o que era o jogo das palavras, eu pegava alguns versos do meu bisav� Guimaraens, colocava no computador, escolhia uma imagem e escrevia junto. Foi assim que eu fui me moldando, fui me formando. Porque a poesia n�o se forma na academia. A poesia se forma na vida.
O livro abre muito de uma intimidade. At� que ponto voc� se sente confort�vel ao abrir essa intimidade para os leitores?
Eu acho que n�o existe poesia verdadeira, se n�o h� vida verdadeira. O que eu tenho que transmitir, pelo menos no meu modo de criar pela poesia, � a minha pr�pria vida. Se a poesia n�o � comunicante pra ningu�m, a poesia est� errada, tem algum problema. Porque ela � uma comunica��o, ela � um di�logo.